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João Sousa

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Na Galiza para o Sul

Cantigas e mais cantigas

João Sousa - Publicado: Terça, 08 Novembro 2011 01:00

João Sousa

Ao estar eu sentado em frente ao televisor que reside na minha sala, pelo fim da tarde, vendo a rtp2 (o único canal quase público que tem uma programação que quase vale a pena), recebo uma notícia espectacular: a FCSH (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa) colocou online um site com todas as cantigas medievais galego-portuguesas, de todos os cancioneiros, com hipótese de escolher qual queremos consultar, que género, que tipo, que temas e subtemas, etc.


Apesar de não ser uma novidade enorme é, sem dúvida, uma ferramenta espectacular. Não só temos acesso às cantigas transcritas como também aos manuscritos (em formato .jpg ou .pdf) o que torna alguns trabalhos de investigação ou apenas consulta bastante mais fáceis.

A hiperligação para tal portal é: http://cantigas.fcsh.unl.pt/; e creio que deve ser o mais divulgado e utilizado por toda gente o mais possível.

No entanto há algo que me saltou à vista quando executei a minha primeira consulta (como sempre me saltam a vista coisas óbvias sempre que trabalho com a lírica medieval galega) – nada que tenha a ver com o funcionamento do site que, até agora, funciona às mil maravilhas – no que se trata ao léxico, à sintaxe e à grafia de uma cantiga que calhei a ler. Ao fazer uma pesquisa seleccionei "Cancioneiro da Ajuda", "Escárnio e Maldizer", e o Tema pelas instituições mencionadas (neste caso o "Papado"). Na pesquisa por versos escrevi apenas "car". Consulto então a cantiga de Lopo Lias (e ao clicarmos sobre o nome trovador remete-nos para a biografia possível, o que também é inovador) "A mi quer mal o infançom".

O que me surpreende, ou não me surpreende assim tanto, é quantidade de provas existentes numa cantiga de um galego, escrita em galego (que só mais tarde se pode chamar galego-português), que a norma oficial da língua galega é realmente feita de uma artificialidade desde a sua raiz. É lógico que a língua galega de hoje não poderia ter sido reconstruída apenas nas provas escritas do galego medieval, mas não deveria certamente ter optado por substituir todos os "on / om / ons / oms" e até "ão / ãos" por "ión / ións", ou todos os "j / g / z" por "x", ou permitir a adulteração do nome da sua terra "Galiza" pelo castelhano "Galicia". Impressionante como a maior parte dos anti-reintegracionistas ridicularizam as nasais finais expressas em "-om" quando na lírica medieval essa seria a norma de qualquer galego-falante e mais, de qualquer nobre de qualquer corte peninsular que pretendesse escrever lírica culta (uma vez que era o galego a língua de elite peninsular). Para rematar tudo o que digo, e porque cada vez que leio uma nova cantiga encontro todas as provas de que o português é só uma evolução do que o galego não pôde ser pelos séculos de repressão e manipulação social e política, deixo-vos a cantigas com sublinhados meus:

"A mim que mal o infançom

a mui gram tort'e sem razom,

por trobadores d'Orzelhom

que lhi cantam a seu brial

e pesa-m'en e é-mi mal

que lh'escarnirom seu brial

que era nov'e de cendal.

Quantos hoj'em Galiza som,

atá em terra de Leon,

todos com o brial "colhom"

dizem e fazem-no mui mal;

e pesa-m'en e é-mi mal

que lh'escarnirom seu brial

que era nov'e de cendal.

(...)"

Temos a utilização do "ç" + "-om" como reclama a norma reintegrada (em palavras como instituiçom ou negaçom), temos terminações de vermos do presente do indicativo em "-am" e "-om" ao contrário do que a norma propõe "-an" ou "-on". Entre outros exemplos que são óbvios.

Impressionante como, com o argumento de facilitar o processo de revitalização do galego na Galiza, a norma oficial conseguiu eliminar da escrita os elementos que hoje poderiam formar parte do imaginário dos galegos, que poderiam transformar a situação actual em algo mais galego e menos castelhanizado. Mas, infelizmente, há mais galegos que "botan de menos" à Galiza cá do Sul do que galegos que "têm soidades/saudades", etc.

"Nom queredes viver migo

e morro [eu] com soidade,"

Esta é a de Fernão Fernandes Cogominho, entre tantos outros portugueses e galegos que escreviam e sentiam as mesmas coisas, criticavam e denunciavam os mesmos problemas, que partilhavam aquilo que hoje nos separa.


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