Esforcei-me, sobretudo no diálogo fraterno com camaradas do PCB no qual militei nos anos da ditadura para acompanhar o movimento da História e da vida no Brasil contemporâneo, em vertiginoso, permanente, quase alucinante processo de transformação.
A reflexão sobre o que vi, ouvi, estudei nestas semanas reforçou paradoxalmente o meu optimismo.
No início dos anos 30 do século passado, o escritor austríaco Stefan Zweig escreveu um livro polémico, «Brasil, país do futuro». Deixara a Europa enojado com a ascensão do nazismo na Alemanha. Ao desembarcar no Rio e viajar pelo interior, a paisagem humana e física que o envolveu produziu nele um efeito estranho. Não imaginava que pudesse existir uma sociedade como aquela no quadro tropical que o fascinou.
No Brasil em acelerado processo de miscigenação anteviu uma humanidade distante, fraterna, sem guerras, na qual o racismo teria desaparecido.
Essa visão romântica, retomada pelo historiador Sérgio Buarque da Holanda com o mito do «homem cordial brasileiro», foi rapidamente desmentida. Em plena fase da industrialização, uma cruel ditadura militar de duas décadas mergulhou o Brasil numa atmosfera de violência. Ali, como em qualquer outro país, no homo sapiens o apelo da barbárie coexistia com a capacidade de realizar prodigiosas conquistas civilizacionais.
A previsão de Zweig foi desacreditada pelo andamento da História. Os crimes da ditadura coincidiram com um aprofundamento da dominação imperialista e da desigualdade social. O fosso entre a miséria e a riqueza ampliou-se além do imaginável. O Brasil tornou-se um país de párias e milionários.
Em 1957, quando desembarquei em São Paulo, a cidade tinha 2,3 milhões de habitantes e uma única favela; ao regressar a Portugal em 1974, após um exílio de 17 anos, a área metropolitana da gigantesca megalopolis ultrapassara já os 10 milhões e um gigantesco cinturão de miséria alastrava pela periferia. Hoje são 18 milhões.
Finda a ditadura, ao revisitar São Paulo em 88, não foi fácil ambientar-me. O conflito entre a modernidade e o arcaísmo ampliara-se extraordinariamente. Recordei que Levy Strauss definira o Brasil como a terra da «decadência do inacabado», impressionado pelo ritmo das transformações capitalistas marcadas pela dicotomia construçao-desconstruçao.O novo ali envelhece vertiginosamente sem estar terminado.
A vida ofereceu-me a possibilidade de voltar ao Brasil com muita frequência no último quarto de século. Ali sinto-me brasileiro, ali deixei filhos e netos, na tradição da diáspora portuguesa.
Foi no Brasil, participando nas lutas do seu povo, que me descobri como revolucionário e me tornei comunista, me transformei, na aprendizagem da breve aventura da vida, no homem que sou.
O distanciamento físico, a partir do 25 de Abril, não afectou o amor pela terra e aqueles que a povoam.
Mas a mutação da vida nas grandes cidades brasileiras, nas selvas, sertões e cerrados do país é tão profunda e vertiginosa que em cada regresso sinto com força o choque do novo, do inesperado.
Voltei agora. A convicção de que não atravessarei mais o Atlântico terá contribuído para que sensações, imagens e ideias entrassem em mim ora em desarrumada invasão, ora reabrindo na memória alamedas que a poeira do tempo fechara. Joyce e Proust foram meus companheiros em três semanas de um reencontro com amigos e camaradas que se movem em cidades que, revisitadas, me tocam como seres vivos em diálogos imaginários.
Uma ausência, para mim longa, de quatro anos, imprimiu a estes dias brasileiros a marca de um tempo de revelações, porque o contacto com o real tido por íntimo era recebido e arquivado como novo.
Caminhando por São Paulo, ao levar a minha companheira a bairros e lugares que eu não via há décadas, senti-me muitas vezes numa cidade desconhecida. Aquilo era simultaneamente, repito, íntimo e novo.
MEGALÓPOLIS ALUCINATÓRIA
Por São Paulo circulam hoje 7 milhões de carros e camiões. A cada semana milhares de veículos novos aparecem nas ruas saídos das fábricas das grandes transnacionais do automóvel instaladas no país. O Brasil é actualmente o quinto produtor mundial de carros, com três milhões de unidades por ano.
