A memória projectou-me no passado ao avistar da estrada, vindo do aeroporto, as muralhas vermelhas de Marrakech.
Revi-me numa noite abafada de Agosto há mais de meio século. Estava numa festa em Agadir no terraço de um edifício construído à beira da praia.
De repente soaram tiros na cidade, logo seguidos de intensa fuzilaria. Era o começo da insurreição marroquina.
Eu participava com André Leveuf, de Le Monde, e Jean Fitère de, L'Aurore, num concurso de jornalismo promovido por uma companhia de navegação francesa. Pela manhã soubemos que o tiroteio assinalava no Sul o começo da rebelião que iria abrasar o país.
Decidimos abandonar o concurso. Leveuf viajou para o Norte e morreu pouco depois em Oujda quando cobria o levantamento armado. Eu segui com Fitère para Marrakech.
Transcorridos dias, em Mogador, vi pela primeira vez morrer gente quando a Legião Estrangeira interveio, disparando sobre um grupo de muçulmanos que tinha atacado judeus.
Acompanhei o massacre do caminho de ronda sobranceiro às muralhas da velha fortaleza.
Essa jornada marcou a minha vida. Senti que para compreender o sentido da existência teria de romper com a rotina do quotidiano de pequeno jornalista numa sociedade fascista, e correr pelo mundo.
Não esqueci as perguntas sem resposta que então formulei quando, na semana seguinte, durante a noite da festa do Aid El Kebir, em Casablanca, as ruas e praças se encheram de muçulmanos que fitavam o céu enluarado.
Difundira-se o rumor de que o sultão Mohamed V, deposto pelos franceses e exilado em Madagáscar, ira aparecer na lua.
Recordo a algazarra, por volta da meia-noite. Eles apontavam com os dedos para o alto, «viam» o sultão.
A guerra de libertação da Argélia principiou meses depois. A França trouxe Mohamed V de volta e apressou se a iniciar negociações de paz cujo desfecho foi a independência de Marrocos.
Ao rever há dias as muralhas avermelhadas de Marrakech, a rádio do táxi transmitia notícias da Líbia e da tragédia nuclear do Japão.
Lembrei-me de que em pouco mais de meio século o mundo tomou um rumo imprevisível.
Que Marrakesh seria a actual? Quando a conheci, tinha pouco mais de 100 000 habitantes; hoje ultrapassa o milhão. O país saltou de 8 para 32 milhões.
Para onde estaria a caminhar Marrocos?
A PRAÇA LOUCA
Em Marrakesh há uma enorme e estranha Praça: a Djemaa el Fna. Em português, o seu nome, traduzido do árabe, seria Assembleia dos Mortos, porque ali executavam na Idade Media os condenados pela justiça do sultão. A UNESCO fez dela Património Humanidade.
Porquê?
Talvez pela sua excepcionalidade absoluta. Não existe no mundo uma praça comparável.
Ela agiu tão fortemente sobre a minha imaginação que, transcorrido muito tempo sobre a primeira visita, recordando-a, situei ali uma estória que permaneceu fechada numa gaveta durante muitos anos (1).
A Djamaa é mais conhecida pela designação de Praça Louca. E o nome justifica-se.
Localizada no centro da medina, a antiga cidade árabe, a Djemaa continua a ser o pulmão e o ex-líbris de Marrakech.
O que mudou nela?
A atmosfera de desordem, a gritaria, a agitação, o formigueiro humano persistem. O forasteiro caminha por um cenário inimaginável, sente-se transportado a um mundo de loucos.
A Djemaa é um gigantesco, alucinatório mercado no qual milhares de pessoas durante dia e noite compram e vendem mercadorias, ideias, canções, danças, amuletos. Barbeiros, dentistas, sapateiros, acrobatas, encantadores de serpentes, domadores de macacos, aguadeiros exercem ali as suas profissões.
Uma fauna humana ruidosa povoa o grande recinto. Há escrivãos a quem montanheses do Alto Atlas ditam cartas; bailarinas exibem-se na dança do ventre; contadores de estórias, rodeados de ouvintes atentos, repetem, em múltiplas adaptações, contos das Mil e Uma Noites.
Os cavalos de dezenas de vetustos trens coloridos batem com os cascos no pavimento, relinchando enquanto os cocheiros, empoleirados nos bancos, oferecem os seus serviços a quem passa.
