Costumo trazer à baila assuntos jurídicos por força do hábito. E também como uma espécie de alerta para os jovens estudantes (calma lá, também não sou tão velho assim): entre a teoria e a prática há uma larga distância. Por exemplo, o due process of law é uma coisa tão antiga, mas tão antiga, que remonta a João Sem-Terra (sim, o vilão das histórias de Robin Hood) e sua Magna Carta, no século XIII. Esse antigo princípio, o do "devido processo legal", previsto explicitamente no art. 5º, LIV, da nossa Constituição, nos garante "o contraditório, a plenitude do direito de defesa, a isonomia processual e a bilateralidade dos atos procedimentais" (1). Trocando em miúdos: podem me acusar, mas tenho o direito de saber do que me acusam. E o direito de repelir a acusação. Qualquer nação civilizada o adota, ainda mais em pleno século XXI. Mas eu não disse que é assim na teoria, e que na prática há uma larga distância? Então...
Joseph K., o personagem do "Processo" de Franz Kafka, se repete diariamente. A prisão de Guantánamo, esse campo de concentração moderno, está repleta deles, e nem precisava que o Wikileaks vazasse provas (2). Os ianques, os autoproclamados "campeões do mundo livre" (sorry?) são exímios verdugos. É de causar arrepios de indignação a visão dos presos vestidos de laranja, ajoelhados, rostos encapuzados. Mormente sabendo que muitos foram levados a tentativas de suicídio, pelo desespero, e que a CIA publicamente assume o uso da tortura de prisioneiros, hipocritamente chamada de "técnicas avançadas de interrogatório" (3). O crime: ser muçulmano, ser afegão, ser paquistanês, saudita, egípcio. Pobre Joseph K. das Arábias.
Lembro-me do "Orientalismo" de Edward Said. Na mente binária ianque (não, não é redundância: há quem se salve, Reed, Cannon, para ficarmos na política) o mundo árabe, exótico e misterioso, com seus habitantes de pele escura e língua esquisita, ocupa o imaginário como o inimigo a ser batido. Desde a queda das torres gêmeas (mas quantas torres, figurada e literalmente falando, a política externa ianque não tem derrubado pelo mundo, em seus séculos de imperialismo?), assumindo o posto outrora pertencente aos soviéticos. Apesar de Obama, reiteradamente, insistir que não, o inimigo não é o muçulmano, mas os terroristas. Mas o binário não vê diferença. Falou árabe, é terrorista- se for barbudo, melhor ainda.
Mas, e aqui volto ao início, ser terrorista não faz de ninguém um excluído de seus direitos elementares- o devido processo legal, inclusive. Se se responde com terror ao terror, não há mais que terrorismo por todos os lados. E assim não há disfarce de "campeões do mundo livre" que resista.
Aliás: o que é ser "terrorista"? Os marxistas entendemos que um problema de base deve receber uma solução de base. Somos radicais, no sentido apontado por Marx: vamos à raiz. A complexa tarefa revolucionária, de erguer um novo sistema de produção por sobre a base do antigo, não se limita a explodir bombas e matar este ou aquele funcionário público. Se bastasse isso, pergunta Trotsky, para quê organizar a classe trabalhadora? Dinamitemos a Casa Branca e, voilà, eis o socialismo pronto. Não é simples assim.
Por outro lado, o termo "terrorista" tem sido reiterada, e hipocritamente, usado para se referir nada mais nada menos à luta do fraco contra o forte. Para o status quo, quem quer que resista é um terrorista. Nesse sentido, há algo de honroso em receber, das potências imperialistas, esse epíteto- daí Trotsky dizer, "nossos inimigos de classe têm o costume de queixar-se de nosso terrorismo", sendo que as classes dominantes colocam o rótulo de terrorismo em toda ação do proletariado voltada contra os exploradores (4).
Mas aqueles confinados nas masmorras de Guantánamo, em sua imensa maioria, sequer nesse sentido podem ser considerados "terroristas". Estão lá por acaso: foram pegos no lugar errado e na hora errada. Mas não têm acesso a defesa, não têm quem os ouça. Estão num limbo jurídico, com a anuência do Estado ianque, Judiciário inclusive.
E fica aqui minha dica final, à turma que ainda está na faculdade de Direito: é muito bonito, emociona etc., mas no papel é uma coisa. Na realidade, outra bem diversa. Principalmente, cuidado com os rótulos fechados: isso de "Justiça", abstratamente falando, não existe. É um conceito manipulável, com facilidade, pelo poder dominante. Conforme a lição de Engels, "a justiça é a expressão ideologizada, celestializada, das relações econômicas existentes, ora segundo o seu lado conservador ora segundo o seu lado revolucionário. A justiça dos gregos e dos romanos achava justa a escravatura; a justiça dos burgueses de 1789 exigiu a supressão do feudalismo por ele ser injusto" (5).
Havendo justiças e justiças, você deve optar por uma: a das classes exploradoras, ou a dos oprimidos. A liberdade dos Josephs K. do mundo depende disso.
Notas:
(1) Nas palavras do processualista Frederico Marques, cit. p. José Afonso da Silva, "Curso de Direito Constitucional Positivo".
(2) "Guantánamo 'by Kafka'". Jornal "O Globo", 26/ 04/ 2011.
(3) "Morte de Bin Laden retoma debate sobre tortura em interrogatórios" - http://bit.ly/iVcTik
(4) Leon Trotsky, "Porque os marxistas se opõem ao terror individual".
(5) Friedrich Engels, "Para a Questão da Habitação".