Os táxis são caríssimos, os restaurantes também. O preço dos apartamentos de qualidade é três a quatro vezes superior ao de Portugal.
Um abismo separa na pirâmide salarial os de cima dos de baixo. O salário mínimo é inferior ao português, mas os parlamentares e os professores universitários de topo- dois exemplos - têm vencimentos muitíssimo superiores. Os banqueiros e gestores das grandes empresas também ganham muito mais.
O tráfego em São Paulo envolve a cidade numa atmosfera angustiante. O quotidiano é marcado pela imprevisibilidade de engarrafamentos monstruosos. Em algumas avenidas, os corredores reservados aos transportes públicos geraram esperanças ilusórias. Os rodízios também não resolveram os problemas de um trânsito infernal até porque muitas famílias têm três e quatro carros para fintar a proibição de circular em determinados dias. A dificuldade para estacionar, inclusive nos parques, é inimaginável para os estrangeiros, porque a dimensão do desafio supera muito a das grandes cidades europeias e norte-americanas.
O gigantesco caos de São Paulo, diferente do que modela o quotidiano das megalópolis africanas e asiáticas, assusta o forasteiro. A sensação de quem chega é a de que aquilo não pode continuar como está e que viver ali é um pesadelo.
Mas os bairros ricos de São Paulo superam pela modernidade e luxo, no Jardim Europa, no Jardim América, no Pacaembu, no Morumbi, o que no género conheço de Caracas, do México, de Nova Iorque e Paris. Porque a grande burguesia paulista, ao invés das europeias, gosta de exibir ostensivamente a sua prosperidade insolente, ao lado da miséria degradante que a envolve.
Mas, passados dias, o forasteiro repensa, medita nas contradições, hesita, tenta compreender e principia a assimilar o lado invisível da vida. É tocado pelo feitiço brasileiro.
Os absurdos perturbam. Na grande cidade, nos espaços verdes, há mais aves do que nas europeias. A violência, filha da desigualdade, indigna e intimida, mas as pessoas, nas ruas, nas lojas, nos transportes, são amáveis, cordiais. O desconhecido, ao contrário do habitual na Europa, surge, logo no primeiro contacto, com o perfil de um amigo potencial.
Em São Paulo como no Rio, a alegria de viver, mesmo nos bairros degradados, em favelas imundas, paira na atmosfera, brota dos sorrisos, dos gestos. Por mais sombrias que sejam as perspectivas do amanhã, o paulista, como o carioca, enxerga luz no fundo do túnel, cultiva o humor, o futuro próximo é para ele marcado pela esperança e não pelo medo.
O debate de ideias é não apenas efervescente, mas criador. Isso acontece no Teatro, no Cinema, na Pintura, na Arquitectura, na Literatura, nas Ciências Sociais.
CONTRADIÇÕES
No Rio, a cintura de praias, num cenário paradisíaco, deslumbra, é uma festa para os sentidos.
Mas à beira do Atlântico, quase subindo das areias, encastoadas em morros verdes, crescem como cogumelos gigantescas favelas misérrimas que exibem o rosto de uma desigualdade social afrontosa da condição humana.
Os media internacionais dedicaram milhares de palavras à ocupação pelo exército e pela polícia militar de algumas das favelas mais famosas para erradicar o crime organizado e o tráfico de droga. Houve quem acreditasse que essas operações tinham assinalado o fim de uma era. Engano. Muitos bandidos regressaram, o tráfico persiste com a cumplicidade dos militares.
O crime está enraizado no submundo das favelas, povoadas de gente boa, a dois passos dos esplendores de Copacabana e da Tijuca.
O governo de Dilma Roussef repete incansável, que a desigualdade social está a diminuir rapidamente no Brasil. Mente. Na estratificação de classes as clivagens são muito mais acentuadas do que na Europa. E aprofundaram-se nos últimos anos.
O estamento superior da classe média toma como modelo os EUA. Na sede de modernidade, na maneira de vestir, no estilo de vida, nos lazeres.
