O referido artigo foi escrito por Marx em um contexto em que Bolívar era cultuado na própria “esquerda” europeia como libertador e herói da América Hispânica e um símbolo na luta contra o imperialismo. Desde então Bolívar é considerado por muitos o homem que indicou o caminho da liberdade através da destruição dos grilhões que uniam a América à metrópole espanhola. Esta fama valeu-lhe na literatura que se seguiu vários epítetos, como: “o libertador”, “gênio perfeito”, “caudilho incomparável”, “único de sua raça”, “São Simón Bolívar”, “Herói”, “Deus” etc... Todavia, Marx descreverá um Bolívar nada heroico. No curso do pequeno esboço biográfico que escreveu sobre o “Libertador”, este será acusado de oportunista, covarde, traidor, canalha, ditador, ambicioso etc... Teria Marx se equivocado? Apesar do seu rigor e inúmero conjunto de fontes que sempre consultou antes de emitir qualquer posição, teria neste caso se apressado? No período que se seguiu a publicação deste artigo Marx recebera cartas contestando sua interpretação e questionando suas fontes e respondera, ao seu modo, de maneira irônica. Analisemos melhor alguns aspectos do papel histórico desempenhado por Bolívar no curso e no contexto das independências latino americanas.
Como se sabe, as colônias espanholas na América eram marcadas por uma aguda exploração do trabalho, sobretudo indígena, realizada através de diversos tipos de trabalho compulsório e escravo, tanto nas minas como na agricultura. São bastante conhecidas, desde o inicio da colonização, as situações desumanas em que a população indígena e negra foi submetida no Novo Mundo, em particular na exploração das minas de prata em Potosí e de mercúrio em Huancavelica. Entretanto, este não era o único antagonismo que balizava a América espanhola. Os crioulos, isto é, pessoas de origem espanhola, ou de outros países da Europa, nascidas no continente americano, não tinham igualdade de direitos frente aos espanhóis. Ocupavam poucos cargos na hierarquia estatal e religiosa, e estavam juridicamente impossibilitados de atingir os níveis mais altos da burocracia administrativa. Em contrapartida, tornavam-se cada vez mais numerosos, colocando um problema político peculiar. E é neste clima de tensão permanente entre os dois setores dominantes nas colônias, espanhóis e crioulos, e a profunda crise da metrópole após a invasão napoleônica, que Simón Bolívar entra em cena.
Conforme menciona Marx em seu artigo, como filho da rica nobreza crioula na Venezuela, Bolívar foi enviado a europa para estudar ainda com 14 anos. Vivendo no velho mundo no período que se segue ao turbilhão da revolução francesa teve contato com ampla literatura iluminista e presenciou a coroação de Napoleão como imperador. Neste sentido, não é estranho que os princípios os quais animavam a grande revolução na França marcassem presença nos textos e discursos de Bolívar desde aquela época. Em sua vasta obra, entre discursos e cartas, estão recheadas de menções a libertação da América do domínio espanhol e referências aos princípios liberais, como neste trecho da Carta ao Governador de Curaçao: “Por três séculos gemeu a América sob esta tirania, a mais dura que afligiu a espécie humana; por três séculos chorou as funestas riquezas que tanto atrativo tinham para seus opressores”. Vários de seus escritos consistem em verdadeiras odes à liberdade remetendo a um futuro grandioso para o Novo Mundo. Entretanto, até que ponto esta retórica ilustrada coincidiu com existência prática do próprio Bolívar? Voltemo-nos então para o seu papel nas independências latino americanas, isto é, o cruzamento entre a teoria por ele difundida e sua existência efetiva.
Antes de querer conduzir as classes exploradas à participação política, o movimento de independência iniciado por Bolívar na Venezuela foi pautado, pelo contrário, no temor das mobilizações destas mesmas classes. Este temor da elite crioula se intensificou desde a conquista da Espanha em 1808 pelo exército de Napoleão Bonaparte quando perderam o respaldo militar da metrópole. Não por acaso o próprio Bolívar teria dito que uma revolta negra seria “mil vezes pior do que uma invasão espanhola”(1). Não se pode esquecer que os crioulos que estavam a frente do movimento de independência eram aristocratas rurais e escravocratas.
