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Alexandre Haubrich

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Espelhismos

A onguização do discurso crítico

Alexandre Haubrich - Publicado: Terça, 17 Mai 2011 02:00

Alexandre Haubrich

“Dividir para conquistar” é uma tática militar existente desde o exército do antigo Império Romano. O jogo político da representação e do debate serve exatamente para que não nos tornemos todos parte de exércitos, ou seja, para que as disputas sejam resolvidas de forma não-violenta. Considerando esse contexto, podemos inferir que determinadas estratégias militares tendem a migrar para o campo político. “Dividir para conquistar” é uma delas, mas poucos se deram conta da ilusão representada pela luta individual, difusa, isolada.


Ao contrário do que a mídia hegemônica tenta fazer crer, a participação política é intensa e, das mais diversas formas, o povo tenta interferir no dia a dia político. Sindicatos, associações de bairro, ONGs, partidos políticos. São muitas formas de luta institucional, das quais participam, em menor ou maior grau, direta ou indiretamente, milhões de pessoas. Essa grande quantidade de militantes, porém, está fragmentada em lutas ingratas, que pouco ou nada avançam, e um motivo fundamental dessa estagnação ou dessa vagareza de resultados é exatamente a fragmentação.

O que chamo de “onguização do discurso crítico” é, portanto, o enclausuramento dos agentes políticos em demandas específicas, a impossibilidade aparente de avançar na percepção dessas demandas como partes fundamentais de um todo sistêmico, estrutural. O fomento da ilusão da luta individual, fragmentada, como possibilidade concreta de avanços profundos é a versão diplomática do “dividir para conquistar” dos exércitos romanos.

As Organizações Não-Governamentais (ONGs) atuam sempre nesse sentido, no caminho da conciliação de interesses frontalmente opostos para buscar progressos aparentes em causas específicas, através de pressões sociais sobre governos e entidades privadas dominantes. Esse tipo de estratégia é apenas tornada mais palpável nas ações das ONGs, mas é utilizada, em níveis variáveis, na maioria dos movimentos sociais.

Se por um lado a defesa de demandas localizadas possui apelo popular na medida em que torna-se mais próxima dos setores sociais atingidos diretamente pelos pontos discutidos, por outro lado essa opção enfraquece a luta porque a fragmenta, afastando das mobilizações os campos que, à primeira vista, não são diretamente influenciados pelas mudanças desejadas.

As lutas de mulheres, negros ou homossexuais por inserção e aceitação social dá-se, muitas vezes, de forma cega em relação ao que verdadeiramente causa as dificuldades que esses setores enfrentam. O capitalismo é essencialmente criador de um grande apartheid social, e sua única forma de direcionamento para a igualdade é no sentido de que quase todos os indivíduos e grupos sociais tendem à desigualdade e à exclusão. O apartheid racial da África do Sul apenas revelou na forma de cores a realidade do sistema: 10% da população oprimindo os outros 90%. Em medidas semelhantes, as elites dominam e exploram o povo, usando, na estratégia discursiva de dominação, argumentos raciais, de gênero ou quais outros interessem no caso específico.

O sistema capitalista, ao estabelecer como principal forma de socialização a competição, não permite a igualdade, força a opressão de muitos por poucos, e, dessa forma, cria exclusões que podem se manifestar das mais diversas formas. O movimento feminista, o movimento negro e o movimento homossexual, ao defenderem suas bandeiras de forma isolada, fecham os olhos para o capitalismo como criador ou, ao menos, mantenedor e fortalecedor da discriminação sofrida. Qualquer desses grupos sociais sofre a partir de desigualdades de origem, construídas no convívio social capitalista. Se nenhuma discriminação é aceitável, como pode ser aceitável a desigualdade? Ambas caminham juntas, cada uma agarrada a um tentáculo do capitalismo.

Como veremos a seguir, as dominações de raça e de gênero têm origens recentes, mas, objetivadas por uma estrutura dominante que não explica a História, com vistas a manter o presente intacto, são absorvidas como naturais e isoladas do contexto complexo em que nasceram e foram aprimoradas. O capitalismo submete necessariamente a maioria ao domínio da minoria, que obviamente, dominante, inferioriza o dominado, inferioriza a maioria. Discrimina. No caso desses três grupos (mulheres, negros e homossexuais), por exemplo, todos foram tidos como perfeitamente aceitáveis em boa parte da história da humanidade. O preconceito, a discriminação e a opressão têm origens sociais, fortalecidas pelo capitalismo.

