Quando escreveu o romance 1984, George Orwell inventou a novilíngua, idioma oficializado pelo governo hiperautoritário do Grande Irmão. O objetivo era simples: através da condensação de palavras e da supressão de alguns de seus sentidos, restringia-se o escopo do pensamento dos habitantes de Oceania. Uma vez que as pessoas não pudessem se referir a algo, isso passava a não existir. Fora da literatura, a mesma estratégia é há tempos utilizada pelas classes dominantes em busca da perpetuação de sua hegemonia. Foi assim com a “criminalização” da palavra radical, e percebemos que continua a ser assim quando olhamos, por exemplo, para a recente medida tomada pelo governo de Sebastián Piñera no Chile, no sentido de substituir o termo “ditadura” por um genérico “regime militar”, quando se trata do governo de Augusto Pinochet, iniciado após o golpe de Estado de 11 de setembro de 1973.
Pela proposta do Executivo chileno, aprovada no Conselho Nacional de Educação, o termo “ditadura” será substituído na grade curricular do ensino básico por “regime militar”. Argumenta o governo que esta ideia, puramente técnica, possibilitará um maior debate acerca dos fatos ocorridos entre setembro de 1973 e março de 1990 (a saber, o período em que vigorou a ditadura Pinochet), bem como a comparação de "diferentes visões sobre a quebra da democracia no Chile, o regime militar e o processo de recuperação da democracia no final do século XX, considerando os distintos atores, experiências e pontos de vista". Os congressistas da direita chilena, sustentadores do governo Piñera e eternos defensores de Augusto Pinochet, argumentam que o regime comandado por este último não pode ser chamado de ditatorial, pois “passou o poder, democraticamente, para os civis”.
Ora, aqui duas questões precisam ser levantadas. Primeiramente, urge deixar claro que é inconcebível que se estimule a existência de “distintos pontos de vista” acerca do caráter ditatorial do regime iniciado em 1973. Mesmo o maior dos conservadores há de admitir que, a despeito de como se deu a transferência de poderes no final dos anos 1980, o governo Pinochet encaixa-se perfeitamente no conceito de ditadura elaborado por Platão e Aristóteles: um regime pautado eminentemente na ilegalidade, que viola leis e regras preestabelecidas pelo rompimento da legitimidade do poder, criando novas regras de acordo com as conveniências para a sua perpetuação.
Segundo os pensadores gregos, os tiranos são ditadores que ganham o controle social e político pelo uso da força e da fraude: a intimidação e o terror estão entre os métodos usados para conquistar e manter o poder. Qualquer semelhança com o que existiu no Chile a partir de 1973 não é mera coincidência. Concomitantemente, não podemos deixar de lembrar as constantes violações de direitos humanos que tiveram lugar no Chile de Pinochet, com um saldo (ainda não totalmente contabilizado) de mais de quarenta mil mortos e desaparecidos, e outras centenas de milhares de presos, torturados e exilados. É inequívoco, pois, que, entre 1973 e 1990 o Chile viveu submerso numa ditadura sangrenta e feroz.
Em segundo lugar, é preciso desmontar a ideia de que o uso da expressão “regime militar” em detrimento de “ditadura” é um ato meramente técnico de pouca importância, mas está embebido em conotações políticas e ideológicas. Com a substituição (que, vale ressaltar, também é arduamente defendida pela direita brasileira, como pudemos perceber nas recentes discussões acerca da criação da Comissão da Verdade), o governo Piñera afronta fortemente a luta latino-americana pela memória, verdade e justiça, pois estará camuflando parte importante da história chilena ao não chamar de ditadura o que ditadura foi, ao pretender ensinar nas escolas que é incorreto chamar o general Augusto Pinochet de ditador.
Utilizando um termo desprovido do peso que possui a palavra “ditadura”, o que se vê é uma tentativa de abrandar e até mesmo omitir os diversos crimes de lesa humanidade perpetrados no período em questão; de abrandar a total ilegalidade do governo de facto estabelecido após a queda de Salvador Allende. Vê-se uma clara tentativa de apagar a memória coletiva não apenas do Chile, mas de toda a América Latina, que por décadas padeceu com a existência de brutais ditaduras civis-militares.