Mesmo como historiador, consciente da construção incessante das consciências, sempre me impactou o consenso construído contra, nesse caso, a população judaica, em enorme parte da Europa civilizada, nos anos anteriores e durante a II Guerra. Não é simples apreender plenamente o processo de literal banalização da desumanização das comunidades demonizadas, que prosperou solto durante os anos que procederam ao massacre medonho.
Sábado passado, pela tarde, assisti o noticiário de grande rede televisiva brasileira, anunciando, com visível satisfação, que ataque aéreo da OTAN atingira residência de familiares de Kadafi, sem, no entanto, conseguir matá-lo, segundo fontes “não confirmadas”. Enquanto a telinha transmitia celebração de rebeldes de Benghazi, apresentada como ocorrendo em Trípoli [!], o âncora agregou, lendo o script dos redatores da rede televisiva, que no ataque cirúrgico não havia que se lamentar a morte de civis. Isto por que teriam morrido apenas três “netos” e o “filho” menor do “ditador”, de 29 anos, que até pouco estudava na Europa.
Certamente informado pelo serviço secreto russo, Vladimir Putin, em visita à Dinamarca, na última terça-feira, denunciara o plano dos dirigentes da OTAN de assassinar Muammar Kadafi. Na ocasião, perguntara : “– Quem deu o direito a eles [membros da OTAN] de sentenciar alguém à morte [...].” O primeiro-ministro russo lembrou que a ONU não autorizou ? como não poderia autorizar, sob qualquer pretexto ? o assassinato do dirigente líbio.
Horas após o ataque assassino, porta-voz da OTAN afirmou que as bombas e os mísseis daquela organização não apontam para indivíduos singulares, mas exclusivamente objetivos militares. A própria imprensa européia, que mantém a tradicional subserviência às ações imperialistas de seus respectivos governos, pergunta-se, se isso fosse certo, como é que as bombas terminaram sobre uma residência, em bairro residencial de Trípoli, onde se encontrava reunida, precisamente, a família Kadafi! Questão à qual os responsáveis da OTAN respondem com o mutismo das hienas que seguem silenciosas à espreita da vítima.
O planejamento da morte de um chefe de Estado, por um outro, é crime de Estado, de extrema gravidade, sancionado pelo direito internacional. Uma ordem de ataque direta, tomada inarredavelmente a frio pelos representantes máximos das três grandes nações envolvidas nos fatos, absolutamente despreocupados com as inevitáveis vítimas civis, constitui ato de terrorismo de Estado que passa a pesar sobre os senhores Sarkozy, Obama e Cameron.
Um ato terrorista de Estado que certamente não causará impressão, se não despertar regozijo, entre enorme parte da população européia e estadunidense. Isto porque ceifou a vida de um jovem homem e de três crianças certamente árabes e possivelmente muçulmanos. Raça e religião demonizadas nas últimas décadas, igualmente a partir das necessidades de rapina do mundo pelo grande capital. Portanto, não há, nos fatos, a lamentar perdas, nem civis, nem humanas.
* Mário Maestri, 62, é historiador.