Após a passagem de Colombo por Lisboa, na volta da América, dom João II teria enviado, sob enorme reserva, uma ou mais expedições ao Atlântico Sul, para inquirir o sentido real daquele descobrimento ameaçador. Hoje, os historiadores penam em desvendar sucessos semelhantes, devido à perda de informação cercada de múltiplos cuidados e restrições.
A rica tradição portuguesa de documentação e arquivamento nasceu do ingente esforço de conquista e domínio, de vastas e exóticas regiões e povos do mundo, pela administração estatal do pequeno reino. Uma documentação sempre restringida à consulta dos membros da alta administração.
Em Portugal, por longos e pesados séculos, Estado, nação, cidadania foram conceitos e relações sequer enunciados em mundo onde os poderosos eram, viam-se e comportavam-se como os donos dos bens materiais e imateriais. Não havia sentido em propor que miúdos, vilões, peões, menesteriais, para não falar de judeus, pretos e mouros, acessassem informação sobre os negócios de reino no qual, no máximo, eram os degraus mais baixos, os assoalhos mais usados.
Essa situação habitual no mundo europeu entrou em crise com o fim do Antigo Regime e as lutas sociais sacralizadas em 1789, 1831, 1848, 1871, 1917, que engendraram a ideia de Estado ao serviço e sob controle da população nacional, com a consequente transparência e publicidade dos atos públicos. Através da Europa, os arquivos começaram a abrir-se, com algumas restrições, heranças de passado que se negava e se nega a morrer.
No Brasil, há enorme continuidade entre o Estado colonial, imperial e republicano. Entre nós, a chamada cidadania manteve-se – antes mais, hoje apenas menos –, como ser social administrável e jamais sujeito real de seus destinos. Os de baixo seguem sendo vistos e usados como objetos a serviços dos de cima e o Estado, domínio dos donos das riquezas e do poder.
Se assim não o fosse, como conceber o arbitramento somítico de salário mínimo, que mantém na miséria triste multidões de nacionais, ao lado da obesidade mórbida dos estipêndios e ganhos de parlamentares, empresários, proprietários, etc. Ou a situação de nossas prisões, cloacas habitadas por pobres e negros, levantadas à sombra das prebendas e palácios principescos dos dignitários da Justiça. Ou, até mesmo, os salários de universitários bem colocados, em comparação com os estipêndios miseráveis dos mestres do ensino básico!
O acolhimento das restrições ao projeto de liberdade de consulta dos documentos públicos registra mais do que a fragilidade da administração Dilma Rousseff às pressões conservadores, ao igual do ocorrido quanto aos direitos civis, à política internacional, ao código florestal, à remuneração do capital. O acolhimento das restrições exigidas sobretudo pelo Itamaraty e pelo alto comando militar, através de dois senadores vestais, José Sarney e Fernando Collor de Mello, demarca pedagogicamente o Estado brasileiro como ente autônomo aos direitos e à vontade da grande população. Nesse desvairado século 21, seguimos sendo os miúdos no eterno reino dos grandes e ricos morubixabas.
Mário Maestri, 62, é professor do curso e do Programa de Pós-Graduação em História da UPF. E-mail: maestri@via-rs.net