A afinidade eletiva existente entre o Partido dos Trabalhadores e o capital é visível desde já um bom tempo. Em 2004, por exemplo, num gesto de autoritarismo extremo acompanhado de um discurso cínico e oportunista, o partido expulsou quatro de seus parlamentares que não concordavam com as determinações da cúpula acerca da famigerada reforma da previdência, então em curso.[1]
Esta atitude - a imposição dos interesses de uma parte do partido sobre o todo de que é composto -, muito aquém de afirmar uma virtude política indispensável para os tempos atuais, configurou apenas a ilustração exemplar do imperativo prático que tem orientado as ações do PT ao longo dos últimos anos: a busca fetichista da unidade, realizada com vistas a neutralizar as energias críticas dos trabalhadores e a promover a ampla e irrestrita conciliação das classes estruturalmente antagônicas da presente sociedade.[2] Demonstrou, acima de tudo, como o referido partido expressa, em sua forma de ser e de se comportar, a maneira de se estruturar do próprio capital, com seus respectivos interesses e contradições.
Ora, o capital, explica-nos István Mészáros (2002), é justamente esse modo totalizante de controle sobre a atividade produtiva humana, que se configura de maneira hierárquica e autoritária e visando eliminar toda e qualquer postura que seja diferente do propósito de levar a efeito a mais elevada extração praticável do trabalho excedente, num movimento perene, sempre acumulativo e auto-expansivo. Nesse contexto, diz o filósofo, a única alternativa viável é a crítica radical, feita pelo trabalho, de tal conjunto de relações sociais, uma crítica que promova a negação das determinações materiais do sistema e a conseqüente afirmação de novas maneiras de mediar o metabolismo social humano - a negação, portanto, do modo de ser hierárquico e excludente do capital e a afirmação de uma forma de relacionamento genuinamente associativo e horizontal entre os "produtores livremente combinados".[3] Tal alternativa se encontra delineada em torno daquilo que Mészáros denomina de pluralismo socialista, um princípio de organização que visa superar as contradições inerentes à imposição da unidade e as infelizes mistificações de que essa proposta vem acompanhada.
Nesse sentido, argumenta o autor de Para além do capital, é possível observar que já Marx e Engels em sua época estavam atentos para o fato de que a unidade não é pré-requisito para o êxito do projeto revolucionário dos trabalhadores. Duas breves passagens dos referidos autores, listadas por Mészáros, servem para demonstrar o posicionamento de ambos sobre o assunto. A primeira é de uma carta de Engels a August Bebel, datada de 1º-2 de maio de 1891, condenando a influência de Wilhelm Liebknecht sobre a redação do Programa de Gotha: "Da democracia burguesa ele [Liebknecht] trouxe e manteve uma verdadeira mania de unificação" (ENGELS, apud Mészáros, 2002, 811). A segunda é de uma carta de Marx a Wilhelm Bracke, escrita em 5 de maio de 1875, onde se lê que "é um engano acreditar que este sucesso momentâneo [isto é, a unidade em redor de um movimento político] não será comprado a um preço muito alto" (MARX, apud Mészáros, ibid., 811).
Para Marx e Engels, a suspeita em relação à exigência da unidade se devia ao fato de que tal proposta costumava levar os partidos e as organizações de esquerda a conseqüências prejudiciais, entre elas a supressão da autocrítica e a barganha sobre princípios. Isto era, evidentemente, um preço alto demais a ser pago pelas forças que lutavam pela realização de uma comunidade humana livre do jugo do capital, onde homens e mulheres pudessem desenvolver ao máximo as suas potencialidades. Ciente desse dilema, Mészáros estabelece uma reflexão que pretende apontar uma saída para o labirinto no qual se perdem muitos dos movimentos socialistas da atualidade.
