Não havia muito tempo que o muro de Berlim caira por si e o “socialismo real” derrubara-se produto das suas próprias contradições. O mundo em aparência estava bem feito. Só os marxistas consequentes faziam advertências de que a derrrubada do capitalismo, bem fosse parcial, havia chegar mais tarde ou mais cedo e que este aluimento estava ligado a uma irracionalidade intrínseca ao próprio modo de produção.
Tornava-se, porém, absolutamente necessário desvendar esses mecanismos e, por isso, tratava-se todavia de um retorno aos princípios que Marx deixara esplícitos banindo todo o monturo que décadas de estalinismo deitara sobre o marxismo. Aguardamos que o artigo que se vos pressenta, caros leitores, ajude a crebar as barreiras que travam a explicação científica do mundo e deixe abertas determinadas perspectivas.
Este artigo pois está datado embora este escrevinhador acha que não perdeu actualidade. Julguem os leitores, acrescentem e critiquem pois é na crítica onde é que se pode afinal enxergar o alvor de uma nova sociedade mais justa.
Publica-se agora com algumas mudanças.
Tempos rijos,
Chuva densa,
És a minha mãe Coragem,
A tenra mocidade minha
Mutter Courage.
Arsen Dedi1
O filósofo alemão Max Horkheimer disse que “as predições históricas respeito do destino da sociedade burguesa tornaram-se certas”2. Se enceto o artigo pressente pola cita do pensador da Escola de Frankfurt, pois ainda que aplicado leitor de Marx não era de certo marxista mas antes um criticista (ele próprio nomeou ao seu pensamento como Teoria Crítica, assim como à escola que comandou3), é porque assinala no seu discernimento com incomum tino e honestidade, não apenas a racionalidade do pensamento e prognose em Marx e Engels, mas também que a crítica da sociedade capitalista que com tanta genialidade inauguraram é, não só a crítica radical à apologia e cobardia dos Adam Smith, David Ricardo, John Stuart Mill, Jean-Baptiste Say, James Mill ou Nassau Senior entre outros, mas antes o ocultamento dos resultados científicos aos que se tinha de chegar por resultado da coerência interna na pesquisa e ainda assim ocultaram sob pressupostos pretensamente ligados à natureza do objecto estudado.
Este fenômeno4 atinge, no momento atual, amplidão extrema (olhem-se, por exemplo, as especulações em volta da problemática feminina, questão candente e fulcral que nenhum marxista pode esguelhar e não obstante fica encoberta pola ideologia dominante sob o ideologema de feminismo quando se coloca como alvo principal a luita de mulheres em abstrato frente a homens em abstrato, mais para lá de qualquer enquadramento sincrônico e diacrônico, social, ético e histórico5; ou a ecologista, omitindo ex professo, ao tratarem desta problemática, as categorizações de que se entende ou que se teria de compreender por simbiose e harmonia/inarmonia homem versus/sive natureza, entre muitas outras questões de capital importância.
Sinala Norberto Bobbio – mais outro filósofo não marxista -, que “Marx foi até hoje o crítico mais radical do capitalismo”6, indicando a obrigação imprescindible de partir de Marx para fazermos a crítica mais radical da ideologia que sustenta o edifício de exploração e todavia a crítica para a eliminação na filosofia dos critérios de validade dos positivismos a partir do clássico de Comte até a lógica vigente.
Partir do princípio da crítica da ideologia – segurada num emaranhado aparato filosófico – envolve a compreensão da criação e reprodução da mesma. Eu marcaria cá, se se me permitir, três teses que ajudem para explicar a problemática posta:
1.- Os aparatos ideológicos reproduzem a ideologia estabelecida.
2.- A filosofia é a alta elaboração intelectual da manifestação do debate ideológico tanto no seio de uma classe como entre as classes em briga e, por essa mesma razão, o centro de gravidade do sistema de direção e do poder material do Estado.
3.- A luita teórica para traspor o atual estado das cousas tem que se dar no seio das organizações operárias, quer dizer, na prática política: o método nas alianças de classe, as contradições no desenvolvimento desigual do modo de produção, isto é, a teorização da atual fase da luita de classes. Fica por demais assinalar que qualquer disputa acadêmica sobre a metologia não deixa de ser estéril, traidora aliás, pois nada ajuda a transpor a situação de magreza e fraqueza extremas das organizações que se dizem do proletariado.
