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Bruno Carvalho

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Contra-ataque

ETA em Portugal: um caso mediático

Bruno Carvalho - Publicado: Quinta, 15 Setembro 2011 10:07

Bruno Carvalho

Andoni Zengotitabengoa tem 32 anos. As únicas palavras que disse em tribunal foi que não era espanhol mas basco e que é estudante. É natural de Elorrio, região da Biscaia, e tem duas filhas pequenas.


Em 2002, foi detido sob a acusação de participar, em Donostia, em acções de kale borroka, uma forma de guerrilha urbana de baixa intensidade e que consiste, maioritariamente, por sabotagem e lançamento de cocktails molotov. Depois de passar algum tempo em prisão preventiva, foi libertado. Em 2006, foi condenado à revelia a uma pena de 13 anos de prisão.

Em Portugal, está acusado de dois crimes de furto qualificado, nove crimes de falsificação, um crime de posse de arma proibida, todos com vista à prática de terrorismo. É também acusado de crime de resistência e coacção sobre um funcionário.

Há ano e meio, mais precisamente a 5 de Fevereiro de 2010, os noticiários abriram com a informação de que tinha sido encontrado, nos arredores de Lisboa, um piso franco utilizado pela ETA. Mais tarde, a notícia seria corrigida e informava-se de que era uma moradia perto de Óbidos onde se tinha encontrado substâncias explosivas. Durante as semanas que se seguiram, a quantidade de material explosivo foi aumentando nas páginas dos jornais.

Um mês depois, a 11 de Março, Andoni Zengotitabengoa é detido no Aeroporto de Lisboa. Segundo os órgãos de informação, o basco tentava viajar para a Venezuela com um passaporte mexicano falso. É a ele que situam, juntamente com Oier Mielgo, na vivenda em Casal da Avarela. Há, aliás, imagens de um câmara de videovigilância de um supermercado da zona que revelam a presença de Oier Mielgo.

Mas a versão a que fomos sujeitos, desde o início, pela mão dos media, dependeu quase sempre de fontes policiais. Não admira, pois, que toda uma novela que foi construída sobre tais alicerces se comece a desmoronar. E a provocar alguns embaraços à justiça portuguesa. Se fosse no Estado espanhol, provavelmente, o caso seria encarado com normalidade. As redacções habituadas a corroborar as versões policiais e os tribunais habituados a contar com as versões policiais para aplicar a estratégia repressiva do governo de turno demonstram bem como a verdade é a primeira vítima das guerras.

Não é por acaso que o que a imprensa portuguesa destaca no julgamento de Andoni Zengotitabengoa é bem diferente da imprensa espanhola. Cá, sublinhou-se a contradição entre as declarações das testemunhas à polícia e os relatos produzidos em tribunal. Lá, escondem essa informação e tomam como certa a tese da acusação. Não é que a comunicação social portuguesa seja isenta, mas os media espanhóis são um instrumento fundamental do Estado espanhol contra o independentismo basco e, nesse sentido, têm de cumprir o seu papel.

Contradições atrás de contradições

Ao fim do segundo dia do julgamento de Andoni Zengotitabengoa, pode, finalmente, começar-se a desenhar um esboço mais real da história que nos tem sido contada ao longo de ano e meio. Uma das primeiras testemunhas foi um chefe da PSP de Caldas da Rainha. Vivia e vive na moradia contígua à casa onde foi encontrado material explosivo e foi o responsável pelo alerta dado à GNR de que algo de estranho se estaria a passar. Pensou que seria um assalto. Segundo o seu relato, ao contrário do que foi veiculado pela imprensa, não havia várias janelas e portas abertas e nega saber se a casa teria as luzes acesas. Simplesmente, havia uma porta lateral ligeiramente aberta e a porta da garagem não estava totalmente fechada. O que contradiz totalmente o teor das suas primeiras declarações às autoridades.

É natural que se tivesse espalhado a versão de que a moradia estava de janelas e portas escancaradas. Provavelmente, havia a necessidade de esconder a ilegalidade cometida pela GNR. Invadiram propriedade alheia sem qualquer autorização judicial. E independentemente de se estar ou não a favor das acções da ETA, ou de se achar que Andoni é inocente ou culpado, uma das razões pelas quais os cidadãos têm direito a não ver a sua propriedade violada sem um mandato relaciona-se com todo o tipo de manipulações que uma invasão policial possa implicar. O que a GNR fez foi grave, uma vez que tal invasão fragiliza as teses da acusação e retira parte da credibilidade às provas encontradas.