A unidade política, explica o filósofo, não pode ser um objetivo porque a classe trabalhadora não é, por sua própria condição, unificada. Na verdade, ela constitui um complexo de setores variados - muitas vezes antagonicamente estruturado - em contraposição à pluralidade de capitais em torno da qual se baseia o sistema vigente.[4] Por isso, o que é desejável no movimento revolucionário é a articulação pluralista – e não a unidade, que pressupõe camuflar diferenças artificialmente - dos diversos grupos que combatem pela causa dos trabalhadores. Como explica Mészáros,
"Assim como naqueles dias [isto é, nos tempos de Marx e Engels], mais uma vez este assunto é um assunto de suprema importância. Pois hoje – talvez mais que nunca, em vista das experiências amargas do passado recente, e do não tão recente – não é mais possível conceber as formas imprescindíveis de ação comum sem uma articulação consciente de um pluralismo socialista que não só reconhece as diferenças existentes, mas também a necessidade de uma adequada 'divisão do trabalho' na estrutura geral de uma ofensiva socialista. Em oposição à falsa identificação da 'unidade' como o único meio de patrocinar princípios socialistas (enquanto, na realidade, a perseguição irreal e a imposição de unidade trouxeram com elas as necessárias concessões sobre princípios), permanece válida a regra de Marx: não pode haver barganha sobre princípios." (2002, 812)
De acordo com Mészáros, somente o pluralismo socialista pode impedir que, dentro de um movimento de luta social e política complexo e multifacetado, ocorra a imposição do interesse de uma das suas partes sobre as demais – imposição esta que, justamente, como o citado caso do PT o demonstra, origina a supressão da autocrítica e a barganha sobre princípios, que tanto beneficiam a ordem de reprodução sociometabólica vigente.[5]
A práxis pluralista, no sentido que o filósofo atribui ao termo, é aquela que reconhece e combina as diferenças e as particularidades concretas inerentes aos variados setores do proletariado[6] em função do seu objetivo maior. Ao assim proceder, cria uma forma de ação conjunta que possibilita o combate do próprio fundamento de hoje haver os particularismos antagônicos de classe, a saber: a dinâmica – sempre acumulativa e auto-expansiva - da exploração do trabalho excedente que configura o sistema do capital.
As implicações políticas de tal proposta são claras: o agente social da transformação revolucionária não pode ser definido como sendo composto unicamente por este ou por aquele ramo específico dos trabalhadores. Ao contrário: precisa ser buscado no trabalho como um todo, que, reconhecendo sua constituição múltipla e heterogênea, age no sentido de realizar o – também reconhecido - interesse que permeia a classe em sua totalidade.
Lemos, assim, em O poder da ideologia, que o sujeito social da emancipação
"só estará apto para criar as condições do sucesso se abranger a totalidade dos grupos sociológicos capazes de se aglutinar em uma força transformadora efetiva no âmbito de um quadro de orientação estratégica adequado. O denominador comum ou o núcleo estratégico de todos esses grupos não pode ser o 'trabalho industrial', tenha ele colarinho branco ou azul, mas o trabalho como antagonista estrutural do capital. Isto é o que combina objetivamente os interesses variados e historicamente produzidos da grande multiplicidade de grupos sociais que estão do lado emancipador da linha divisória das classes no interesse comum da alternativa hegemônica do trabalho à ordem social do capital. Pois todos esses grupos devem desempenhar seu importante papel ativo na garantia da transição para uma ordem qualitativamente diferente." (2004, 51)
Ou seja, mesmo a classe trabalhadora sendo composta de uma miríade de setores, cada qual com interesses correspondentes às suas posições particulares, há, por trás disso, pela própria situação atual do trabalho enquanto atividade subordinada ao capital, uma condição e um interesse compartilhado por todos: isto é, respectivamente, a exploração fetichista do trabalho excedente e a necessidade de superá-la em direção a uma sociedade emancipada.
No processo revolucionário, portanto, todos os grupos terão papel fundamental, mas é preciso que estejam alertas para o fato de que, para uma emancipação realmente digna deste nome, a luta não pode se realizar com um dos segmentos afirmando o seu interesse sobre os demais. O pluralismo exige horizontalidade entre os movimentos de trabalhadores. Somente dessa maneira os socialistas poderão aspirar à radical e efetiva superação do sistema do capital.
O novo modo de operação dos revolucionários não deverá, então, espelhar a maneira de se estruturar do próprio capital – isto é, como o PT o faz: hierarquicamente e afirmando o interesse da parte sobre o todo, com vistas a eliminar as energias combativas dos trabalhadores. A emergente força social emancipadora conseguirá ter êxito em seus propósitos apenas se se articular a partir de princípios radicalmente diferentes de ação e de organização. A reconstrução das mediações sociais e políticas em torno das quais estarão reunidos os socialistas já necessitará, pois, estar baseada naquilo que Mészáros chama de igualdade substantiva,[7] em contraposição à igualdade meramente formal da atual ordem vigente.
