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Leônidas Dias de Faria

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Sinistra!

A filosofia marxiana e a formação do psicólogo

Leônidas Dias de Faria - Publicado: Domingo, 26 Fevereiro 2012 01:00

Leônidas Dias de Faria

O texto que abaixo se apresenta é um breve ensaio acerca dos ganhos passíveis de se obter por meio da inserção dos lineamentos fundamentais da filosofia de Marx como conteúdo a ser assimilado pelos estudantes de psicologia enquanto condição necessária para a futura absorção dos ensinamentos referentes à corrente sócio-histórica daquela ciência. Além disso, leva-se em conta neste escrito a positividade de se ministrarem tais fundamentos filosóficos como contribuição para a formação dos mesmos estudantes quanto a seu posicionamento crítico diante dos mais candentes desafios contemporâneos, diretamente relacionados à psicologia ou não. O texto foi originalmente publicado no nº 31 da revista Plural, do Curso de Psicologia da FCH-Fumec, da página 55 à 68.


I

Em atendimento à demanda central imposta à disciplina Filosofia II pela coordenação do Curso de Psicologia da FCH-FUMEC, a saber, o fornecimento de conteúdos elementares e de instrumentos teóricos fundamentais para a absorção futura do discurso específico da vertente sócio-histórica de inspiração marxiana em psicologia, busca-se principalmente estimular nos alunos a compreensão do modo especificamente humano de ser como dotado de caráter sócio-histórico, entendimento que deve ser tomado como base para sua investigação própria acerca dos fenômenos psíquicos que se passam na subjetividade de indivíduos singulares e que por vezes os atormentam, levando-os a precisar da ajuda de um psicólogo. Por meio de tal acentuação da sócio-historicidade do homem e das discussões diretamente relacionadas, bem como daquelas mais derivadas mas ainda pertinentes, que usualmente se instauram no contexto delineado pela problemática em pauta, acredita-se promover repercussões significativas também no tocante ao objetivo compartilhado por tal disciplina com as demais componentes do Núcleo de Formação Geral ao qual pertence a disciplina em questão, qual seja, o incremento das capacidades de reflexão, argumentação e posicionamento crítico do estudante quanto ao atual direcionamento dado pela humanidade – e por si mesmo, individualmente – à sua própria história, problemática filosófica posta como central em nossas aulas.

Compreendendo, pois, o humano como um ser que é de fato um produzir-se ininterruptamente por meio de apropriação cooperativa da natureza à sua volta e em si, o aluno percebe nos fundamentos da mencionada corrente teórica uma dupla isenção: contra os riscos decorrentes de se destacar o homem da natureza, tomando-o como dotado de privilégios concedidos por supostos seres sobrenaturais ou forças afins, por um lado; e contra os riscos oriundos de sua redução à mera naturalidade, quando concebido como regido por leis inexoráveis, diante de cuja implacabilidade e eternidade nada pode a vontade humana.

Abaixo são mais bem caracterizados alguns ganhos que se acredita poderem ser propiciados aos alunos do segundo período1 do referido curso por meio do tratamento dado ao longo do semestre aos temas abordados e ilustrados em sala, na óbvia dependência do esforço próprio dos mesmos estudantes em formar-se para futuramente intervir efetivamente em seu mundo enquanto psicólogos.

II

Dentre os mais fundamentais dos referidos ganhos potenciais está o entendimento de que a psicologia não consiste em uma ciência estritamente biológica, bem como, por outro lado, não se deve considerar como uma ciência que prescinda dos elementos biológicos na elaboração de seu discurso explicativo e de suas práticas de intervenção, inclusive terapêutica. Assim, o estudante de psicologia pode se compreender como um investigador pertinente ao campo das ciências da natureza, ao mesmo tempo em que pertencente ao campo das ciências humanas; ainda mais, pode compreender-se como vetor de uma das ciências em que se torna evidente com força mais significativa a arbitrariedade e a nocividade da distinção rígida que reiteradas vezes se empenha em traçar entre tais âmbitos de pesquisa, tomando-os como estanques.

