A Editora Sundermann dando continuidade as publicações dos livros mais fundamentais de Leon Trotsky, com traduções rigorosas e grande qualidade editorial, nos brinda agora com alguns dos últimos textos do autor, encerrados no livro “Em Defesa do Marxismo”. Uma das obras mais fundamentais de seu pensamento e certamente a mais polêmica.
Trata-se de um conjunto de artigos e cartas elaborados no último ano de sua vida em torno da primeira grande polêmica travada no interior da IV Internacional a respeito da natureza social da URSS, que naquela altura, assinara um tratado de não agressão com a Alemanha nazista. Ao mesmo tempo que tal obra deve ser valorizada por assinalar pela primeira vez algumas teses e conjecturas do autor, deve ser tomada com o devido cuidado, afinal não foi um livro cuja articulação interna foi previamente elaborada e desenvolvida, mas uma coletânea de textos escritos no calor de uma acirrada polêmica teórica, cujo resultado tinha consequências políticas imediatas no interior da recém-criada Internacional. Soma-se a isto os acontecimentos históricos que serviram de estopim para as questões abordadas no livro - Segunda Guerra Mundial, participação e papel da URSS na guerra, dentre outros - que apenas começaram a manifestar-se e o seu curso apresentava como totalmente indefinido a época dos escritos.
Mesmo com tais precauções, pensamos que tal obra coloca como centro uma das questões mais fundamentais do marxismo no século XX: a natureza social da URSS. Longe de assumir as elaborações de Trotsky como a última palavra sobre o tema, esta apresenta-se, ao nosso ver, até os nossos dias, como uma das poucas tentativas consistentes com relação ao problema.
Como poderia ser concebido aquele país, nascido dos Soviets, que desembocara na expropriação da indústria e da grande propriedade da terra e que no entanto, desenvolvera uma gigantesca burocracia? Qual o real significado daquele país, dito socialista, que longe de propiciar a “atividade espontânea das massas e a livre expansão da personalidade humana”, confinava o desenvolvimento humano dos soviéticos a limites estreitos? Teria a União Soviética se transformado em algum tipo de capitalismo? Ou tal tentativa de transição jamais representou uma real alternativa socialista? “Sem se deixar impressionar por nada”, o revolucionário russo foi taxativo, reafirmando os resultados obtidos em A Revolução Traída, obra escrita três anos antes, ou seja, tratava-se, ainda, de um Estado operário burocratizado.
Tal caracterização, elaborada a cerca de 75 anos, continua até o presente momento completamente incompreendida. Para o autor, qualquer processo revolucionário não pode ser apreendido se não extrapolarmos os estreitos limites de uma nação. Qualquer revolução, mesmo que assentada sobre o desenvolvimento espontâneo das massas trabalhadoras, ao manter-se isolada e sobretudo, em um país atrasado, jamais poderia superar o mercado plenamente mundializado, cuja potência proveniente do intercâmbio universal de mercadorias terminaria por se impor. Neste sentido, para o autor, a burocracia teria sua origem nas próprias condições sociais soviéticas, na impossibilidade de efetivar um processo cuja resolução estava além das suas fronteiras. Assumindo tais pressupostos, o desenvolvimento de uma poderosa burocracia apresentava-se como curso socialmente posto pelo atraso e isolamento soviético. Mas este estado, assentado sobre uma propriedade estatal da industria e da terra não despira por completo de sua natureza originaria. Ainda que em permanente degeneração, a propriedade individual não fora restaurada. Assim, ou a revolução internacional alimentaria novamente o desenvolvimento socialista soviético ou a burocracia terminaria por restaurar a propriedade privada individual, como forma de salvaguardar os seus próprios privilégios. Certamente, este esboço da teoria do autor da História da revolução russa, aqui colocado de maneira esquemática e incompleta, pode dar margens a novas incompreensões. Ciente disto, frisamos desde já a necessidade de uma leitura rigorosa de Trotsky. Apesar disto, salientamos que o alcance de sua elaboração pode ser melhor apreendida, se comentarmos brevemente outras tentativas de resposta à questão.
A tendência da IV Internacional que naquela altura defrontava-se com o problema, fomentava a ideia de que a URSS desenvolvera uma espécie de “capitalismo de Estado”. Como bem analisou o próprio Trotsky na “A Revolução Traída”, o sucesso deste termo reside no fato de que, até hoje, não houve ninguém que tivesse conseguido precisar seu real significado. Absurdo nos termos, apresenta-se vazio de qualquer conteúdo bem determinado por não delimitar qualquer aspecto fundamental da sociedade soviética; antes mistifica a realidade do que a revela. E só pode ser de fato desenvolvido graças aos famigerados processos de Moscou e o controle burocrático da Terceira Internacional por Stalin, pois ao barrar os processos revolucionários europeus em curso, alimentou analises impressionistas e empíricas que pouco ou nada acrescentaram.