Neste sentido é importante notar que após a independência, a Espanha conseguiu restaurar seu domínio sobre a Venezuela, no curto período de 1814-16, graças ao apoio dos escravos. Talvez, por influência deste episódio, assim como dos compromissos firmados com o presidente do Haiti, que ofereceu ajuda militar no momento da reconquista espanhola, Bolívar obteve a libertação dos filhos dos escravos em 1921(2). Ainda assim, em carta direcionada a seu principal general, o “Libertador” explicita o aspecto tático da libertação dos escravos: utilizá-los nas batalhas pouparia os homens livres (crioulos) e possibilitaria a redução do seu “perigoso número”. (3)
Apesar dos aspectos acima ressaltados com relação a escravidão, não teria Bolívar cumprido um papel “progressista” ao propiciar a libertação nacional de tantos países da América Espanhola? Como podemos ver, naquele mesmo artigo de Marx, Bolívar “ recusou-se a aderir à revolução que estourou em Caracas em 19 de abril de 1810”, mas em seguida “aceitou a missão de ir à Londres para comprar armas e negociar a proteção do governo britânico”. No que diz respeito a vitória, diz Marx: “De deserção em deserção, tudo parecia caminhar para um desastre total (...) Nesse ínterim, chegou da Inglaterra uma forte ajuda em homens, navios e munições, e oficiais ingleses, franceses, alemães e poloneses afluíram de todas as partes para Angostura... Rapidamente pôs-se de pé um exército de 14 mil homens, com os quais Bolívar pôde passar novamente à ofensiva... as tropas estrangeiras, compostas fundamentalmente por ingleses, decidiram o destino de Nova Granada, graças às sucessivas vitórias... No dia 12 de agosto [de 1819] Bolívar entrou triunfalmente em Bogotá...”. Como se vê, para Marx, o caráter anti-imperialista aparece como mais um mito do “Libertador” Bolívar, uma vez que teria livrado a América Latina do jugo espanhol, em troca do britânico.(4)
Bolívar também aparece em múltiplos textos de propaganda como expressão da democracia e da participação popular. Esta visão, como os aspectos anteriormente mencionados, não está em consonância com os acontecimentos. Apesar da retórica liberal e as constantes referências a opressão espanhola que perpassam seus escritos, para Bolívar a democracia era ideal, apenas para os outros, não para à América. Pouco após a independência da Venezuela em 1813 relata em carta ao Governador de Barinas: “Jamais a divisão do poder estabeleceu e perpetuou governos; somente a sua concentração conseguiu infundir respeito numa nação e eu não libertei a Venezuela senão para implementar exatamente este sistema”. Nesta mesma direção em sua famosa carta de Jamaica de 1815, anuncia ser a Venezuela o exemplo mais transparente “da ineficácia do modelo democrático e federal”. Em 1819 em discurso realizado em San Tomé de Angostura conclui que um sistema de governo como o dos Estados Unidos não é apropriado para “nossos países”, deixando claro que esta postura estava longe de expressar um contexto conjuntural. Em 1825, durante a constituinte da Bolívia propõe a ele próprio como presidente vitalício e o poder para escolher o vice-presidente o qual deveria sucedê-lo e justifica-se: “com esta providência se evita as eleições, que produzem grandes revezes nas repúblicas, a anarquia que é o luxo da tirania e o perigo mais imediato e terrível dos governos populares”.(5) Para Bolívar, a América Latina não estava preparada para a democracia, sendo ele o único capaz de manter a “República”. Quando esteve a frente do governo peruano escreveu: “no dia em que eu deixar o Peru ele volta a se perder: porque não há homens capazes de sustentar o Estado”, curiosamente, este mesmo Bolívar teria dito anos antes que “se apenas um homem fosse necessário para sustentar o Estado, esse Estado não deveria existir; e ao fim não existiria”. Logo, como se vê, Marx parece ter razão ao anunciar que a “intenção real de Bolívar era unificar toda a América do Sul em uma república federal, cujo ditador seria ele mesmo”. Entra em crise, aqui, o “herói da unidade latino americana”. Se para Bolívar esta unidade era um pretexto para uma ditadura mais ampla, ao que nos parece, tal unidade, tantas vezes invocada em nossos dias pelos governantes ditos de esquerda, visa apenas arrefecer as lutas efetivas entre as classes, procura-se esvaziar a sociedade de seu conteúdo real apagando as contradições em nome de um critério de natureza cultural e abstrata.
Por fim, provavelmente, a única convicção que permaneceu inabalável em Bolívar desde os primeiros anos dos processos de independência até a sua morte foi a da incapacidade do povo latino-americano de levar a cabo a sua própria libertação. Num primeiro momento, Bolívar acredita ser ele o único capaz de levar adiante tal empreitada, já nos últimos momentos de sua vida, quando seu fracasso já estava consumado, escrevera ao antigo aliado, o general Juan Flores, dizendo que “aquele que serve a revolução ara no mar”, que a América era ingovernável e que certamente nem os espanhóis desejariam mais reconquistá-la.