Há, portanto, uma falha na ideia de "inserção social", que acaba se transformando em interesse particular, em detrimento da defesa da coletividade, que só pode ser representada pela defesa de uma nova forma social, onde não busquemos inserir-nos no mercado de trabalho ou no meio político, mas já estejamos automaticamente atuantes como agentes sociais representativos.

A privatização do interesse público é a marca da atuação social “onguizada”. É preciso entender o pessoal como político, desprivatizar as lutas, não perder o foco da questão da propriedade dos meios de produção como fundamental para resolver as diversas formas de opressão social. Por mais que alcance conquistas específicas e avanços significativos, a luta fragmentada não é capaz de obter a autonomia e a efetividade político-social de qualquer desses grupos.

As respostas conservadoras a tais conquistas são frequentemente a radicalização do racismo, do machismo e da homofobia, e essa fórmula pode ser aplicada a qualquer grupo oprimido, a começar pelos trabalhadores, peças centrais nesse debate. Por isso, é preciso consolidar essas conquistas cultural e institucionalmente, e essa consolidação só pode ser feita através da luta unificada, da mudança profunda de organização social e, como consequência possível, da profunda mudança estrutural. Existe uma limitação intransponível, por exemplo, nas leis antidiscriminatórias, que mantêm o preconceito sutil. A mudança precisa ser sistêmica e cultural, de forma dialética.

Como garantir essa autonomia – para todos – sem a democratização dos meios de comunicação? E sem a propriedade coletiva dos meios de produção? E sem uma reforma agrária profunda? O cristianismo como fortalecedor constante do machismo (mulher retalhada sexualmente), da homofobia e mesmo do racismo, ao tratar historicamente com violência a cultura religiosa dos povos afro-descendentes. Nunca as mulheres foram tão reprimidas quanto na Idade Média, quando a Igreja Católica exercia o monopólio da realidade objetiva a partir do controle institucional. Como, então, combater o preconceito sem desconstruir os desmandos religiosos sobre o Estado teoricamente laico?

Como se vê, não é possível pensar essas lutas de forma separada, sob pena de alcançarmos sempre vitórias incompletas, vitórias mancas. Enquanto houver capitalismo, haverá a opressão de muitos por poucos, haverá discriminação, haverá inferiorização dos diferentes como forma de alavancar a si mesmo como superior, como dominante. Há um ciclo de opressão específica que tende à repetição enquanto as lutas não estiverem conscientemente integradas, que só pode ser rompido através do entendimento das causas macro de todas as formas de dominação. Mulheres brancas, homens negros e homossexuais brancos tendem, na conjuntura atual, à mútua opressão.

A luta “onguizada” é, ao mesmo tempo que mantenedora da estrutura que cria suas demandas, reflexo desse mesmo sistema. É marca de uma sociedade que já naturalizou as práticas capitalistas a crença na possibilidade de sucesso individual. Essa fábula é referendada por um ou outro exemplo isolado de ascensão social que se torna parâmetro para mostrar como todos os sapos podem transformar-se em príncipe. Porém, a verdade é que essas raríssimas ascensões servem apenas como simulacro de igualdade de oportunidades, apenas como uma pequena peça pregada pelo sistema.

Um negro chega à presidência dos Estados Unidos, uma mulher chega à presidência do Brasil logo após um ex operário deixar o cargo, e acreditamos que os negros podem vencer o preconceito caso se esforcem, as mulheres podem superar o machismo se não tiverem medo e os pobres podem enriquecer, desde que trabalhem mais. É a privatização do público, a individualização de um processo que só pode prosseguir coletivamente, e acaba esvaziado pela crença no mito do indivíduo isolado do ambiente social. Essa conclusão pode ser expandida para os movimentos sociais que se isolam da totalidade, deixando-se levar pelo conto capitalista da ascensão individual, avulsa. Mudar essa mentalidade é uma necessidade básica para que todos os oprimidos – que, em outros níveis de relações, costumeiramente tornam-se também opressores – alcancem a emancipação completa.

Usando como exemplos os movimentos de defesa dos negros, das mulheres e dos homossexuais, ficam claras as idas e vindas da amplitude das ações desses grupos. Em certos momentos tivemos aproximações com ideários de esquerda, mas a dispersão interna das mobilizações gerou – e gera – dificuldades no entendimento estrutural dos problemas.

