Certa vez o escritor José Saramago afirmou que o mais elementar direito fundamental não constava na Declaração Universal de 1948: o direito ao dissenso. Em nome da manutenção de um sistema que se mostrou insustentável, que destrói o meio-ambiente e a própria vida humana, criminaliza-se o simples fato de pensar diferente, a reles audácia de desejar — e lutar por — outro modelo de civilização. É terminantemente proibido ter idéias que afrontem o “consenso” construído (imposto) pelos donos do poder. Aquele que se atreve a violar tal proibição deve estar pronto para sofrer as conseqüências. Criminalizam-se idéias, criminaliza-se o outro, criminaliza-se o dissenso.
Para ilustrar tal criminalização do dissenso, utilizarei um evento ocorrido no dia 06 de dezembro de 2011, em Niterói (RJ), cidade na qual resido. A exemplo dos movimentos de ocupação que estão brotando em todo o mundo (inclusive em outras cidades brasileiras), diversos jovens da cidade se organizaram e construíram o Ocupa Niterói, fazendo críticas não só ao caráter insustentável do sistema, mas também aos governos federal, estadual e municipal. Os jovens ocuparam uma praça em um bairro de classe média alta da cidade na manhã do dia 06. Guardas municipais e policiais militares (estes últimos portando fuzis) chegaram à praça por voltar das 21h do mesmo dia, ordenando que a ocupação fosse desfeita imediatamente, para que a praça fosse trancada (Niterói é um dos poucos lugares do mundo que cerca grande parte de suas praças públicas). Os ocupantes argumentaram que estavam respaldados pela Constituição (em seu artigo 5º, inciso XVI) e que, em acordo com o Código de Posturas Municipal, as autoridades só poderiam desmanchar a manifestação se tivessem em mãos uma ordem judicial de reintegração de posse.
Os agentes então entraram em contato com o Secretário de Segurança Pública da cidade, Coronel Ruy França. Ao fim do diálogo, um dos policiais dirigiu-se aos manifestantes e afirmou que, se a ocupação não fosse desfeita imediatamente, a Polícia e a Guarda seriam obrigadas a tomar todas as medidas disponíveis, inclusive a força, para fazer valer a ordem de desocupação dada pelo Secretário Municipal. Os jovens, que em assembléia haviam decidido permanecer na praça até que um mandado judicial fosse apresentado, fizeram um cordão de isolamento em volta das barracas e informaram os policiais de sua decisão. Foi então que guardas e policiais lançaram-se contra os manifestantes, expulsando-os da praça com a habitual truculência, e passaram a desmanchar as barracas. Diálogo, não houve. Mesmo confrontados com a Constituição Federal e com diversas leis estaduais e municipais, os “agentes da lei” usaram de força e truculência para acabar com uma manifestação pacífica.
De onde vem essa falta de vontade de diálogo por parte das autoridades públicas? De onde vem essa ânsia de repressão, digna dos tempos ditatoriais? É preciso lembrar que esse fato ocorrido em Niterói não é um acontecimento isolado. Nas últimas semanas, polícias do mundo inteiro agiram no sentido de reprimir manifestações semelhantes. Dois dias antes de Niterói, foi a vez da Ocupa Rio ser desocupada, com a afabilidade de costume. Concomitantemente, movimentos sociais são reprimidos de maneira constante sempre que se manifestam contra a ordem instituída das coisas, sempre que ousam questionar. A resposta é simples: os donos do poder não gostam de perguntas. Os donos do poder detestam ouvir os gritos dos excluídos e dos oprimidos pelo sistema que tanto lucro lhes dá.
Num mundo em que o dissenso é proibido, torna-se mais necessário do que nunca que vozes se levantem contra o falso consenso construído (imposto) pelas classes dominantes, pelos donos do poder, com o intuito único de perpetuar seu controle sobre o mundo e seus lucros, custe o que custar. É aí que se inserem a repressão aos movimentos de ocupação, a repressão aos movimentos sociais, a aprovação do novo Código Florestal, a construção de Belo Monte, etc. aquele que pensa diferente, quando não é visto como perigoso, é ridicularizado. Ou é ridicularizado até ser entendido como perigoso. E então deve ser eliminado, de acordo com a lógica daqueles que, à custa dos trabalhadores, usurparam e hegemonizaram o poder. Dorothy Stang, José Cláudio e Maria do Espírito Santo, Chico Mendes e tantos outros são a comprovação cabal de tal afirmação.
Portanto, dissentir é essencial, justamente para deixar claro que esta ordem instituída não é benéfica para os povos, e que os que a defendem não nos representam. E a luta por outro mundo onde sejamos todos, como queria a revolucionária Rosa Luxemburgo, socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres, não pode parar. É dever de todos os que hoje se manifestam contra os desmandos do sistema capitalista e contra as arbitrariedades dos diversos governos assumir uma postura verdadeiramente revolucionária, em nome de uma outra civilização, e negando sempre o insustentável discurso em prol das reformas, que existem, essencialmente, para a manutenção de uma ordem que provou que não consegue conviver com a proteção do meio-ambiente e com dignidade da pessoa humana. Provou que precisa ser erradicada. E será.