Faz-se indispensável, antes de mais, precisar as fontes do raciocínio e, ao fim e ao cabo a legitimitade da irracionalidade na etapa histórica do capitalismo de hoje7.
Sinalemos de primeiro que o capital não é um ente abstrato, ideal, senão, em primeiro lugar o momento histórico no que se produzem as condições para que qualquer quer que seja o ser possa, ou tenha a possibilidade, de ser produzível e em segundo termo, o tempo em que operam um conjunto de manipulações que dão lugar à libertação das forças respeito de quaisquer limitações naturais.
Daqui se tiram concepções filosóficas e ideológicas que pretendem dar conformidade entre factos e ideias de uma suposta racionalidade objectiva ligada ao modo de produção que, além disso, explora homens e destrue povos de lés a lés, mas esta segunda parte do discurso cumpre que esteja ocultado, tirado da vista, tenha de passar despercebido, disfarçado pola eficácia da primeira parte do ideologema.
O rudimento dos argumentos justificadores foi estreitamente vinculado tanto à matemática: tudo pode ser medido, quanto à física: tudo pode ser objecto de processos de transformação, como a economia: tudo pode ser mercado e vendido. Nesse mesmo baseamento de objectividade absoluta é sonegado o fundamento da cega lei em tanto negadora da determinação subjectiva. Por outras palavras, foi estabelecida a norma máxima – e daqui a ideologia- de uma racionalidade universal: o mundo era escuro e brutal até a chegada do capitalismo e, consequentemente, qualquer briga para mudar esse sistema não é mais que uma virada para o mundo caótico (quantas vezes não se tem escuitado que a democracia – já falaremos, se é que temos ocasião, da democracia noutro lugar -, entendendo a democracia tal como prescreve a Constituição Espanhola-, é um mal sistema, mas qualquer outro é pior?).
O fato mesmo dessa compreensibilidade traz consigo, também necessariamente que, mercê ao cálculo e ao conhecimento dos mecanismos desse cálculo, pode-se produzir além da limitação natural, quer dizer, a possibilidade de um desenvolvimento não limitado naturalmente das forças produtivas.
Quando o capital estabelece o princípio da racionalidade, também está determinando que a base principal torna-se efetiva por meio da irracionalidade, em tanto não é uma assunção social a procura da satisfação das necessidades, mas também individual, privada e privativa de quem tem a decisão produtiva final, quer dizer, daqueles que são possuidores dos meios de produção.
As crises, com o seu mostrar-se cíclico, são momentos de máxima racionalidade pois reestruturam outra vez o conjunto do sistema mas vêm a acontecer sob os parâmetros da mais absoluta irracionalidade: esbanjamento de recursos materiais e humanos cumulados por causa dessa racionalidade universal que, lembremos, foi organizada prima fácie por meio de processos plenamente racionais e sujeitos à determinação e formulação de termos matematizáveis, objetivos.
Assim pode-se inferir que a própria racionalidade do conjunto do sistema ao ser subjugada pola esfera da racionalidade privada e levada aos extremos da destruição física dos aprestos e seres humanos presenta-se como a antítese da racionalidade posta como princípio.
Contudo, há que salientar que o mesmo realizar-se das crises revoluçona de tal maneira as forças produtivas que empurra a novos níveis tecnológicos mais adiantados e para uma nova estruturação da força de trabalho cuja qualificação dá por resultado um superior caráter abstrato (em tanto ciência é trabalho em abstrato) e, por consequência, uma redobrada capacidade de entender e dominar o processo produtivo no seu conjunto.
Esta imensa capacidade potencial do género humano de exercer o domínio sobre a natureza e sobre a própria reprodução vital encontra-se trabada pola barreira da apropriação privada, base final da existência do modo de produção capitalista.