Os camelos, que antes integravam a paisagem desapareceram da praça. O trânsito é caótico. Motos, automóveis, bicicletas cruzam a Djemaa em todos os sentidos, zigzaguiando entre o povo, perante a indiferença da Polícia.
Ao fim da tarde a fisionomia da praça transmuta–se. Das ruas e vielas que nela confluem saem carroças metálicas, puxadas por jovens e velhos. Transportam mesas, bancos, alimentos que em tempo rapidíssimo fazem do centro da Praça uma cadeia de restaurantes populares baratíssimos onde, num ambiente irrepetível, noite adiante, se revezam os apreciadores da cozinha marroquina, do couscous aos tajines e ao mechoui. De tudo ali se oferece e consome, excepto álcool e carne de porco.
Os Souks não justificam a fama que os envolve. Cresceram em desordem, a partir da Djemaa, ocupando um emaranhado de ruelas. A luz do dia penetra ali com dificuldade através de coberturas rústicas. Falta-lhes o encanto e a beleza dos bazares persas e turcos que funcionam em edifícios monumentais, construídos há séculos. Na continuidade da tradição medieval, as minúsculas lojas estão agrupadas no respeito pela separação dos ofícios. Os compradores sabem como encontrar os ferreiros, os tintureiros, os sapateiros, os ourives, os vendedores de, tapetes, de roupas, de utensílios domésticos.
Mas quem entra no Souk na esperança de adquirir preciosidades sofre uma desilusão. Hoje predominam ali artigos de baixa qualidade e pacotilha importada da China e da Europa, incluindo jóias falsas que nada têm de oriental. O artesanato marroquino é muito belo, sobretudo o berbere, mas as peças genuínas, obras de arte, são cada vez mais raras.
A CIDADE NA HISTÓRIA
Das cidades históricas de Marrocos, a mais jovem é Marrakech.
No início do século XI, uma tribo de berberes saharianos subiu do deserto da Mauritânia e estabeleceu-se no oásis da planície pedregosa do Haouz num acampamento que rapidamente se transformou em cidade. Eram muçulmanos fanáticos, dispostos a regenerar o Islão dos desvios e perversões que violavam o livro sagrado, o Alcorão. Na península Ibérica desmoronara-se o Califado Omeida e a cristandade avançava sobre os reinos taifas em que se subdivira o Al Andalus.
Sob o comando de um guerreiro notável, Yusef Ben Tachfin, os Almoravidas – assim ficaram conhecidos na Europa – conquistaram Marrocos, atravessaram o Estreito, invadiram a Espanha, e derrotaram os cristãos. Fundaram um império que se estendia do deserto do Sahara ao Ebro, do Atlântico a Argel.
A dinastia criada pelos nómadas, transformados em sedentários foi, porém efémera. Em meados do século XII, outra tribo berbere arabizada conquistou Marrakech e Al Andalus, e o seu chefe, Abd El Moumen, proclamou-se sultão e criou uma nova dinastia, a dos Almohades, mantendo a capital em Marrakech.
Tolerantes em questões religiosas, esses príncipes foram grandes construtores. Sobre as ruínas do antigo palácio almorávida foi edificada uma mesquita, a Koutoubia, monumento deslumbrante cuja torre de 77 metros domina a cidade.
Yakub el Mansour, neto de Moumen, fez de Marrakech uma cidade cujos palácios, mesquitas e medersas rivalizavam, segundo os historiadores árabes, com os grandes monumentos do Cairo e Damasco. A ele se deve a construção da Giralda de Sevilha e da Torre Hassan de Rabat. A imponente cintura de muralhas vermelhas, com 19 quilómetros, nove portas e 202 torres, foi obra sua, uma jóia da arte militar da alta Idade Média.
Ruínas de grandiosos palácios e templos permitem imaginar o que seria a cidade nesse período de esplendor. Os materiais de construção utilizados – argila, cal, madeira e palha – não resistiram, porém, com poucas excepções ao peso do tempo.
Mas o que resta na medina e fora dela, desde a necrópole dos sultões saadianos a antiquíssimas mesquitas empurra o viajeiro pelas estradas da imaginação para o refinamento encantatório da Marrakech desaparecida, cantada por poetas como a maravilha do Islão ocidental.