O movimento negro

A criação de movimentos sociais em defesa dos negros foi iniciada no Brasil logo que abolida a escravidão – ainda que os quilombolas e os grupos contra a escravidão tenham sido geradores desses movimentos, estabeleciam-se com uma pauta única, o fim da escravidão, e não havia clareza na defesa da inserção social do negro, apenas em sua libertação. A reversão do quadro de marginalização dos recém libertos era a principal demanda, e estava completamente desvinculada de quaisquer ideários de esquerda. Pelo contrário, a Frente Negra Brasileira (FNB), principal entidade de defesa dos negros na primeira metade do século XX, flertava com o fascismo e o integralismo. Seu lema era "Deus, pátria, raça e família".

Apenas com o começo do fim da Ditadura Militar, no final dos anos 1970 e início dos 80, a orientação do movimento negro foi hegemonizada por novos grupos, com a fundação do Movimento Negro Unificado (MNU), cujas influências vinham das lutas dos negros norte-americanos (Martin Luther King, Malxom X, Panteras Negras), de movimentos de libertação dos países africanos (Guiné Bissau, Moçambique, Angola) e da organização marxista brasileira Convergência Socialista. Petrônio Domingues explica: “Havia, na Convergência Socialista, um grupo de militantes negros que entendia que a luta anti-racista tinha que ser combinada com a luta revolucionária anticapitalista. Na concepção desses militantes, o capitalismo era o sistema que alimentava e se beneficiava do racismo; assim, só com a derrubada desse sistema e a conseqüente construção de uma sociedade igualitária era possível superar o racismo”.

É interessante, nesse sentido, observar um quadro elaborado por Hamilton Cardoso para explicar as mudanças sofridas pela orientação dos movimentos negros brasileiros. Segundo Hamilton, na primeira fase (1889-1937), os princípios ideológicos eram o nacionalismo e a defesa das forças políticas de direita, a escravidão e o despreparo moral / educacional eram vistos como as causas da marginalização do negro, e a solução para o racismo deveria dar-se pela via educacional e moral, nos marcos do capitalismo e da sociedade burguesa. Na segunda fase (1945-1964), o nacionalismo e a defesa das forças de centro e direita eram o ideário, a escravidão e o despreparo cultural / educacional eram as causas da marginalização, e a “via educacional e cultural, eliminando o complexo de inferioridade do negro e reeducando racialmente o branco, nos marcos do capitalismo ou sociedade burguesa” era a solução que se apresentava. Por fim, na terceira fase (1978-2000), a orientação política eram o internacionalismo e a defesa das forças políticas da esquerda marxista, a escravidão e o sistema capitalista eram vistos como principais problemas, e a possível solução aparecia, finalmente, “pela via política, nos marcos de uma sociedade socialista, a única que seria capaz de eliminar com todas as formas de opressão, inclusive a racial”.

Apenas nessa terceira fase as ideias de assimilação e integração do negro à sociedade começam a ser superadas pela abordagem “diferencialista” (igualdade na diferença), tão próxima do ideário socialista. Por causa de diversos fatores – a começar pela falta de unificação entre os grupos que defendem os interesses anti-racistas e pelo caráter puramente vanguardista desses movimentos, sem a massificação da disputa – essa orientação geral, tida no quadro de Hamilton como hegemônica, ainda não perpassa os agentes políticos que travam essa batalha nas mais diversas instâncias.

Há ainda a ser considerado, no contexto contemporâneo, a ascensão do hip-hop como movimento popular capaz de fazer a mediação entre as vanguardas políticas e as periferias. Na combinação de denúncia racial e social, reside, muitas vezes de forma ainda desorganizada, a confluência entre o combate ao racismo e às outras formas de opressão social.

O movimento feminista

Por muito tempo às voltas com demandas mais simples do que as do movimento negro e com mais facilidade de acesso a classes sociais mais privilegiadas, as feministas obtiveram, ao longo da história republicana brasileira, avanços mais facilitados. A “integração” à sociedade capitalista veio antes para as mulheres do que para os negros, sempre advindos de setores oprimidos economicamente.

Com o “milagre econômico” da Ditadura Militar brasileira, as mulheres começaram a entrar no mercado de trabalho com mais força, o que, por outro lado, arrefeceu o movimento feminista. Ao mesmo tempo, os grupos de esquerda que encabeçaram as lutas pela democracia eram, muitas vezes, impregnados de preconceitos machistas, o que fez com que os discursos entrassem em embate. Assim como o movimento negro, os grupos feministas se fortaleceram quando a ditadura começou seu declínio, e esse renascimento veio junto com a proximidade da esquerda e do marxismo. Havia, porém, a busca por autonomia discursiva, o início da formação de um ideário feminista interior ao marxismo.