A partir dos fundamentos apresentados, vê-se que o psicólogo opera uma apropriação conceitual dos fenômenos psíquicos que os compreende, ou deve compreender, como um conjunto de configurações possíveis de dada dimensão de entes biológicos em seu desenvolvimento sócio-historicamente condicionado, como se vai tratar abaixo com algum detalhe. Tais fundamentos a que se refere foram tratados em sala por meio de quatro idéias ontológicas2 elementares e inter-relacionadas, com que se acredita poderem ser apresentados aqueles lineamentos mais gerais que constituem a extensa e complexa base sobre a qual a corrente sócio-histórica da psicologia se posiciona para estudar uma das inúmeras e amalgamadas dimensões do ser humano, sua psique.

Tais idéias de caráter ontológico são:

1) a liberdade parcial dos homens com relação à naturalidade3, caracterizada pela margem de manobra experimentada e ampliada pelos mesmos homens com relação aos condicionamentos a que se vêem naturalmente submetidos, a qual é propiciada por suas capacidades de reflexão e decisão, naturalmente dadas a eles como potencialidade, mas atualizadas constantemente sob novas formas, conforme desafios concretos enfrentados;

2) a apropriação da natureza, que se caracteriza não só pela tomada de posse, mas pela moldagem tanto do mundo externo e de seu corpo, como também de sua própria subjetividade, pelos indivíduos humanos sócio-históricos;

3) a auto-produção sócio-histórica do homem enquanto gênero, que envolve a produção simultânea e inter-relacionada de um mundo e de um modo de ser no mundo propriamente humanos, a qual estabelece para os indivíduos o ambiente material e imaterial em meio ao qual e em relação ao qual eles se formam; e

4) a individuação sócio-histórica, que é a produção mesma dos próprios indivíduos por si, em suas múltiplas e multiplamente conectadas relações recíprocas, que não se deve confundir com a produção do indivíduo pela sociedade, mas deve entender-se como a produção do indivíduo na sociedade, em sua interação efetiva em um mundo compartilhado e co-produzido, sob constante interferência de suas próprias decisões e das decisões dos demais, com os quais convive de modo mais ou menos mediado.

De tais noções ontológicas elementares sobre o ser especificamente humano – encontráveis na obra de Marx, ainda que não nesses termos, desde sua ruptura com o idealismo, nos primeiros anos da década de 1840, até seus últimos escritos, datados de quatro décadas depois, em que esboça sua crítica ao narodismo russo e à etnologia evolucionista4 –, a primeira é referente à condição característica da relação dos homens com a natureza, a segunda refere-se ao processo ininterrupto por meio do qual o homem se vale dos recursos naturais para a satisfação de necessidades não-naturais, a terceira e a quarta concernem aos resultados constantes de tal processo, uma delas dizendo respeito ao homem em sua universalidade, como espécie, e a outra sendo relativa aos indivíduos, em sua singularidade.

III

Tomando como fundamento tais idéias tratadas em sala, pode-se evidenciar como imprescindível para a psicologia a análise das condições sociais sob as quais e em relação dinâmica, multidimensional e única com as quais cada indivíduo se forma em todas as suas diversas e interativas instâncias – em um processo contínuo, cujo fim se dá apenas com sua morte –, dado que os elementos especificamente psíquicos de tais indivíduos se constituem também em meio a tal processo complexo. Trata-se aí de uma interação deste indivíduo com os demais em meio ao processo de constituição conjunta de seu mundo e de seu modo de ser comuns, processo esse que é vivido de modo singular por cada membro da sociedade5. Com isso, situam-se sócio-historicamente os indivíduos, preservando-lhes necessariamente sua unicidade, sua já referida singularidade, não obstante sejam ressaltadas suas semelhanças, as quais se mostram como derivadas não só do fato de serem eles exemplares de uma mesma espécie, o que lhes confere uma proximidade biológica incontestável, mas também do fato de compartilharem e co-produzirem um mesmo contexto sócio-histórico em seu desenvolvimento próprio, o que lhes propicia uma proximidade de tipo bem distinto, embora igualmente incontestável.