Isto quer dizer, em outras palavras, que a estruturação interna do movimento terá que apresentar, em seu próprio processo constitutivo, "prenúncios de uma nova forma – genuinamente associativa – de cumprir as tarefas que possam se apresentar"[8] (2004, 52). E para que tudo isso possa, enfim, se realizar, é imprescindível, diz Mészáros, a formação de uma "consciência de massa socialista", a ser desenvolvida no processo mesmo de confrontação prática com a ordem do capital.[9]
A proposta mészáriana do pluralismo socialista é, portanto, de fundamental importância para a esquerda brasileira nos dias atuais. Depois da tsunami de pelegos que assolou o país com o governo do PT, as novas forças socialistas a se constituir precisarão se reformular sem repetir as mesmas contradições. PSOL, PCB, PSTU e todos os demais grupos políticos imbuídos do objetivo da superação do capital necessitarão se articular de forma crítica e pluralista daqui por diante, ou estarão condenados ao fracasso e à impotência.
Mais do que a falsa unidade – calcada, como vimos, na imposição da parte sobre o todo e na barganha sobre princípios – é imperioso coadunar grupos diversificados, com as suas respectivas particularidades, em redor do objetivo comum: derrotar o capital e instaurar a comunidade dos homens e mulheres verdadeiramente emancipados - ou a "associação livre dos produtores", como a chamou Marx.
Em tempos históricos de profunda crise, torna-se imprescindível que construamos essa capacidade de atuar em conjunto de forma horizontal. Se continuarmos mergulhados na inépcia no que diz respeito a travarmos esse tipo de ação coletiva, estaremos com toda certeza perdidos. Se, ao contrário, conseguirmos envidar esforços articulados, mesmo que tenhamos entre nós algumas eventuais diferenças, teremos, quem sabe, alguma chance.
Notas:
[1] Os parlamentares em questão eram a senadora Heloísa Helena e os deputados federais Luciana Genro, João Fontes e Babá. Eles alegavam que a reforma tinha viés privatizante e retirava dos trabalhadores direitos conquistados historicamente, indo assim em direção contrária ao ideário mantido pelo PT ao longo da sua trajetória passada. Para um maior entendimento sobre o caráter conservador da referida reforma, ver Oliveira (2006).
[2] Por meio, entre outras coisas, da administração de políticas assistencialistas e da cooptação de centrais sindicais, o imperativo da conciliação de classes foi tão intenso no período das duas primeiras gestões petistas que o sociólogo Francisco de Oliveira (2010) não hesitou em afirmar que "se FHC destruiu os músculos do Estado para implementar o projeto privatista, Lula destrói os músculos da sociedade, que já não se opõe às medidas de desregulamentação". O mesmo, ao que tudo indica, está a se reproduzir no governo Dilma.
[3] Este conceito de crítica – articulação material de negação e afirmação no sentido promover a "transcendência positiva da auto-alienação do trabalho" – é desenvolvido pelo filósofo húngaro em praticamente todas as suas obras. Ver, por exemplo, a esse respeito: Mészáros (2008).
[4] Conforme as palavras de Mészáros: "Na realidade, temos uma multiplicidade de divisões e contradições e o 'capital social total' é a categoria abrangente que incorpora a pluralidade de capitais, com todas as suas contradições. Ora, se olharmos para o outro lado, também a 'totalidade do trabalho' jamais poderá ser considerada uma entidade homogênea enquanto o sistema do capital sobreviver. Há, necessariamente, inúmeras contradições encontradas sob as condições históricas dadas entre as parcelas do trabalho, que se opõem e lutam umas contra as outras, que concorrem umas com as outras, e não simplesmente parcelas particulares do capital em confronto. Essa é uma das tragédias da nossa atual situação de apuro. [...] Essas divisões e contradições restam conosco e, em última instância, devem-se explicar pela natureza e funcionamento do próprio sistema do capital." (2007, 66)
[5] A expressão, na forma de atuação prática do Partido dos Trabalhadores, das exigências materiais do capital deve ser entendida, evidentemente, a partir dos múltiplos complexos de mediação que permeiam a relação entre essas duas estruturas, especialmente a crise estrutural do capital e a crise estrutural da política, que acometem o sistema sociometabólico vigente. Em razão das limitações do presente artigo, não poderemos nos aprofundar acerca desses temas. Para uma maior compreensão das crises estruturais do capital e da política, ver Mészáros (2002). Para uma boa visão das transformações do PT ao longo dos últimos anos, ver Oliveira (2006, 2010 e 2010b).
