O sonho de se chegar a estrela mundial faz o resto. Não admira, pois, que a maioria dos atletas provenha da classe trabalhadora. Mas se a maioria dos jogadores tem origem em zonas mais humildes também é um facto que isso, na maioria das vezes, pouco ou nada influencia a sua consciência social e política. Perante a podridão em que se transformou a modalidade, uma boa parte dos futebolistas prefere alimentar e alimentar-se do negócio. A essência do desporto passou a ser guiada pelo dinheiro.
"O futebol é capitalismo, é morte". Foi nestes termos que o jogador do Sporting de Gigón, Javi Povés, se dirigiu à comunicação social para anunciar o fim da sua carreira. Aos 24 anos, decidiu romper com o futebol por razões de consciência. Anteriormente, Javi Povés já havia entrado em choque com o clube asturiano quando, no ano passado, exigiu que não lhe pagassem através de transferência bancária. "Não quero que se especule com o meu dinheiro", afirmou. Depois, surpreendeu os dirigentes do clube quando recusou um automóvel da frota que foi oferecida aos jogadores. "Sentia-me mal com dois carros. Não necessitava", justificou.
Perante o espanto da comunicação social, Javi Povés foi sucinto: "Apelidam-me de anti-sistema, encaixaram-me aí, mas não sei o que sou. Sei que não quero viver prostituído como 99 por cento das pessoas. Se não posso ter uma vida limpa em Espanha, tê-la-ei na Birmânia ou em qualquer sítio". Acrescentou ainda que, no início, se aproximou do movimento dos acampados. "Propõem mudanças muito superficiais que para mim não chegam. De que me serve ganhar 1000 euros em vez de 800 se estão manchados de sangue, se sei que se obtêm com o sofrimento e a morte de muita gente? A sorte desta parte do mundo é a desgraça do resto. Em vez de tanto 15-M e tanta história, o que há que fazer é ir aos bancos e queima-los, cortar cabeças. Digo isto de forma clara".
Naturalmente, Javi Povés é uma excepção. São quase desconhecidos os que abandonaram o futebol profissional por razões políticas. Na história do desporto nacional não há, provavelmente, qualquer exemplo. Sabe-se que o histórico comunista Octavio Pato se destacou nas camadas jovens do Sport Lisboa e Benfica e que optou por dedicar a sua vida à luta revolucionária. Noutros países, há muitos casos de futebolistas que abraçaram ideias e causas ligadas às suas origens sem abandonar a modalidade. O que devia ser a norma é, infelizmente, a excepção.
Em Itália, Cristiano Lucarelli deixou de ser convocado para a selecção depois de ter exibido uma t-shirt com a imagem do Che Guevara durante os festejos de um golo. Na Catalunha, Oleguer Presas, ex-defesa do Barcelona e actual jogador do Ajax, foi acusado várias vezes de apoiar o terrorismo. Recusou jogar na selecção espanhola, apoiou os presos políticos bascos e sempre esteve envolvido em movimentos sociais da esquerda independentista catalã. No País Basco, Eñaut Zubikarai, guarda-redes da Real Sociedad, viu recusada a sua transferência para o Hercules por ser filho de um ex-membro da ETA preso há 22 anos e por defender a independência do País Basco.
Quem gosta verdadeiramente do futebol e não renega as suas origens não tem lugar nesta modalidade. O que importa é alimentar o circo viciado dos negócios obscuros, da lavagem de dinheiro, da especulação e dos lucros astronómicos. Cristiano Ronaldo é uma caricatura desse mundo. Uma criança de origens humildes que é, hoje, produto do futebol moderno e do que ele representa. No campo e fora dele, transmite os valores do capitalismo e é o ídolo de milhões de crianças pobres. Felizmente, há cada vez mais atletas e adeptos que se insurgem.