A instância mais determinante do processo auto-formativo do humano de que se trata na disciplina em pauta, considerando-se o homem tanto da perspectiva do gênero como do prisma de cada indivíduo, é aquela instaurada pelas relações sociais de produção, que são ao mesmo tempo relações sociais de apropriação no sentido mais estrito de “tomar para si”. É nesse âmbito que se delineia o quadro geral em que se configuram e operam os processos simultâneos de socialização e individuação6, pois é aí que se põem os condicionamentos mais fundamentais quanto ao direcionamento do processo produtivo e quanto ao modo de favorecimento por esse processo a tais e quais indivíduos, por estarem situados nessa ou naquela posição em tal quadro de relações; e é a partir de tal quadro geral, sob motivação de problemas aí surgidos e com recurso aos mecanismos e instrumentos, materiais e imateriais, daí derivados, que a gama mais ampla de formas de intercâmbio humano se instauram e podem exercer sua influência sobre o desenvolvimento dos indivíduos sócio-históricos. É nesse substrato que se enraízam tanto os mecanismos mais evidentemente vinculados com a reprodução daquelas mesmas relações sociais de produção e apropriação – tais como o Estado com seus órgãos e códigos, cuja função primordial é justamente salvaguardar a propriedade privada e o funcionamento do mercado, o qual não é mais que a forma determinada pela mesma propriedade para o intercâmbio de trabalho humano, que no capitalismo envolve a própria força de trabalho humana como um dos seus itens de seu catálogo –7, quanto aqueles mais aparentemente distantes e independentes de tal âmbito, como a religião e as artes, por exemplo, nos quais se expressam de um modo ou de outro as agruras e os regozijos dos homens que em sociedade produzem materialmente sua vida comum, bem como se projetam seus anseios e receios. E sobre tal base voltam a repercutir cada um de tais elementos à sua maneira peculiar, o que deve ser dito para distanciar as considerações aqui feitas das grosseiras interpretações reducionistas e mecanicistas do pensamento de Marx, que postulam uma relação de determinação direta e unilateral da superestrutura pela infra-estrutura8.

Daí que excluir tais relações sociais de produção ou desconsiderá-las, na investigação acerca dos fenômenos psíquicos, é condenar o esforço teórico do psicólogo ao fracasso. Com tal descuido, o investigador pode ser conduzido a hipóstases (isto é, a idéias tornadas objetivas e autônomas em relação à atividade abstrativa humana, atividade que, embora localizada social e historicamente, é passível de arroubos universalizantes, absolutizantes, devendo ser alvo de constante vigilância) 9 e à sua aplicação a singularidades sócio-históricas, as quais são, por esse meio, distorcidas.

Por exemplo, erige-se em “natureza humana” um conjunto predominante de características sócio-historicamente desenvolvidas e assim tornadas passíveis de observação reiterada; daí se passa ao julgamento do comportamento dos indivíduos em conformidade a tal modelo, apresentando-os como conformes a tal “essência” ou como desvios aberrantes em relação a ela, desencadeados por processos que supostamente nada têm a ver com o convívio cooperativo de tais indivíduos em seu contexto específico, mas de algum modo marcando-os como díspares com relação à presumida essência humana imutável, que pode ter caráter biológico ou metafísico. Por essa perspectiva, vêem-se “monstros” surgirem ex nihilo, muitas vezes pela vontade de deuses e outras ficções “sobrenaturais” – termo que aqui se deixa entre aspas, dado que nada pode ser taxado como literalmente sobrenatural a não ser por uma inteligência que conheça por completo os fenômenos reais e potenciais da natureza, sendo, portanto, capaz de julgar o seu suposto transbordamento, o que não é o caso da inteligência que por essas linhas busca expressar-se.