Após muitos questionamentos e oscilações, apenas no final da década de 1980 o feminismo parte em definitivo para o combate institucional, com atuação em sindicatos, partidos políticos e em “movimentos de mulheres”, que contemplavam os interesses mais imediatistas das classes sociais oprimidas. O diálogo entre o vanguardismo do feminismo e o apelo popular dos “movimentos de mulheres”, aliado à entrada na disputa institucional, deu força às lutas. Avanços importantes passaram a acontecer, e a Constituição de 1988 foi aprovada com 80% das demandas da bancada feminina, que atuou em conjunto, atendidas.

Porém, a participação institucional e a integração entre vanguarda e povo precisam ser acompanhadas de ações para a mudança profunda do Estado, ou se transforma em movimento cooptado e cooptante. É preciso a compreensão – e a atuação precisa ter presente essa compreensão – de que a estrutura necessariamente mantém as desigualdades de classe, cor ou gênero. Ainda que as diferenças entre oprimidos e opressores sejam reduzidas, permanecerão profundas e a opressão seguirá enquanto não houver uma mudança sistêmica e cultural. A igualdade não existe na prática capitalista.

O movimento homossexual

A discriminação contra os homossexuais possui raízes religiosas profundas e mais visíveis do que as que permeiam o pensamento racista e machista. A naturalização da homossexualidade era a regra em sociedades amplamente estudadas pelos ocidentais, mas esse aspecto da cultura dessas sociedades passou a ficar de fora da didática impregnada pela religiosidade homofóbica.

Na Grécia clássica, por exemplo, os filósofos mantinham relações sexuais com seus aprendizes como forma de aproximação e aprendizado. A moral judaica começou a tratar o sexo como ação meramente voltada à procriação, e o cristianismo, ao ampliar seu espaço geográfico de influência, foi levando consigo esse conceito. A união da moral judaico-cristão ao biologismo desenfreado levou à classificação patológica do “homossexualismo”, o que fundamentou em falsas bases científicas o preconceito, no início do século XX.

Considerada normal entre alguns grupos indígenas pré-colombianos e tida no Brasil Colônia como prática terrível, a sodomia deixou de ser crime com a independência e o fim dos Tribunais do Santo Ofício, mas, com a moral cristão cristalizada no país, o preconceito tornou-se a prática.

Na década de 30, com a ditadura presidida por Getúlio Vargas, o “homossexualismo” voltou a ser crime, e apenas no fim dos anos 70, com o arrefecimento da Ditadura Militar implantada em 1964, começam a surgir grupos de defesa dos homossexuais, quase sempre desconectados de lutas sociais mais amplas. A insipiência desses grupos torna ainda pouco politizada sua atuação, mas temos visto, nos últimos anos, um começo de inserção institucional de agentes defensores da causa homossexual, o que pode desembocar finalmente em sua conexão com disputas hegemônicas mais amplas.

Novos caminhos

A trajetória do conjunto de movimentos sociais brasileiros aponta para uma necessária politização dos debates, mas a “onguização” do discurso crítico ainda é uma marca que serve de entrave às verdadeiras conquistas sociais. A busca por unidade dentro desses movimentos é o caminho inicial para que haja, em seguida, uma integração mais ampla.

O combate à desigualdade deve ser entendido em sua totalidade, deve ser a luta contra todas as formas de desigualdade, pois, ainda que tenham origens diversas, todas as formas de discriminação e consequente opressão (e vice-versa) possuem um fator mantenedor fundamental: o capitalismo, o sistema da desigualdade, da dominação, da coisificação do homem. Nessa estruturação social haverá sempre a cultura da competição desenfreada, que conduz os indivíduos à agressão mútua, à tentativa constante de diminuir o outro, a opressão como única forma de não ser oprimido.

A cultura de interação social precisa ser modificada para que a discriminação, o preconceito, a desigualdade e a opressão desapareçam. Avanços específicos serão sempre limitados, e não levarão à supressão da injustiça da coisificação. A luta unificada e ampla por mudanças profundas e estruturais é a única forma de alcançar demandas específicas. Tornar públicas e coletivas as disputas privadas e individuais é mexer na mentalidade social e na forma como as relações se estabelecem. É criar uma cultura de solidariedade em superação a reacomodações sociais que, longe da emancipação dos setores historicamente oprimidos, mais se aproximam da caridade das elites, controlando com migalhas a fome por justiça e igualdade.


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