Mas o julgamento de Andoni Zengotitabengoa tem revelado muitas surpresas. Para quem tinha confiado tanto nos factos relatados pelas autoridades e pela imprensa, fica-se perplexo com a sucessão de contradições de boa parte das testemunhas arroladas pela acusação. O chefe da PSP começou por meter as mãos pelos pés quando identificou o alegado membro da ETA sem problemas. Em declarações à polícia, tinha afirmado ser difícil reconhecer Andoni Zengotitabengoa como um dos habitantes da moradia vizinha. Esse foi um dos factos que mereceu a ameaça de processo por falsas declarações. Outra curiosidade prende-se com a filha deste agente da PSP também não conseguir reconhecer o arguido.

Um estucador que fez obras na moradia em causa, e disse em tribunal reconhecer Andoni Zengotitabengoa, foi confrontado pelo colectivo de juizes por ter entrado em contradição. Nas declarações durante a investigação, havia dito que tinha visto bidões azuis – onde posteriormente foi encontrado material explosivo - e que os moradores tinham reagido de forma intempestiva quando tentaram arredar um armário. No julgamento, não só negou ter visto os bidões como minimizou o episódio do móvel.

Mas mais graves foram as declarações em tribunal de Júlio Henriques, proprietário de uma oficina, e de Edgar Couto, dono de um restaurante. O mecânico afirmou ter pedido aos agentes da Polícia Judiciária para riscarem o seu depoimento por conter informações que não correspondiam à verdade. Nomeadamente, no que diz respeito à identificação dos dois alegados moradores da vivenda. Já Edgar Couto acusou a PJ de o ter "apertado" e de o quase ter obrigado a identificar os alegados membros da ETA como clientes habituais do seu restaurante.

O circo policial

Desde que dois alegados membros da ETA foram detidos um mês antes da entrada da polícia na moradia de Casal da Avarela, o Estado português comportou-se, quase sempre, de forma subserviente em relação ao Estado vizinho. Naturalmente, as relações económicas pesam muito entre os vários países. Mas a dependência que Portugal tem do Estado espanhol condiciona-o também politicamente. Logo que pôde, entregou os dois bascos às autoridades de Madrid, apesar do evidente risco de tortura, reconhecido por vários organismos internacionais.

Portugal aceitou o envio, por parte do Estado espanhol, de um grupo não inferior a 20 polícias especializados nas questões relacionadas com ETA. Durante meses, o governo de Zapatero e a imprensa espanhola fomentaram a tese de que a organização independentista basca estaria a usar Portugal como base de apoio à luta armada. Toda a parafernália securitária a que os habitantes de Caldas da Rainha assistiram corresponde um pouco a todas as pressões e ao medo que se tentou gerar através da comunicação social.

Os telejornais insistiam no perigo de um atentado durante o julgamento. As autoridades fizeram um cordão policial à volta do tribunal e cortaram várias ruas ao trânsito. Como se não bastasse, colocaram um inibidor de frequências que bloqueou o sinal de telemóveis e da internet no centro. Em Caldas da Rainha, as únicas armas existentes eram as de todos os corpos de segurança que foram para ali mobilizados. Mais de seis carrinhas da PSP, três carrinhas celulares, veículos descaracterizados, shotguns, cães-polícia, agentes das forças especiais da PSP, agentes do Grupo de Intervenção e Segurança Prisional e agentes à paisana. Na entrada do tribunal, revista com detector de metais e, à entrada da sala de audiências, uma nova revista com recurso a detector de metais.

Todo o dispositivo montado não só amedrontou a população de Caldas da Rainha como alimentou a tese de que era um julgamento de risco. Em boa verdade, não passou de um ridículo circo que custou dezenas de milhares de euros aos portugueses. Admitindo que Andoni Zengotitabengoa possa ser membro da ETA, quem acompanhe minimamente o que se passa no País Basco sabe que a organização armada declarou o cessar-fogo e que o próprio Estado espanhol reconhece que a ETA o está a cumprir.

Independentemente do que se venha a decidir, seria importante que o colectivo de juizes decidisse em conformidade com os factos e sem pressões. Não é o que tem acontecido. Desde o primeiro momento, quando se invadiu a moradia, cometeu-se uma ilegalidade que deixará em dúvida o que lá dentro aconteceu, seja qual for a sentença. Depois, pelo que se sabe, adulteraram-se declarações de testemunhas e usou-se a intimidação para manipular factos e pôr testemunhas a identificar gente que não conheciam. A denúncia de Edgar Couto sobre o comportamento da PJ deve deixar-nos inquietos. Porque necessita a polícia portuguesa de testemunhas que mintam sobre Andoni Zengotitabengoa? E as outras testemunhas, terão sofrido o mesmo tipo de pressões?


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