Ou, em alternativa a isso, recai-se na completa arbitrariedade, na completa autonomia dos processos psíquicos, não apenas com relação a uma suposta “natureza humana” ou “essência humana metafísica”, devidamente excluídas da investigação, bem como de qualquer outra instância determinante ou influente, biológica ou social (isoladas ou em conexão), incorrendo-se em equívoco distinto. Tem-se assim a convicção de que os processos psíquicos se dão à revelia de qualquer determinação concreta do indivíduo igualmente concreto em que se operam, embora venham ou possam vir a repercutir em sua vida efetiva, em suas relações objetivas com o ambiente e com os outros de seu gênero de modo intenso, às vezes assolador.

Há também quem confira caráter determinante a instâncias secundárias, de ordem simbólica ou coisa que o valha, mas perdendo por completo o “chão” concreto em que se desenvolvem e operam as interações simbólicas, recaindo-se em uma espécie de idealismo. A psique dos indivíduos fica aí à mercê de “jogos de linguagem” e fenômenos intersubjetivos afins, que seriam os determinantes da própria interação concreta. Repercutindo as Investigações filosóficas de Wittgenstein, invertem-se os papéis concretamente desempenhados no mundo real, no qual a interação real impõe as demandas ao espírito, e impõe aos espíritos que querem “jogar” entre si as condições mais elementares a serem observadas, as quais servem de referência ou lastro para as próprias regras de cada “jogo”.

IV

A uma análise embasada nas idéias acima aludidas, as psicopatologias aparecem como enfermidades desenvolvidas durante a operação do indivíduo no bojo de sua complexa interação com o ambiente sócio-historicamente configurado; e não como enfermidades que contrai indiferentemente àquela operação. Tais males psíquicos, que se geram a partir de condições fisiológicas sãs ou não, repercutem de modo negativo em tais condições animais, repercutindo negativamente também nas capacidades de intervenção objetiva deliberada que nos indivíduos humanos se configuram a partir de tal animalidade. Assim, tais patologias são comprometimentos objetivos e subjetivos oriundos da ação real de indivíduos concretos em seu contexto efetivo, sob motivação de impulsos diversos e sob o condicionamento de circunstâncias materiais e imateriais inúmeras, todos devendo sua existência à interação material dos agentes humanos.

Sobre a mesma base, pode-se pensar também no processo formativo das individualidades, compreendendo-o, evidentemente, como não sendo restrito às crianças, as quais ilustram apenas os primeiros passos dessa ininterrupta constituição. Esse processo constitutivo consiste em uma configuração sócio-historicamente operada sobre elas por obra de agentes “formadores” diversos, dos quais constituem parte significativa as próprias individualidades que se formam. Assim, paralelamente e influenciando o processo natural de desenvolvimento de funções elementares ou complexas, mas estritamente biológicas, ocorre a formatação sócio-histórica de tais funções, que as qualifica de fato segundo as demandas de um mundo que é co-produzido pelos homens e que lhes fornece o conteúdo e exige dada forma para suas intenções etc., o que se pode ilustrar com o pensamento, a linguagem, a vontade, os sentimentos, os valores e demais elementos da autoconsciência de tais indivíduos em ininterrupta formação objetivo-subjetiva.

Pelo que se viu, pode-se afirmar que é a atividade externa dos indivíduos o que impulsiona, estimula, instiga, bem como formata (embora não de modo estrito, mecânico) a atividade “interna”, “puramente subjetiva” dos entes humanos, que assim se evidencia de fato “maculada” pela materialidade. É a problemática efetiva de um indivíduo concreto sócio-historicamente situado o que irá demandar dele essa ou aquela aplicação de seus potenciais, que a cada situação em que se empenham são reconfigurados, dando origem a novas capacidades efetivas e estabelecendo novos potenciais, que podem vir a tornar-se habilidades efetivas ainda mais derivadas e específicas, se a situação propícia se mostrar etc. Assim, a atividade concreta de tal indivíduo disponibiliza nele mesmo habilidades efetivas e novas possibilidades de desenvolvimento, o que se pode ilustrar com o exemplo significativo de alguém que aprende a ler e escrever e, assim, abre caminho para outras qualificações que apenas por essa via se fazem possíveis.