Na juventude com acesso ao ensino superior a obtenção de um diploma confere status, mas a maioria da classe média alta manifesta um interesse mínimo pela compreensão dos grandes problemas do país e da humanidade. Julga-se culta, mas está distanciada da cultura nas suas múltiplas vertentes.
Numa ronda pela noite paulista impressionou-me na Vila Madalena a transformação da área que eu conhecera há um quarto de século como bairro em que predominavam modestas casas de uma pequena burguesia anémica.
Agora exibe o rosto de um Soho brasileiro, um Greenwich Village paulista. Em bares, cafés e restaurantes, em galerias de arte onde transparece o bom gosto, desde a fachada à decoração, convive alegremente uma juventude para mim desconhecida.
Certamente é heterogénea. Mas, a avaliar pelo bairro e o que sobre ele li, o interesse da brilhante Vila Madalena pela transformação humanizada da sociedade brasileira será escasso, para não dizer nulo.
Não era possível, com o ruído do ambiente, formar sequer uma ideia do rumo das conversas. Porventura a crise de civilização que a humanidade enfrenta seria assunto em algumas mesas?
Consciente de que pertenço a outro mundo, senti que Marx, redivivo, se por ali passasse, concluiria que o conceito de alienação, por ele definido, mantém plena actualidade.
A LUTA DO MST
Tive a oportunidade retomar contacto com o Movimento dos Sem Terra.
Falei durante horas, num convívio familiar, com João Pedro Stedile e outros dirigentes do MST. Duas palestras sobre a conjuntura internacional, uma na Escola Florestan Fernandes, em Guararema, São Paulo, outra em Santa Tereza, no Rio de Janeiro, permitiram-me durante os debates avaliar a qualidade de quadros de diferentes Estados que demonstraram um nível de informação elevado sobre a crise global do capitalismo e disponibilidade para lutar contra o sistema de opressão imperial.
A consciência de classe nos militantes do MST é uma exigência das duras condições em que o Movimento luta pela Reforma Agrária. Sem ela não teria sobrevivido.
Mais de quatro milhões de camponeses têm fome de terra num país onde o latifúndio é responsável pela existência de dezenas de milhões de hectares de terras improdutivas.
Lula comprometeu-se no programa da campanha que o levou à Presidência em 2002 a levar adiante a Reforma Agrária. Mas logo esqueceu a promessa.
O latifúndio mais insolente e desumano do mundo permanece no Brasil como ofensa aos excluídos do campo. No Norte há empresas cujas fazendas têm a dimensão da Bélgica.
A destruição da floresta amazónica, pulmão da humanidade, prossegue com a cumplicidade dos governos do PT. No Estado de Randónia a mata virgem quase desapareceu, devastada pelos plantadores de soja e os criadores de gado. No Mato Grosso, em municípios com o de Barra do Graças – duas vezes maior do que Portugal - a situação é similar. Há meio século, quando ali estive, era um paraíso verde; hoje a desertificação avança em amplas áreas da bacia do Rio das Mortes e do Araguaia.
O MST cresceu amparado pelas comunidades de base ideadas pela Teologia da Libertaçao.
A confiança que os seus líderes depositavam nos sentimentos cristãos de Lula era ilusória. Em 2011,apenas 22.021 famílias obtiveram lotes em assentamentos, o que representou 51% dos conquistados em 1995 no governo de Fernando Henrique Cardoso. O recuo acentuou-se com a chegada de Dilma Roussef à Presidência (menos 61% do que os lotes atribuídos em 2003, na época de Lula).
Diferentemente de Fernando Henrique, Lula e Dilma não desencadearam a repressão contra o MST. Mas ela prossegue através dos governos estaduais, de juízes e autarcas corruptos, aliados aos terratenentes.
A organização dos assentamentos assumiu facetas de epopeia nas vertentes social, económica e politica. O MST criou um movimento de massas com bases sociais em todo o país, instalou escolas, forma quadros, criou inclusive uma universidade popular.
Mas o avanço torrencial do agro-negócio, da agro-industria, estimulado pelos governos do PT, paralisou - é a palavra - a Reforma Agrária. O número de assentamentos caiu muito nos últimos anos. Sem ajuda oficial, hostilizado pelo grande capital e pela maioria dos partidos do sistema, o MST bate-se com a tenacidade dos gregos antigos cantados por Homero.
