Entre as principais medidas, o executivo neoliberal decidiu pedir ajuda ao FMI. Depois, veio a tradicional receita daquela estrutura. Mas mais do que as decisões sobre os juros da dívida ou sobre a política cambial o que arrastou multidões para as ruas foi a liberalização dos preços de quase todos os produtos, o aumento dos preços do telefone, água, electricidade e gás doméstico e, principalmente, a decisão de impor um aumento de 30 por cento sobre o preço dos transportes.
Para o dia 26 de Fevereiro estava previsto que o combustível aumentasse e para o dia 27 que se aplicasse, por três meses, o novo preço dos transportes. Mas, em Caracas, os proprietários dos autocarros estavam contra. Exigiam que o aumento fosse no mínimo de 70 por cento e convocaram uma paralisação. Nesse dia, alguns motoristas preferiram conduzir, impor o valor reivindicado e não reconhecer as tarifas para estudantes.
Foi a faísca que incendiou Caracas. Os utentes dos transportes responderam com a violência. Muitos autocarros foram destruídos e queimados. Poucas horas depois, a capital venezuelana estava totalmente descontrolada. Milhares de trabalhadores e desempregados desceram dos bairros de lata e saquearam lojas, supermercados, oficinas e pequenas fábricas. Mas a revolta também se traduziu em múltiplas manifestações com um forte carácter reivindicativo. Rapidamente, a explosão social espalhou-se às principais cidades da Venezuela.
Uma dessas histórias que me contaram sobre o Caracazo, descreve como centenas de pessoas abandonavam estabelecimentos comerciais com carros de supermercado cheios de comida. Das anedotas mais repetidas, há a do homem que chamou um táxi e encheu o porta-bagagens com carne de vaca. Quando voltou do talho com mais uma peça, o taxista havia fugido.
O mundo olhou com espanto para o que se passava na Venezuela. Como sempre, apesar de todos os sinais, todos diziam não estar à espera que os acontecimentos tomassem tais proporções. Como se fosse anormal haver consequências para aqueles que durante anos viveram do açambarcamento e da especulação sobre os produtos básicos. Como se fosse anormal que num país tão rico em petróleo os que nunca tiveram nada se revoltassem contra aqueles que sempre tiveram tudo.
A resposta do poder político não se fez esperar. Carlos Andrés Pérez decretou o estado de emergência e mandou o exército para as ruas. Enquanto um representante do Estado venezuelano declarava ante as televisões que o país havia entrado na mais absoluta normalidade, soldados disparavam contra a população. Os dados oficiais indicam que morreram mais de 300 pessoas. Números mais realistas apontam para cerca de mil mortos, a maioria resultado da intervenção das forças armadas. A repressão foi de tal ordem que o mal estar no seio de sectores do exército levaria três anos mais tarde, em 1992, à revolta militar conduzida, entre outros, por um desconhecido tenente-coronel chamado Hugo Chávez.
No que sempre foi um dos bairros mais combativos de Caracas e é, actualmente, um dos bastiões do chavismo, a população organizou-se, sob a experiência das organizações guerrilheiras, para combater a repressão. A ferocidade dos militares contra o 23 de Enero fez muitas vítimas mas também provou a capacidade de resistência dos seus habitantes. Infelizmente, a consciência social e política não era extensível a outras zonas e a falta de movimentos revolucionários com influência em todo o país que pudessem catalisar a revolta popular não permitiu que o Caracazo fosse mais do que aquilo que foi.
Mas aquilo que foi permitiu que se lançassem as sementes do que vive hoje a Venezuela. Sem Caracazo não teria havido golpe militar em 1992 e sem golpe militar Hugo Chávez não teria construído, em conjunto com outros soldados, o movimento que o levou à presidência da Venezuela.