V

A reconstrução subjetiva única do mundo objetivo por cada indivíduo, o conjunto fluido e instável de suas representações, de suas crenças acerca dos objetos e de suas relações etc., que inclui a “imagem” que faz de si mesmo e serve de guia para a sua ação, é resultante do enfrentamento efetivo de demandas (reais ou ilusórias) provenientes desse mundo – que é reproduzido constantemente, de forma mais ou menos significativamente modificada a cada instante, pelos indivíduos em interação.

Assim, embora singular, a articulação de tais representações etc., bem como cada um dos elementos que nela se articulam, são dotados de caráter sócio-histórico, nada tendo a ver com uma imaginária “natureza” ou “essência” do homem, mas com a interação efetiva dos indivíduos concretos em um ambiente posto pela atividade humana pregressa e reposto pela atividade humana atual. Portanto, a linguagem, objeto de merecido destaque na investigação psicológica, mostra-se como um elemento prático deste mundo co-produzido pelos homens ao longo dos tempos, um instrumento de sua operação efetiva por entes humanos concretos em cooperação, exploração conjunta do ambiente e de si (com base em parâmetros legados e absorvidos de modo mais ou menos fiel na sucessão de gerações) que não só implica, mas qualifica, dá forma à elaboração simbólica e discursiva da experiência objetiva. Desse modo, não há algo que se possa definir como uma interação puramente lingüística, exclusivamente simbólica e discursiva, contrariando muitos dos pressupostos filosóficos de que tendem a se servir alguns teóricos da pisque e do homem em geral. Qualquer diálogo ou interação discursiva tem um tema, um problema concreto que o condiciona, ou pode ser reconduzido a um. Os problemas mais elementares da lógica, por exemplo, são provenientes de dificuldades manifestas na prática discursiva efetiva, que se dá em contexto concreto visando a objetivos reais; deste modo, pode-se dizer dessa ciência que ela seja vinculada à prática, do mesmo modo que o é a psicologia – esta, à sua maneira própria, evidentemente, que é mais direta que é aquela da lógica. O fim último da linguagem é, pois, a auto-efetivação subjetivo-objetiva de indivíduos concretos sócio-historicamente interagentes e, portanto, mutuamente influentes. O trânsito “intersubjetivo” propiciado pela linguagem é, de fato, elemento ou momento da interação entre coisas (as próprias pessoas, em sua inexorável materialidade), ainda que em tal interação haja inúmeros momentos em que predominem significativamente aspectos subjetivos de tais objetos. Trata-se, no campo da interação lingüística, de uma espécie de internalização da objetividade que é ao mesmo tempo externalização da subjetividade, na interatividade concreta, material – o que ocorre por mediação simbólica, por meio de significação etc.

A complexificação das necessidades humanas pela própria ação refletida e voluntária dos homens, em meio a seu processo interativo de apropriação da natureza à sua volta e neles mesmos, expõe freqüentemente os indivíduos à situação de fazerem esforços inusitados, tanto físicos como mentais, o que acarreta neles, também com freqüência, desenvolvimentos inéditos, que se apresentam eles próprios como pressupostos para novas demandas e assim por diante, como dito acima. A linguagem é fruto de tal processo, pois é a necessidade de interação cada vez mais complexa entre os indivíduos concretos o que exige a formulação e a sofisticação de tal instrumento de mediação, que não só se mostra útil, mas se apresenta como indispensável para o acesso necessário por cada um a idéias e intenções dos demais com quem coopera – bem como indispensável a cada um como meio de acesso a si.

VI

O psiquismo é um elemento entre outros do indivíduo concreto sócio-histórico. A subjetividade é, sempre, uma dimensão de dado objeto, da coisa humana que é uma pessoa real. Quando se trata de sujeitos, trata-se da subjetividade de entes humanos concretos, cuja configuração de capacidades etc. consiste em uma constante atualização sócio-histórica de potencialidades naturais, por dar-se em meio ao processo de produção conjunta, simultânea e inter-relacionada do mundo humano e do modo humano de ser no mundo.