Uma das suas frentes de batalha é agora a luta contra o Código Florestal, aprovado pelo Congresso sob pressão dos grandes senhores do latifúndio. O MSP, como milhoes de brasileiros, exige que a Presidente Dilma Roussef vete esse diploma monstruoso que, a ser promulgado, reforçaria privilégios do latifúndio e deixaria as portas abertas para a destruição do que resta da mata amazónica.
O OUTRO BRASIL
Uma imagem distorcida da política de Lula corre mundo.
Com um estilo e um discurso diferentes, ele deu continuidade à política neoliberal de Fernando Henrique. É uma inverdade - repito- que a desigualdade social tenha diminuído durante os seus dois mandatos. Com as suas medidas assistencialistas reduziu a pobreza e a miséria, o que lhe garantiu uma enorme popularidade entre os excluídos. Mas o fosso entre os de cima e dos de baixo não diminuiu, é hoje mais profundo. A estratégia neodesenvolvimentista de Lula e da sua sucessora, ao engavetar o programa social-democrata, favoreceu o grande capital e as transnacionais. Contou e conta com o apoio do imperialismo, não obstante alguns aspectos positivos da politica exterior.
O prestígio de Lula entre aquilo a que Marx chamou o lupemproletariado tem funcionado internamente como um anestésico. Dificulta extraordinariamente a luta contra a exploração de que os trabalhadores são vítimas. Lula foi um sindicalista corajoso que desafiou a ditadura, contribuindo para lhe apressar o fim. No poder neutralizou a combatividade do movimento sindical e passou a utilizá-lo como instrumento passivo da sua política. O controlo da principal Central Sindical, a CUT, é hoje uma arma que o PT utiliza bem, favorecido pelo baixo nível de consciência social da maioria dos trabalhadores, sobretudo no Nordeste e no Norte.
No novelo de contradições que é o Brasil neste início do século XXI as assimetrias sociais são um obstáculo ao avanço da luta de massas. Existem condições objectivas muito favoráveis para a condenação da política actual. Mas faltam as subjectivas.
À passividade dos excluídos soma-se a alienação da esmagadora maioria da pequena burguesia, sobretudo dos estamentos preocupados apenas a com a sua ascensão social.
Neste panorama confuso, os desafios enfrentados pelas forças revolucionários assumem extrema complexidade.
No Brasil surgiu uma intelligentsia brilhante. Das suas grandes universidades – a de São Paulo e a Unicamp, de Campinas figuram na lista das melhores do mundo – saíram nas últimas décadas sociólogos, economistas, historiadores e cientistas políticos que pelo valor e criatividade das suas obras conquistaram prestígio mundial.
No campo específico da política, a diversidade de formações ideológicas traduziu-se em discursos por vezes antagónicos e de assimilação difícil o que, semeando a confusão, sobretudo após o tsunami que implantou o capitalismo na Rússia, não contribuiu para a mobilização das massas contra o sistema.
Comunista, foi sobretudo no diálogo fraterno com camaradas do PCB no qual militei nos anos da ditadura que me esforcei para acompanhar o movimento da História e da vida no Brasil contemporâneo, em vertiginoso, permanente, quase alucinante processo de transformação.
A reflexão sobre o que vi, ouvi, estudei nestas semanas reforçou paradoxalmente o meu optimismo.
Aproveitei um fim-de-semana para rever Paraty, uma cidade colonial, no litoral fluminense, que não lembra qualquer outra por mim conhecida.
Ali era embarcado para Lisboa o ouro que descia em tropas de muares das serranias das Minas Gerais.
Caminhando sobre lajes musgosas em ruelas belíssimas entre casarões do século XVIII, com o pensamento navegando do passado ao presente e no sentido inverso, a meditação sobre as pontes que ligam o tempo morto ao tempo vivo fez-me subir à memória o polémico livro de Stefan Zweig. A Historia, creio, vai transformar em realidade a previsão que lhe valeu uma chuva de críticas. Antevejo o Brasil como um país que anuncia dramaticamente a humanidade futura.
Vila Nova de Gaia, Abril de 2012