Os motivos do enfraquecimento crônico do Estado Democrático de Direito são vários. Primeiramente podemos citar a ascensão e o fortalecimento das milícias, verdadeiras máfias compostas por policiais, bombeiros militares, agentes penitenciários e outros agentes públicos que tomam de assalto determinada área e, sem precisar de qualquer tipo de disfarce (visto que, quando não possuem o apoio das autoridades constituídas, têm ao menos sua conivência garantida), passam a exercer ostensivo controle econômico, político e social sobre ela. Freixo presidiu em 2008, na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), a CPI das Milícias, responsável pelo indiciamento de mais de 200 milicianos, entre eles vereadores e deputados estaduais.
Por seu trabalho na CPI, Freixo recebeu diversas ameaças de morte, intensificadas recentemente, o que fez com que a Anistia Internacional o convidasse para se retirar momentaneamente do país, enquanto seu esquema de segurança é revisto. O que se deve ter sempre em mente é que as milícias não representam a ausência do Estado, mas um Estado leiloado, pois contam com projeto de poder, domínio de território e influência eleitoral. Isso diferencia as milícias de todas as outras formas de crime organizado existentes no Rio. Na medida em que a população de determinada área fica submetida a grupos criminosos que têm domínio sobre praticamente todos os aspectos de suas vidas, não se pode afirmar, ao menos sem colocar em risco sua honestidade intelectual, que há garantia dos direitos fundamentais e respeito à dignidade da pessoa humana nas áreas controladas pelas milícias. Assim como não se pode afirmar que as milícias são, hoje, combatidas pelos governos municipais e estadual. Seus braços econômicos continuam praticamente intactos e, até que sejam neutralizados, esse tipo de máfia continuará a se espalhar.
Devemos voltar as atenções também para outro aspecto da política de segurança pública do RJ que, junto ao não-combate às milícias, expõe os reais interesses das autoridades estaduais. A instalação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) em determinadas comunidades — vale notar, nenhuma dominada por milícias, apesar das milícias controlarem grandes extensões territoriais, e todas fazendo um cordão de isolamento em torno da chamada “zona sul sociológica” — da cidade do Rio de Janeiro vem sendo tratada como um grande avanço no que tange às políticas de segurança pública. As UPPs de fato acabaram com a o tráfico — explícito — de drogas nas comunidades em que foram instaladas, bem como com os constantes tiroteios, o que é um inegável avanço. Entretanto, surgiu um outro tipo de opressão, muito mais grave, pois trata-se de opressão perpetrada justamente por aquele que deveria ser o garantidor das liberdades — o Estado. Com as UPPs, vieram as arbitrariedades policiais, numerosas. Tais arbitrariedades vão desde a proibição de bailes funk (que, vale notar, são reconhecidos em lei como manifestação legítima de cultura), passando pela invasão de domicílios sem mandados judiciais, até a agressão física e psicológica dos moradores. São inúmeros os casos documentados de arbitrariedades, fato comprovado por uma rápida pesquisa na internet.
A política de segurança pública atualmente em vigor têm o grave defeito (proposital?) de levar às comunidades tão somente a polícia. Nada se faz para que sejam implementadas políticas sociais. Pouco se faz para a instalação de serviços básicos, como redes de saúde, de educação e de cultura/lazer. Isso se encaixa, entretanto, na lógica de criminalização da pobreza que vigora na atualidade neoliberal (ou “social-liberal”, se preferir). Prova inconteste de tal criminalização da população vulnerável, além dos constantes atos de preconceito e discriminação que sofrem por parte da sociedade, são algumas declarações proferidas pelo Governador do Estado, Sergio Cabral Filho, para quem as favelas seriam “fábricas de produzir marginal”, e pelo Secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, que defende a ideia de que “tiro na zona sul é uma coisa, na favela é outra”. Importante papel também exerce a mídia, que na maioria absoluta das vezes só frequenta as favelas para cobrir eventos ligados à violência.
Um terceiro aspecto vem se apresentando com crescente importância na questão da supressão de direitos das populações vulneráveis. O Rio de Janeiro vai sediar alguns jogos da Copa do Mundo de 2014, e as Olimpíadas de 2016. Concomitantemente, passa por diversas obras que visam sua “modernização”. Alegando a necessidade das obras para os torneios esportivos e para a modernização da cidade, as autoridades públicas vêm promovendo sistemáticas violações dos direitos fundamentais das populações vulneráveis. O direito mais afetado (mas não único) talvez seja o direito à moradia digna. Com as obras de modernização e infraestrutura, milhares de famílias são removidas (muitas das vezes contra sua vontade e sem o pagamento de indenizações) do Centro da cidade e de outras áreas mais atrativas para o capital especulativo imobiliário para áreas distantes e que não oferecem a mínima estrutura para receber tais famílias. Para agravar a situação, foi constatado que muitas das famílias removidas eram transferidas para áreas dominadas por milícias. Comunidades tradicionais estão sendo expulsas, e com isso perde-se muito da história do Rio de Janeiro. Uma segunda faxina social, análoga à do Prefeito Pereira Passos no início do século XX, está sendo operada no Rio de Janeiro. Tudo em nome do desenvolvimento, da Copa do Mundo e das Olimpíadas. Aos olhos da Presidenta da República, do Governador do Estado e do Prefeito do Rio, tudo está plenamente justificado.
Esses são alguns dos casos que nos permitem constatar a — ao que tudo indica — iminente falência do Estado Democrático de Direito. Muitas outras situações não foram citadas, mas são também emblemáticas: o subjugo dos moradores de Santa Cruz pela multinacional TK-CSA (que chegou a contratar grupos milicianos para fazer a segurança particular da empresa); as violentas repressões às manifestações de professores e estudantes; o número crescente dos chamados “autos de resistência”...
A luta pelos direitos humanos é uma luta essencialmente antissistêmica, eminentemente anticapitalista, o que faz com que seja obrigação de todos os que optam pelo caminho da Esquerda abraçá-la de maneira efusiva, garantindo a primazia dos direitos fundamentais de todos aqueles que hoje são vilipendiados e afrontados pelas mais diversas arbitrariedades perpetradas pelos Estados burgueses.