A racionalidade, a sensibilidade, a moralidade, enfim, todo o rol de âmbitos, dispositivos, eventos etc. subjetivos se configura por meio do processo de apropriação do ambiente pelos indivíduos em interação. Daí que conceber a razão, por exemplo, como diferencial exclusivo e acabado do homem, é um procedimento infundado, embora usualmente adotado. Além do fato de as emoções e os valores, por exemplo, serem tão distintivos dos homens quanto a sua razão, deve-se notar que o homem não é racional ou age racionalmente em tempo integral, tendo mesmo que se esforçar para fazê-lo em algumas situações. E deve-se notar também que razão, assim como emoções, sensibilidade etc. não são dados ao homem prontos pela natureza ou o que for, mas são frutos de qualificação sócio-histórica de potencialidades naturais.

O pensamento está presente na ação, tornando-a distinta daquela de outros seres vivos. É certo. Mas, é a ação concreta o que fornece o conteúdo, bem como determina a forma de seu exercício. A ação pretendida e executada com vistas a sanar uma demanda, e retrospectivamente considerada como preparação para ação semelhante no futuro, é o contexto em que se formata a razão. E é a demanda específica de cada caso de uma sucessão o que impulsiona sua formatação geral.

Desse processo de demandar, traçar planos e executá-los em meio a um contexto de cooperação concreta decorrem a qualificação e a abertura para novas demandas, cuja complexidade atinge níveis cada vez mais elevados, tornando-se cada vez mais explícita a inadequação de se buscar explicá-lo por leis naturais.

A cultura, quando entendida em seu sentido usual e restrito, cingido à sua porção mais espiritual – vista como não tendo qualquer raiz ou repercussão na produção material da vida e excluindo de seu bojo as próprias relações pelas quais se dá essa produção, que se vêem naturalizadas – se converte em mistério. Para compreendê-la adequadamente, há que se reconhecer que tal porção espiritual da cultura não é autônoma. A produção material propicia algo do contexto e dos recursos para ela, condicionando-a com dado tipo de necessidade, por um lado, e as próprias relações por meio das quais se dá a produção material propiciam-lhe os aspectos restantes desse mesmo contexto, assim como dos recursos que neles precisa-se para a sua elaboração, condicionando-a a outro tipo de necessidade, por outro lado. Desse modo, a moral, a religião, a arte são criações condicionadas sócio-historicamente, em ambos os aspectos mencionados acima, em sua articulação própria.

Há, de certo e por regra, criação consideravelmente “arbitrária” de demandas pelos homens em sociedade, bem como é normal que necessidades assim criadas moldem em níveis diversos inúmeros de seus processos produtivos materiais. Em casos extremos, carências desse tipo podem conduzir mesmo ao estabelecimento de dadas relações sociais de produção adequadas a sua satisfação regular, o que pode ser ilustrado pela intenção de preservação do corpo do Faraó egípcio para uma suposta vida eterna e todo o rol de necessidades daí derivadas, com impacto em toda a organização produtiva de seus súditos em todo o reino. Mas, as condições reais, materiais e imateriais, configuram as demandas possíveis. É necessário um ambiente natural relativamente favorável à moldagem pretendida (e aqui, para rebater objeções, rememora-se o fato de que mesmo uma missa demanda manipulação objetiva do ambiente para que aconteça), bem como são imprescindíveis as capacidades de moldagem desse mesmo ambiente e os mecanismos sociais por meio dos quais tais capacidades se põem em uso na lida com tal ambiente, o que só se pode disponibilizar por meio de uma bagagem cultural arduamente constituída ao longo do tempo, por instrução direta e indireta, oral e posteriormente escrita, referente a técnicas, rituais e outros padrões de ação, que são mais ou menos respeitados pelas novas gerações.