Posto todos estes elementos, como poderia Bolívar, no curso de nossa história, ter se transmutado em libertador, anti-imperialista, republicano, liberal e no bastião da democracia? Esta resposta se encontra nas múltiplas imagens dele construídas desde alguns anos após sua morte. Esta construção foi inicialmente desenvolvida pelas classes dominantes na Venezuela e depois reverberada sobre diversas correntes políticas do continente e em múltiplos sentidos. Passemos rapidamente por este itinerário.
Derrotado nas disputas pelo poder que se seguiram as independências, Bolívar morreu desprezado e caluniado pelos seus antigos aliados, considerado um traidor nacional. O governo de Paez, um inimigo de Bolívar, sucumbiu frente as inúmeras disputas e turbulências locais que perduraram. Neste quadro de total instabilidade e caos social, a figura de Bolívar renasce sob o governo de Fermin Toro, em que Bolívar é apresentado como unificador e harmonizador de conflitos sociais. Transformou-se em um símbolo que representava a Nação venezuelana em conformação. Desde então, sua imagem foi apropriada pela classe dominante venezuelana, através de sucessivos governos, os quais acentuaram apenas alguns aspectos dos escritos de Bolívar. Neste momento desenvolveu-se de forma cada vez mais ampliada, um verdadeiro culto à sua pessoa, que transcendeu as fronteiras venezuelanas, colocando-o no altar de toda a América Latina. Foi comparado aos heróis da mitologia greco-romana e do cristianismo. Bolívar era Zeus ou Júpiter no “Olimpo crioulo”, era como Jesus Cristo. No centenário de seu nascimento, Gusmán Blanco o caracterizara como o “predestinado”, “a serviço dos desígnios da Providência”, “Libertador do continente, criador das repúblicas americanas, o pai dos cidadãos livres” e ainda “Deus oferecera a ele todos os talentos (…) incomparáveis em toda a superfície da terra, tanto no passado, no presente e no futuro”. (6) (7) Como se vê, os heróis nacionais latino americanos, como Bolívar, não germinaram espontaneamente no curso da própria luta de libertação, mas foram escolhidos posteriormente segundo os critérios e conveniências dos governos instituídos. O que resultava na construção meramente simbólica e a posteriori, tanto de heróis como de anti-heróis.
Neste caminho, a figura mítica de Bolívar foi usada não apenas nos sucessivos governos autoritários da Venezuela mas reverberou por todo continente e para além dele. Existem registros de que tanto o regime de Mussolini como o nazismo procuraram interpretar Bolívar em seu favor, em um livro escrito pelo nazista Wolfram Dietrich, este anuncia que a principal lição extraída de Bolívar é “ que ‘um povo só pode prosperar sob o comando enérgico de um FUEHRER” (8) Em diversos outros momentos o nosso “Libertador” foi utilizado para justificação de governos autoritários e sobretudo nacionalistas.
O uso do Bolívar mitológico no interior dos movimentos de esquerda se desenvolveu, com particular intensidade, após a “teoria da dependência” que, em suas múltiplas matizes, assenta-se sobre a tese de que a pobreza latino-americana decorre dos quase cinco séculos de saques que o continente passou, ora pelos espanhóis e portugueses, ora pelos norte-americanos. Assim, a luta dos crioulosteriam um caráter progressivo frente à burguesia estrangeira, isto é, ao imperialismo. Tal tese, que aparece como um misto obscuro entre nacionalismo e marxismo, nunca conseguiu explicar de maneira consistente como uma revolução meramente nacional se converte, compõe, ou auxilia uma revolução socialista, questão normalmente defendida com a mera evocação dos termos dialética ou mediação esvaziados de qualquer conteúdo. Para muitos dos seguidores da crença na “teoria da dependência”, libertação nacional e revolução socialista fazem parte de um mesmo processo dialético ou constitui uma mediação de um para o outro. Em que consiste esta mediação ou esta dialética continua uma grande incógnita. Tampouco explicita as vantagens para classe trabalhadora de possuir exploradores predominantemente da mesma nacionalidade. Neste cenário, não é mera coincidência que o governo bolivariano de Hugo Chávez propagandeie aos quatro ventos o livro: “Veias abertas da América Latina” de Eduardo Galeado, assentado sobre a débil tese da teoria da dependência. Seja como for, a figura de Bolívar caiu como uma luva para esta teoria, dois mitos que se auto complementam.