Outro tratamento dado a questão, “classificou” a URSS como o “socialismo efetivamente existente”, o que reflete a incapacidade de desvelar a real natureza social daquele processo, procurando expurgar o problema pela mera invocação de uma frase.
José Chasin em uma tentativa mais sofisticada, classificou o leste europeu de capital coletivo/não social. Perguntamo-nos se poderia ser de outro modo, dado o isolamento que encontrou a Revolução Soviética. Não estaria Chasin pensando no interior e nos limites da “teoria do socialismo em um só país”? Como ir além do capital, do mercado, da propriedade privada, do Estado e da política sem eliminar a dimensão necessariamente mundializada do capital e do mercado e por consequência da propriedade privada, do Estado e da política? Não seria toda e qualquer revolução socialista, encerrada nos limites nacionais, uma espécie de capital coletivo/não social? Qual seria a outra alternativa possível?
Cabe aqui assinalar que Estado Operário, no sentido empregado por Trotsky, não diz respeito a uma absurda afirmação do proletariado como classe universal. O prisma de toda elaboração do revolucionário russo foi, do inicio ao fim, a supressão de todas as classes e, neste sentido, a supressão do próprio proletariado enquanto proletariado. Estado operário não se apresentava assim como o fim do processo de emancipação, tampouco como um longo e indefinido processo transitório, realizado por mediação do Estado, que não se sabe como nem quando terminaria; mas como um período que só poderia ser superado para além das fronteiras nacionais, com a superação do próprio capital enquanto tal. A problemática se deslocaria então, para a análise dos processos revolucionários iniciados na esteira da Revolução Soviética e na influência da Terceira Internacional em todos eles, concomitante, é claro, com a profunda analise social dos países em questão. Neste sentido, caracterizar o leste europeu como capital coletivo/não social pouco acrescenta ao problema em questão, este conceito sequer era estranho a Trotsky, como atesta o seguinte trecho da “Revolução Traída”, escrito após destacar o caráter coletivo da economia soviética: “A propriedade privada, para se tornar social, tem que passar inevitavelmente pela estatização”, mas “a propriedade do Estado só se torna a de 'todo povo' à medida que desapareçam os privilégios e as distinções sociais e, consequentemente, o Estado perca a sua razão de ser. Em outras palavras: a propriedade do Estado torna-se socialista à medida que vai deixando de ser propriedade do Estado. E o contrario é verdade: quanto mais o Estado soviético se elevar acima do povo, quanto mais se opuser a ele, como guardião da propriedade do povo e dilapidador desta propriedade, mais obviamente testemunha contra o caráter socialista da propriedade estatal.” E para terminar, no mesmo livro, o autor destaca o problema de “dar uma definição acabada de um processo inacabado”, tal qual fizera Chasin no caso em questão. E concluí: “impõe-nos a observação de todas as fases do fenômeno, de extrair dele as tendências progressistas e reacionárias; de revelar a sua interação; de prever as múltiplas variantes do desenvolvimento posterior e encontrar nesta previsão um ponto de apoio para a ação.”
István Mészáros classificou os países do leste europeu como pós-capitalistas, assumindo que estes foram além do capitalismo, mas não, além do capital. Após esta classificação indeterminada, Mészáros investiga os problemas para a transição além do capital, ou seja, como transitar do socialismo para além do mercado, do capital e da propriedade privada. O filósofo húngaro desconsiderando a questão imediatamente posta, o da tomada do poder pela classe trabalhadora a nível mundial, procura resolver um problema cujos pressupostos históricos ainda não estão postos.
Em outra direção, já apontava Marx na célebre Mensagem de 1950: “os nossos interesses e as nossas tarefas consistem em tornar a revolução permanente até que seja eliminada a dominação das classes mais ou menos possuidoras, até que o proletariado conquiste o poder do Estado, até que a associação dos proletários se desenvolva, não só num país, mas em todos os países predominantes do mundo, em proporções tais que cesse a competição entre os proletários desses países, e até que pelo menos as forças produtivas decisivas estejam concentradas nas mãos do proletariado.” Alguns anos antes, o próprio Marx, na Miséria da Filosofia concluía sua crítica a Proudhon afirmando de maneira inequívoca: “Só numa ordem de coisas na qual já não haja classes e antagonismos de classes deixarão as evoluções sociais de ser revoluções políticas. Até lá, nas vésperas de cada remodelação geral da sociedade, a última palavra da ciência social será sempre: 'O combate ou a morte: a luta sanguinária ou o nada. É assim que inelutavelmente se apresenta a questão' (George Sand)”. Como podemos perceber, Mészáros salta o problema da tomada do poder pelo proletariado a nível mundial, da “revolução política com alma social”, para uma espécie de programa de governo para o futuro(1). Ao não tratar da transição no sentido originariamente colocado por Marx e pelo próprio Trotsky, escapa a necessidade de uma caracterização determinada da natureza social da URSS. Apresenta-se assim como um “cozinheiro do futuro”, no sentido ironicamente assinalado por Marx no clássico posfácio de O Capital, se referindo aqueles que além de se deter à “análise crítica do dado” preferem “prescrever receitas (comteanas?) para a cozinha do futuro.”