Da perspectiva aqui adotada só o que se pode chamar de condição humana é a liberdade parcial e sócio-historicamente qualificada dos grupamentos humanos (que no momento atual se articulam de modo cada vez mais intenso e profundo em um todo extraordinariamente extenso e complexo, ainda que de modo brutal e segundo uma lógica particularmente interessada). Essa liberdade não consiste em um controle absoluto do ambiente e de si em relação com o ambiente, menos ainda em uma ilusória indiferença com relação ao ambiente, compartilhada por alguns filósofos pretensamente radicais com os mais resignados monges religiosos. Tal liberdade não é mais que o conjunto de habilidades necessárias para o manejo relativo e custoso do processo auto-produtivo do humano, o que pode ser pensado analogamente acerca do gênero e do indivíduo. Além disso, como se viu, tal liberdade é passível de incremento virtualmente infinito. Segundo se defendeu, ela é decorrente de atos de reflexão e de vontade, ou seja, de problematização por parte de indivíduos humanos acerca de sua relação com o ambiente, que é também uma relação consigo mesmos e com os outros, por outro um lado, e de decisões de implementar as projeções de intervenções futuras decorrentes da reflexão, por outro. Esta última capacidade, a vontade, não deve ser confundida com os desejos, anseios, que são afetos, paixões. Sobre estes, reitera-se aqui apenas que também são sócio-históricos em sua forma e seu conteúdo, de modo que, não obstante sua inegável singularidade, o indivíduo se mostra como um objeto sócio-histórico mesmo nas mais profundas instâncias de sua alma.

***

Leonidas Dias de Faria é Mestre em Filosofia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – UFMG, com dissertação acerca do condicionamento sócio-histórico da atividade teórica na obra de Marx, é professor de filosofia nos cursos de Psicologia e Comunicação Social da Faculdade de Ciências Humanas – FUMEC e discente do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Fafich-UFMG, com projeto de doutoramento intitulado “A última década de Marx: caráter e importância das críticas simultâneas à Etnologia evolucionista e ao Narodismo na consolidação da noção marxiana de História”, aprovado em novembro de 2010.

1 Convém notar que, a esta altura de seu percurso formativo, os estudantes já cursaram a disciplina Filosofia I, de modo que já lhe foram ministradas algumas noções teóricas e históricas que lhes propiciam a base necessária para a absorção crítica do conteúdo específico da Filosofia II. Tal observação se faz necessária para que se deixe claro que pela ênfase dispensada ao pensamento de Marx não se paga o preço da ignorância com relação a outras vertentes filosóficas concorrentes.

2 Uma observação importante a ser feita é aquela de que o sentido aqui atribuído ao termo “ontológico” não permite sua confusão com o termo “metafísico”, dado que se trata aqui de um esforço estritamente humano e mundano de reconhecimento do ser-precisamente-assim de entes concretos, que existem de fato, em suas múltiplas relações recíprocas efetivas, ao invés de tratar de essências intangíveis ou de princípios eternos e indiferentes às coisas mesmas e sua utilização pelos homens, característicos da filosofia especulativa contra a qual se bateu Marx, desde 1843. Para o tratamento da obra do filósofo alemão como tal “analítica das coisas”, que não consiste em um esforço especulativo tal como o mencionado acima, tampouco se constitui em um entre os inúmeros discursos do método ou contra o método, respectivamente típicos das filosofias moderna e pós-moderna, remeto o leitor ao livro Marx – estatuto ontológico e resolução metodológica, de J. Chasin.