Atualmente, podemos constatar que a fabrica construtora de mitos continua ativa na América Latina, sobretudo, nos governos de viés nacionalista. Recentemente, o governo da presidente Cristina Kirchner na Argentina determinou por decreto uma revisão oficial da História de sua nação. Para tal, foi criado o Instituto Nacional do Revisionismo Histórico Argentino e Ibero-Americano Manuel Dorrego ligado a Secretaria Federal de Cultura. Este instituto tem por objetivo rever a história do país de maneira a contemplar o mito dos caudilhos e seus laços populares, assim como, denunciar os liberais pelo projeto de incorporar a Argentina no capitalismo global como um sócio inferior no mercado agroexportador. Por exemplo, o ditador Juan Manuel de Rosas (1835-52), que promoveu verdadeiros genocídios contra os indígenas do sul da Província de Buenos Aires, será transformado em herói, enquanto democratas, como Domingo Faustino Sarmiento, são transformados em agentes do imperialismo. Ao que parece, Cristina necessita de novos Bolívares.
É evidente que o Bolívar histórico não é aquele pintado por seus apologetas, tanto conservadores como “socialistas”. Nosso objetivo, neste modesto texto, não é atingir ou sequer apontar para a figura histórica de Simón Bolívar. Para tal é necessário desnudá-lo de todo o vestuário criado por aqueles que fizeram e fazem uso de seu nome, tendo em vista, apenas corroborar necessidades imperativas de grupos que estão no poder. Independente disto, fato é que Bolívar era integrante da classe dominante crioula, cujos interesses representava. Podemos perceber que, no interior de uma economia de mercado em permanente expansão, a liberação do jugo espanhol apenas resultou em uma nova escravidão. Neste sentido, seguindo as reflexões de Marx, imperialismo seria, tão somente, um fenômeno, uma manifestação inerente ao capital em suas idas e vindas em busca de valorização. Para além das manifestações aparentes e abstratas do dinheiro, do direito e da nação encontra-se a exploração de classes, e em particular, a exploração da classe trabalhadora, que produz toda riqueza, mas que só possui sua força de trabalho para vender. Neste sentido, independente de imprecisões históricas que possam existir no breve esboço biográfico de Marx sobre Bolívar, esse se apresenta como coerente, tendo em vista o pensamento e a elaboração teórica do autor de O Capital. Em contra partida, do ponto de vista histórico, parece incontestável a menção que Marx faria alguns anos mais tarde no seu escrito contra Herr Vogt: “A força criadora de mitos, característica da fantasia popular, em todas as épocas tem provado sua eficácia inventando ‘grandes homens’. O exemplo mais notável deste tipo é sem dúvida Simón Bolívar”.
Todavia não podemos desconsiderar ainda a possibilidade de Marx estar equivocado, não apenas com relação a Bolívar, mas sim, ao conjunto de sua obra, em que a nação, embora real, é sempre abstrata e as classes sociais e seu caráter internacional, concreto. Talvez a nação seja, de alguma forma ainda não demonstrada, uma determinação substancial do capital. Talvez as relações econômicas entre os países tenham o mesmo estatuto da relação entre as classes. Talvez o imperialismo seja o substituto da burguesia na sociedade contemporânea, o que colocaria as nações dominadas como o sujeito de uma transformação social profunda. Talvez este aspecto justifique o desejo não realizado de Lukacs de escrever “O Capital” de nossos dias. Se for este o caso, resta-nos constatar que as nações sempre necessitaram da criação de mitos e heróis. Assim, para nós, brasileiros, antes de exportarmos o herói venezuelano, devemos criar nossos próprios mitos, nossos próprios heróis e colocar em seu devido lugar o nosso Zeus, nosso Jesus Cristo, o “único de sua raça”, o “predestinado”, “a serviço dos desígnios da Providência”, o “Libertador” do Brasil, Dom Pedro I.
(1) Lynch, The Spanish-American revolutions, p.224
(2) Masur, Bolívar, pp 206-207
(3) Jair Antunes, Marx e a América para além da história do capitalismo, pp 147-148
(4) Jair Antunes, Marx e a América para além da história do capitalismo, pp 149
(5) Maria Lígia Coelho Prado, “Bolívar, Bolívares”, Folhetim, Folha de São Paulo, 24 jul. 83
(6) Maria Lígia Coelho Prado, “Bolívar, Bolívares”, Folhetim, Folha de São Paulo, 24 jul. 83
(7) German Carrera Damas, "El culto a Bolívar"
(8) Moacir Werneck de Castro, “O Libertador – A Vida de Simón Bolívar”