Todavia, vale ressaltar que o livro que hora resenhamos é passível de algumas ponderações. Trotsky como não poderia deixar de ser, foi em partes, vítima de seu tempo e de sua época. As formulações engelsianas presentes em livros como Dialética da Natureza e o Anti-düring que generalizara a dialética à ciência da natureza (sob influência do positivismo nascente e o impacto do evolucionismo de Darwin) estão em partes, presentes nesta obra. Como sabemos, Trotsky nunca rompeu com tais formulações. Todavia, o mesmo ponderou que aquelas generalizações engelsianas não poderiam ser, sob forma alguma, transpostas para o interior da análise das relações sociais. Neste sentido, ao final do livro, termina por sintetizar de maneira brilhante o que seria para ele a dialética e, em certo sentido, retomando tudo que até o momento procuramos expor, citamos o trecho integralmente:
“A URSS enquanto Estado operário não responde à norma(2) 'tradicional'. Isso não significa ainda que não seja um Estado operário. Mas também não significa que a norma se tenha demonstrado falsa. A "norma" é definida em função da vitória do proletariado internacional. Mas a URSS não é mais do que uma expressão parcial e desfigurada do Estado operário, atrasado e isolado.
Uma forma de pensar 'puramente' normativa, idealista e ultimatista quer construir o mundo à sua imagem e desfazer-se simplesmente dos fenômenos de que não gosta. Só os sectários, quer dizer, a gente que é revolucionária só na sua própria imaginação, se deixam guiar por puras normas ideais. Dizem: não gostamos destes sindicatos, não os defendemos.
E cada vez prometem voltar a começar a história a partir do zero. Edificação, isso sim, um Estado operário quando o bom deus lhes ponha entre as mãos um partido ideal e sindicatos ideais. Esperando este feliz momento, fazem todos os trejeitos que podem frente à realidade. Um vigoroso trejeito é a mais alta expressão do 'revolucionário' sectário.
Um modo de pensar puramente histórico, reformista, menchevique, passivo, conservador, ocupa-se, segundo a expressão de Marx, em justificar a podridão de hoje pela podridão de ontem. Os representantes deste tipo de pensamento entram nas organizações de massas para dissolverem-se no seu seio. Os desprezíveis 'amigos' da URSS adaptam-se às baixezas da burocracia, invocando as condições históricas.
Em oposição a estes dois tipos de pensamento, o modo de pensar dialético, marxista, compreende os fenômenos no seu desenvolvimento objetivo e, ao mesmo tempo, encontra nas condições internas deste desenvolvimento, a base que lhe permite realizar suas 'normas'.”
Terminamos aqui apontando para o profundo significado do trecho. Curioso e trágico ver que os dois tipos caracterizados inicialmente por Trotsky são ainda hoje dominantes na chamada esquerda. Atentamos para aquilo que Trotsky chama dialética: longe de ser uma lógica a priori cujas leis presidem a investigação do real, ela consiste em apreender a realidade a partir do desenvolvimento dos fenômenos objetivos desvelando a sua natureza mais íntima, regendo-se pelos próprios processos históricos. Mas tudo isto, visando impulsionar a revolução social, o que passa inelutavelmente pela tomada do poder pela classe trabalhadora.
(1) Uma crítica neste sentido ao livro de Mészáros, “Para além do capital”, foi realizada por Hector Benoit. BENOIT, Alcides Héctor R. Uma teoria de transição aquém de qualquer além, 03/2003,
Crítica Marxista, Vol. 16, pp.160-166, Rio de Janeiro, RJ, 2003
(2) O termo “norma” é empregado na citação de Trotsky no sentido irônico, pois no texto ele contrapõe ao que chama concepção “subjetiva e normativa” da realidade e em particular aqueles que afirmavam que o estado Soviético não correspondia a norma esperada de um estado socialista, por isto, a palavra aparece quase sempre entre aspas. (os grifos são meus)
* Gustavo Henrique Lopes Machado é militante do PSTU e cursa História na Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: gustavohlm@yahoo.com.br