Na classificação tradicional (em Locke, Montesquieu, Rousseau), os Poderes são três: Legislativo, Executivo e Judiciário, cada um com funções típicas (mas também exercendo atipicamente as funções alheias), e independentes mas harmônicos entre si. Todas as funções relacionadas são relevantes, sendo relevante também, por conseqüência, a forma como tais Poderes se organizam e se estruturam. É aqui que vem o "xis" da questão: enquanto o Legislativo e o Executivo são compostos por pessoas escolhidas pelo voto (por pior que seja a escolha, diga-se), o Judiciário não passa pelo crivo popular. Essa característica, a da não-intervenção do povo na composição dos tribunais, gera reiterado debate dentro do Direito Constitucional, acerca da maior ou menor legitimidade de tal Poder quando se trata, por exemplo, de desfazer atos de outros Poderes (cujos membros foram escolhidos, portanto melhores representantes do interesse público, em relação ao Judiciário).
Mas, sem entrarmos em filigranas jurídicas, basta que se diga isto: sendo o Judiciário um Poder a princípio isento de ingerência popular, é evidente que deve haver mecanismos de controle de sua atuação. Foi o ex-presidente Lula (logo quem!) quem falou em "caixa-preta do Judiciário". A imagem está correta. O Judiciário é o mais hermético dos Poderes- e isso não parece ser bom. É por isso que veio o CNJ, o Conselho Nacional de Justiça, no bojo da "reforma do Judiciário" de 2004, com a finalidade de realizar "o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos Juízes" (2). Desde o começo o Conselho sofreu ataques por parte da Magistratura, como por exemplo através da ADI (ação direta de inconstitucionalidade) movida pela Associação dos Magistrados Brasileiros- AMB, logo no início, alegando suposta inconstitucionalidade na criação do órgão.
O CNJ continua, hoje, com a corda no pescoço. Ainda em outubro deste ano o STF deverá julgar nova ação, também movida pela AMB, tendente a reduzir os poderes do órgão (3). E é provável que esse golpe tenha êxito- a não ser que os movimentos sociais se organizem contra.
Não podemos ter ilusões com o "Estado". Sua razão de ser é uma só, a de garantir as relações de dominação. Sobre isso, Trotsky diz que a principal tarefa histórica do Estado é a defesa dos privilégios de propriedade da minoria contra a grande maioria (4). O Estado burguês tem por escopo a defesa dos interesses burgueses- e o Judiciário, órgão desse Estado, não pode ter natureza diferente. Contudo, reiteradamente costumo lembrar: mesmo dentro dos limites do Estado burguês, é possível uma ampla gama de atuações voltada para a defesa das causas sociais e demais lutas progressistas. O Judiciário tem papel preponderante nesse sentido: quando direitos e garantias fundamentais são violados, é a ele que se recorre. O paradigma neoconstitucionalista, que vai dar aos comandos constitucionais força concreta (e não apenas meramente programática), requer um Judiciário atuante.
Justamente em razão do papel de relevo do Judiciário é que não se pode admitir que se coloque "acima" da sociedade, livre de prestação de contas ao povo. É por isso que o Conselho Nacional de Justiça é fundamental. Deve ser defendido contra todas as tentativas de cerceamento de suas atribuições, em prol da transparência. Por que fugir de fiscalização? Quem não deve não teme.
Notas
(1) "Constituição, democracia e supremacia judicial", acessível em http://bit.ly/bNujJH
(2) Art. 103-B, § 4º da Constituição.
(3) "Sem previsão de julgamento, Peluso mantém caso CNJ na pauta do STF" - http://glo.bo/qJYs2m
(4) Leon Trotsky, "A Revolução Traída".