A fixação da força de trabalho no processo produtivo em funções determinadas racionalmente pola ciência e a vontade individualmente racional do possuidor dos meios de produção, tem o seu governo absoluto, tirânico, no mercado, força cega que não pode ser regulamentada, isto é, não pode ser dirigida pola racionalidade. Ainda mais, a racionalidade necessariamente parcializada polas decisões individualizadas da racionalidade privada se encontra guiada pola irracionalidade de um espectro, de um elemento que se escapa da própria racionalidade: o mercado. Assim resulta em diversas racionalidades ligadas polo vencelho que reata o paradigma da irracionalidade.
Entende-se então que, posto o capitalismo num beco sem saída: as relações sociais não são compatíveis com o controle individualizado destas forças, a humanidade como tudo tem uma dependência do que se poda fazer com essas forças. Rege, então, o maior perigo: as possibilidades de manipulação da humanidade por potencialidades quase que ilimitadas que podem fazer cair ao gênero humano na absoluta barbárie quando não na extinção da própria expécie humana. Irracionalismo no pensamento e barbárie em ação não são mais que dous termos numa mesma equação fatal.
Compreende-se assim que a filosofia do capitalismo, uma vez a classe da burguesia tinha chegado ao seu zênite vislumbrando ao por-do-sol, como na metáfora hegeliana, erguer-se a coruja do proletariado que enxerga na escuridade da história, torna-se imperiosamente irracional num duplo senso: pavor a um triunfo revolucionário que ponha definitivamente em causa o modo de produção e distribuição, e irracional polo próprio agir do modo de produção e distribuição.
A ninguém lhe pode estranhar, deste jeito, que um pensador tão inteligente como Nietsche – filósofo da época da burguesia consolidada e colonialista- tenha dito na Vontade do poder: “A aniquilação polo juízo é secundada pola aniquilação pola mão” Não obstante, contra o que diz o filósofo de Röcken a jeira ainda não está acabada de lavrar e é da nossa competência essa superação que permita de vez a substituição de aquilo que os homens pensam por aquilo que deveriam pensar.
Aparentemente fácil a conclusão, dirá alguém. Contudo há que reafirmar mais uma vez que as questões mais aparentemente fáceis serem as mais importantes e as de resolução mas complexa e mais difíceis de resolver. Frisamos mais uma vez: nada há de original no que vimos de dizer, porém imperativo e inadiável a sua resolução.
1 Poeta sérvio.
2 O Estado autoritário, em Sociedade em Transição: estudos de filosofia social, Planeta-Agostina, Barcelona, 1986, pág. 97
3 Veja-se no volume ante citado a conferência A teoria crítica, ontem e hoje, do mesmo modo que os trabalhos de 1967, Crítica da razão instrumental (Zur Kritik der instrumetellen Vernunft) e Teoria Crítica (Kritische Theorie) de 1968.
4 Repare-se que, para o marxismo, não existe limite talhante entre o fenômeno e a essência, pois que a essência só se pode conhecer e descrever polo fenômeno.
5 Uma das achegas mais interessantes foi a de Simone de Beauvoir no seu livro O segundo sexo que, noutro artigo tentaremos criticar.
6 Nem com Marx nem contra Marx, Fondo de Cultura Económica, México, 1999, pág. 273.
7 A filosofia do período do capitalismo nem sempre foi irracional. A mesma escola racionalista foi sem dúvida nenhuma um importante avanço na história da filosofia e no conhecimento das ciências da natureza. Os seus representantes mais importantes foram no século XVII, Descartes, Spinoza e Leibnitz; no século XVII, Kant e Fichte; no século XIX, Schelling e Hegel. Todos eles abriram passo ao pensamento marxista e significam os alicerces mais consideráveis da grandiosa crítica posta em pé por Marx e Engels.
*8 Cito em castelão segundo Legislación Social Básica, Editorial Cívitas, S.A., Madrid, 1983, terceira edição, pág. 14, § 1. Título Preliminar Artículo 1.1: “España se constituye en un Estado social y democrático de Derecho, que propugna como valores superiores de su ordenamiento jurídico la libertad, la justicia, la igualdad y el pluralismo político"
*9 Cita apanhada em Ideia de Nietzsche de Fernando Savater, Ariel, 2000, Barcelona, pág. 83.