Foi uma jogada de mestre do chefe atual da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas. Até então colocado no canto do ringue, com a defesa fragilizada pelo que se tornou público com as denúncias vazadas pelo WikiLeaks quanto a concessões secretas inaceitáveis no embate diplomático com o governo Netanyahu, Abbas renasceu. Perdendo legitimidade pela prorrogação de um mandato já vencido há dois anos, contra o qual nenhum membro do famigerado Quarteto – potências ocidentais que acompanham as negociações entre a ANP e Israel – levanta problemas por saber que tem nele o mais cordato dos representantes palestinos, Mahmoud Abbas colocou o rei em xeque, e recuperou força política interna.
Sua iniciativa não chega a produzir um xeque-mate, mas vai exigir trabalho árduo de Netanyahu e de Barack Obama para aliviarem a pressão popular, e até insurrecional, que será previsivelmente crescente, não só na Cisjordânia, como em todos os países árabes, contra manutenção das tropas de Israel em território palestino. Com isso, Abbas saiu da condição de traidor para a de quase herói nacional.
Buscando a Assembleia da ONU numa mais que incontestável demanda de filiação da Palestina como Estado-membro, ele coloca em pauta a honestidade de Obama, Merkel, Sarkozy e Cameron, em suas “cruzadas” pelo estabelecimento de democracias de tipo ocidental nos países árabes submetidos a ditaduras ou regimes autoritários. É duro para chefes de governo que nunca se opuseram a ditaduras anticomunistas – pelo contrário, até lhes davam cobertura política e financeira – durante a Guerra Fria, explicar porque permitem a Israel continuar sendo o único ocupante militar de um território nacional estrangeiro.
Mas fora o simbolismo da ação, o que de realmente concreto pode ser previsto para o futuro de curto e médio prazo? Essa é a equação a ser destrinchada, e cuja solução nunca será encontrada se mantida a arena de luta exclusivamente no confronto direito entre os representantes palestinos e os israelenses. Limitados a essa arena, é um embate permanente entre estilingues portados por jovens rebeldes e um dos mais fortemente armados exércitos do mundo. E mais; sustentado por uma correlação política cada vez mais reacionária na sucessão de governos de Israel. Uma correlação cujo símbolo é Avigdor Liberman, o chanceler que se caracteriza por apego a um brutal belicismo xenófobo contra os palestinos.
Essa equação só encontrará solução vinda de fora. Do constrangimento político sobre os líderes das grandes potencias capitalistas ocidentais à mudança de posição dos governos árabes limítrofes que, à exceção da Síria, do Irã e do ziguezagueante Líbano, são menos solidários com os palestinos do que os próprios israelenses de esquerda, tratados como traidores em seu país.
Mas há outra questão fundamental na busca da melhor solução. Dois Estados independentes, em que palestinos sejam alocados nas fronteiras pré-1967 não é uma conformação geopolítica que atenda aos palestinos de forma unânime. Afinal, por esse caminho, estaríamos apenas retrocedendo aos acordos de Oslo, em 94,que boa parte das cabeças pensantes dos palestinos considerou produto de uma traição de um Yasser Arafat constrangido pela perda de apoio que lhe era garantido pela extinta União Soviética. Edward Said, um dos mais expressivos pensadores da causa, se desligou da OLP, na qual exercia cargo de direção, na esteira inclusive de denúncia de grossa corrupção que estaria na raiz da guinada ideológica da direção da até então ideológica direção palestina.
Pois tal definição de fronteiras para os dois Estados pressuporia o abandono dos refugiados – aqueles que foram expulsos, sem indenização, de suas terras e casas. Continuariam sendo tratados como párias sem direito a retorno às suas raízes. Ou seja; estaria aí a corrente favorável à existência de um só Estado, sem os atuais privilégios para os judeus, onde a cada cidadão corresponderia um voto. Evidentemente uma solução inimaginável no contexto atual. Se essa saída permitiria a manutenção dos atuais assentamentos ilegais de colonos sionistas radicais, não se imporia sem uma concepção laica ao Estado que tem como símbolo nacional a estrela de David. Inimaginável, portanto, com a atual correlação de forças locais. Mas não absurda a considerar exemplo histórico bem anterior, com o período de domínio mouro da Península Ibérica, onde conviviam harmoniosamente muçulmanos, cristãos e judeus. Convivência que só foi desfeita pela ascensão de Isabel, a Católica, e a posterior Inquisição.
Por outro lado, há a visão do Hamas, hoje com controle da Faixa de Gaza, onde a ocupação não se dá de forma direta, através dos famigerados pontos de controle militar que separam aldeias da Cisjordânia, mas sobre a qual se exerce um odioso bloqueio israelense. Bloqueio que, sob o argumento de impedir tráfico de armas, na verdade impede até a chegada de alimentos e remédios para a região. E, para o Hamas, ser Estado-membro da ONU nada representa se antes disso não houver a total retirada dos sionistas ora ocupando o território palestino – seja pelas armas do Exército, seja pela crescente construção de assentamentos, muros isolacionistas e rodovias só acessíveis aos que habitam tais assentamentos.
Enfim; no balanço de perdas e ganhos, é indiscutível que a iniciativa de Abbas foi extremamente competente e produtiva. Surfou na onda da Primavera Árabe para, além de se recuperar internamente, colocar pressão externa considerável sobre o governo Netanyahu. Pressão que já ficou evidente no duelo de retóricas na Assembleia da ONU, onde pontificou um Abbas mais parecido com as antigas gerações politizadas da OLP, recebido com aplausos de pé, vitorioso sobre um Netanyahu que nem de perto lembrava o arrogante em sua intervenção no Congresso americano algum tempo antes. Era um Netanyahu quase pedindo a benção do dirigente da ANP, como forma de convencê-lo a recuar da demanda nacional e voltar a uma mesa de negociação nada paritária. Pelo contrário, onde voltaria a dar as cartas.
O resultado final não sairá dessa votação da ONU. Mesmo como Estado-membro da ONU, ou como Observador, a Cisjordânia continuará ocupada até que forças externas – seus próprio aliados ianques e europeus, ou massas insurretas árabes – obriguem Israel a de lá sair.