3 Pode-se falar do caráter limitado, mas passível de incremento, também acerca da liberdade de que goza o homem com relação à sua própria objetividade sócio-histórica, o que quer dizer que seu domínio sobre si enquanto gênero que se autoproduz no mundo não é absoluto, dado que eles próprios criam para si, de modo mais ou menos inadvertido, novos constrangimentos, em seu afastamento cooperativo das barreiras naturais por meio da apropriação daquele mundo. E tais grilhões podem se lhes apresentar como impassíveis de remoção por sua própria atividade conjunta, não obstante o fato de deverem sua gênese justamente a tal interação e de por isso poderem ser por ela removidos. Essa aparência de imutabilidade, bem como a dificuldade efetiva de transformação de tal contexto, ocorre de modo mais acentuado, ao lado de inúmeras formas de estranhamento, em formações sociais marcadas por modos alienados de produção, os quais têm como determinações mais fundamentais a cisão do tecido social em classes antagônicas, a conseqüente dominação de uns indivíduos por outros e o esgarçamento das relações comunitárias em geral que nesse contexto se verifica. Em todo caso, trata-se de modos distintos de necessidade a condicionar a liberdade humana, aquela da natureza e a que se engendra por meio de sua apropriação cooperativa pelos homens; deste modo, a manobra que os humanos podem operar quanto a uma e outra ordem de determinações varia consideravelmente, demandando, cada uma, qualificações radicalmente distintas, embora complementares em qualquer processo de transformação real.

4 Elaborados com extraordinário vigor em obras como os Manuscritos econômico-filosóficos e A ideologia alemã, tais alicerces, que se tornam mais robustos ao longo dos anos, sustentam não apenas a trama categorial específica dos Grundrisse e de O capital, mas também as considerações articuladas nos rascunhos da Carta a Vera Zasulich e nos Apontamentos etnológicos.

5 Cabe notar que a sociedade, em meio à qual se formam os indivíduos, é tomada aqui em sua universalidade, não havendo sua restrição a seus laços mais imediatos e perceptíveis, mas estendendo-se à totalidade de interações entre aqueles indivíduos. Trata-se aqui de uma abordagem mais profunda e abrangente da individuação sócio-histórica, norteada pela consciência de que são inúmeras as determinações sociais que condicionam profundamente a formação individual sem sequer serem imaginadas como existentes pelos indivíduos que se formam, não podendo por isso ser negligenciadas no labor psicológico.

6 É nesse âmbito que se põe em pauta a problemática da divisão da sociedade em classes e dos impactos daí decorrentes na formação de cada um de seus componentes individuais. Sobre esse ponto, adianta-se aqui que, segundo a leitura proposta, as classes não determinam de modo absoluto aqueles que as compõem, assim como a formação de um indivíduo pode conter elementos que repercutem interesses e perspectivas de classes outras que não a sua própria. Para uma discussão mais aprofundada sobre este assunto, remeto o leitor ao livro Democracia contra capitalismo: renovação do materialismo histórico, de Ellen Meiksins Wood.

7 É necessário notar que a ocorrência do Estado é restrita a algumas formas sociais, marcadamente aquelas caracterizadas pela cisão em classes, de modo que não é ele um elemento universalmente presente na vida social humana, bem como não o é a própria política, dentro ou fora dos marcos estatais, não obstante sua inflação por obra da filosofia francesa etc. Também como restritos a formas sociais particulares devem ser entendidas as artes e a religião, não podendo as mesmas ser secretadas em algum escaninho de uma suposta essência humana imutável, como não o pode a política, como se viu.

8 Também sobre este tópico é instrutivo o recurso ao já referido livro de Wood, bem como se podem consultar com grande proveito o livro de J. Chasin, também aludido, o artigo “Usina onto-societária do pensamento”, de Ester Vaisman, e a dissertação de mestrado de Leônidas Faria, “Determinação sócio-histórica das formações ideais em ‘Teorias da mais-valia’ de Marx”. Em todos estes textos, apontam-se, na obra marxiana, elementos usualmente confinados pelos leitores na assim chamada superestrutura como existentes necessariamente no próprio processo produtor de riqueza imediato, o trabalho mesmo, e em sua organização social, desde a mais elementar até a mais complexa interação produtiva.

9 Para uma crítica exemplar de tal procedimento, remeto o leitor ao ensaio “O Mistério da construção especulativa”, de Marx, que se encontra em um de seus livros em parceria com Engels, A sagrada família.


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