Alguns palácios, adaptados a hotéis de luxo, como o Al Mamounia, mantêm a atmosfera do passado tão harmoniosamente que filmes hoje clássicos foram ali rodados e escritores europeus situaram nele capítulos de romances célebres.
Por um paradoxo histórico, a grande cultura da civilização árabe não chegou a Marrocos vinda do Oriente. Desceu da Europa para a África. Na poesia, na arquitectura, na ciência a fonte de inspiração foi a Espanha califal.
Nas mesquitas, o esguio minarete turco é substituído pela torre andaluza, o iwan persa e a cúpula de raiz bizantina estão ausentes.
A CIDADE «EUROPEIA»
Marrocos foi o único país do Norte de África que escapou à dominação turca.
Os povos que povoavam a região resistiram aos cartagineses e a presença de Roma foi superficial. Esta é identificável nas ruínas de Volubilis cujas construções de pedra resistiram ao tempo, tal como as das fortalezas portuguesas.
A breve ocupação francesa, essa deixou sequelas profundas. O Protectorado -eufemismo que ocultava a realidade colonial - durou de 1912 a 1956 e terminou após uma rebelião armada cujo desfecho foi o reconhecimento da independência.
A colonização foi comandada por um procônsul famoso, o marechal Liautey, que estabeleceu uma separação física entre os autóctones e os colonos que chegavam da Europa.
Marrakech não constituiu excepção. A cidade dos europeus surgiu e cresceu fora das muralhas.
Foi concebida por arquitectos talentosos que se esforçaram por fundir a tradição na modernidade. Criaram um pólo urbano mediterrânico, onde o que é especificamente local, os arcos, galerias, colunas, terraços, se integra num projecto inovador. Nos blocos de edifícios ente o rosa e o ocre, não muito altos, o quotidiano dos franceses transcorria no seu meio, com cafés, restaurantes, lojas, bancos e cinemas europeus, a escassa distância da Marrakech berbere e árabe, iluminada pelo grande sol que consoante as horas altera a cor das neves eternas nos píncaros da Cordilheira do Atlas.
Com a independência, os belos edifícios da cidade dos franceses foram gradualmente mudando de moradores. Hoje a maioria dos apartamentos pertence a camadas da burguesia marroquina. Uma ponte invisível estabeleceu a ligação entre os antigos colonos e a nova classe urbana que ali se instalou.
O bairro, conhecido pelo nome de Gueliz, cresceu, e novas e amplas avenidas foram rasgadas na planície. O estilo dos edifícios, porem, é o mesmo. O nome permaneceu. Os guias chamam com frequência «cidade europeia» ao Gueliz.
Mais alem do Gueliz estende-se o grande palmeiral, com mais de 700 000 árvores, a enorme mancha verde sem a qual o clima de Marrakesh seria tórrido.
AMANHÃ IMPREVISÍVEL
Com alguma surpresa, regressei de Marrakech convicto de que o sentimento anti-imperialista é no país muito menos forte do que na Argélia. Em Marrocos não houve uma guerra colonial genocida e as estruturas sociais reflectem a herança secular de um feudalismo anacrónico.
Embora a língua oficial seja o árabe, não encontrei um só marroquino, jovem ou idoso, que não me respondesse em francês. Mas contrariamente ao que observei na Turquia, no Líbano e no Irão, onde o vestuário das gerações anteriores quase desapareceu, em MarraKech a força da tradição, em todas as frentes culturais, é transparente.
Na cidade, a djelaba, o burnous, a gandura são pelo menos tão comuns como as roupas ocidentais. E a percentagem de mulheres que tapam o rosto é muito elevada.
No hotel, à chegada, o recepcionista informou, sorridente, que a segurança na cidade era total, acrescentando que o nível de violência em Marrakech é mínimo.
Será Marrocos uma excepção, permanecendo o seu povo à margem do actual despertar do mundo árabe?
Não creio. Abordarei o tema num próximo artigo.
Vila Nova de Gaia, 20 de Março de 2011
(1) Sob o título «Djemaa el Fna, essa estória foi incluída no livro de contos «Do Fundo do Tempo», publicado em 1979 pela Editoral Caminho.