[6] Segundo Mészáros (2007), proletário não pode ser definido meramente como o operário de fábrica ou o trabalhador manual. Proletariado, enquanto categoria social, diz respeito a todos os grupos sociais que, sofrendo a ação usurpadora do capital em relação aos meios de produção, se encontram alijados da possibilidade de controle consciente sobre o sociometabolismo humano. Proletarizar-se, nesse sentido, é perder esse controle.
[7] A igualdade substantiva é definida por Mészáros qualitativamente, com base nas teses de Babeuf que foram endossadas por Marx: "A igualdade deve ser medida pala capacidade do trabalhador e pela carência do consumidor, não pela intensidade do trabalho nem pela quantidade de coisas consumidas [grifo nosso]. Um homem dotado de certo grau de força, quando levanta um peso de dez libras, trabalha tanto quanto outro homem com cinco vezes a sua força que levanta cinqüenta libras. Aquele que, para saciar uma sede abrasadora, bebe um caneco de água, não desfruta mais do que seu camarada que, menos sedento, bebe apenas um copo. O objetivo do comunismo em questão é igualdade de trabalhos e prazeres, não de coisas consumíveis e tarefas dos trabalhadores" (BABEUF, apud Mészáros, ibid., 42). Tais são os princípios de organização da produção e da distribuição a ser implementados na fase superior da sociedade socialista: não a igualdade de coisas consumidas, nem de tarefas ou horas de trabalho realizadas, mas a igualdade medida pelas capacidades e carências não alienadas dos indivíduos sociais.
[8] Nessa forma de organização política - horizontal e radicalmente pluralista -, é fundamental, afirma Mészáros, que os trabalhadores saibam articular as suas demandas parciais com as exigências gerais de superação do sistema. Vale a pena, mais uma vez, ler o que escreve o autor de Para além do capital acerca de sua proposta: "as demandas mais urgentes de nossa época, que correspondem diretamente às necessidades vitais de uma grande variedade de grupos sociais – empregos, educação, assistência médica, serviços sociais decentes, assim como as demandas inerentes à luta pela libertação das mulheres e contra a discriminação racial -, podem, sem uma única exceção, ser abraçadas sem restrições por qualquer liberal genuíno. Entretanto, é absolutamente diferente quando não são consideradas como questões singulares, isoladamente, mas em conjunto, como partes do complexo global que constantemente as reproduz como demandas não realizadas e sistematicamente irrealizáveis. Desse modo, o que decide a questão é a sua condição de realização (quando definidas em sua pluralidade como demandas socialistas conjuntas), e não o seu caráter considerado separadamente. Por conseguinte, o que está em jogo não é a enganosa 'politização' destas questões isoladas, pela qual poderiam cumprir uma função política direta numa estratégia socialista, mas a efetividade de afirmar e sustentar tais demandas 'não-socialistas', tão largamente automotivadoras no front mais amplo possível [grifo nosso]" (2002, 818). Ou seja, as "demandas urgentes de nossa época" – empregos, educação, saúde, etc. – são todas importantes e não devem deixar de ser reivindicadas. Mas o essencial, diz Mészáros, não é a "politização destas questões isoladas" e sim a integração de tais demandas dentro de um quadro reivindicatório mais amplo, que combata o fundamento real de a sociedade se ver hoje majoritariamente privada dessas condições básicas: o sistema de controle sociometabólico do capital.
[9] Daí a importância atribuída pelo filósofo húngaro (2008b) à educação revolucionária, que necessita se realizar em meios formais e não formais, a fim de proporcionar o desenvolvimento contínuo da consciência e dos valores socialistas exigidos para a efetivação da nova forma histórica.
Referências:
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002.
MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004.
MÉSZÁROS, István. O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo: Boitempo, 2007.
MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social. São Paulo: Boitempo, 2008.
MÉSZÁROS, István, A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2008b.
OLIVEIRA, Francisco de. O momento Lenin, 2006. Disponível em . Acesso em 31/03/11.
OLIVEIRA, Francisco de. O avesso do avesso. in OLIVEIRA, Francisco de, BRAGA, Ruy e RIZEK, Cibele (orgs.). Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo, 2010.
OLIVEIRA, Francisco de. Consenso conservador cria falsa divergência entre Serra e Dilma (entrevista a Valéria Nader e Gabriel Brito). 2010b. Disponível em http://www.correiocidadania.com.br/content/view/5102/9/>. Acesso em 03/01/11.