A contagem de mortos já começou e, como sabemos, o Iraque é testemunha, não costuma ser de números modestos. Mas, não esqueçamos: a matança começou antes da resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas de 17/ 01/ 2011 (1). Começou com a repressão, pelo regime de Kadafi, aos "bêbados e drogados".
Tenho dito: os levantes do Oriente Médio e Maghreb se inserem no amplo movimento popular desses países em busca de melhores condições de vida e das liberdades mais elementares, contra seus governantes títeres do Ocidente. O que diferencia Kadafi de um Mubarak é apenas o enfrentamento que o primeiro teve (prestem atenção ao tempo verbal) com o imperialismo. Mas os tempos mudam- e o poder, que é sedutor, amolece o mais raivoso. Ainda mais se tratando de um indivíduo excêntrico como Kadafi, o genial autor do Livro Verde (a primorosa obra onde aprendemos que "a mulher menstrua por ser fêmea, e o homem não menstrua por não ser fêmea"). Principalmente dos anos 2000 para cá, Kadafi se revelou mais um lacaio do imperialismo, fazendo a alegria das multinacionais petrolíferas e da direita europeia, de Berlusconi a Blair.
Kadafi se diferencia de Mubarak (e de outro ditador colega recém-escorraçado, Ben Ali da Tunísia) apenas por isso: seu passado (passado!) antiimperialista. Ah, mas há outra diferença: enquanto Mubarak, diante do ascenso da revolta popular egípcia, tentou negociar, inclusive mediante compensações financeiras, e renunciou quando viu não ter mais volta, Kadafi falou grosso e ameaçou eliminar os "bêbados e drogados" que promoviam as badernas, inclusive caçando-os de casa em casa. É um ditador que assume sem pudor sua ditadura. Não cogita, não finge cogitar, a existência de uma oposição, de insatisfeitos, de vozes dissonantes- cuja existência é normal e saudável em qualquer lugar do mundo. Não vestiu a capa democrática nem, com o perdão da ironia, "para inglês ver". Os opositores eram isso: bêbados e drogados sob as ordens de Bin Laden! Talvez Kadafi tenha mesmo motivo para temer a Al Qaeda. Não cedeu o território líbio para a CIA "interrogar" (mas que eufemismo infeliz) suspeitos de "terrorismo"? Mas, Sr. Kadafi, se você é tal inimigo da Al Qaeda, a ponto dela fomentar "bêbados e drogados" para derrubá-lo, por que diabos os EUA -que querem justamente fortalecer governos que sirvam de freio às organizações terroristas- estariam interessados na queda de seu regime, como a partir de certo momento você começou a acusar? Coisas que não batem. A política é assim mesmo.
Diz Trotsky que "governar é, em certa medida, prever" (2). Causou espanto a pouquíssima habilidade política de Kadafi em resolver, "pacificamente", a crise. Ainda mais vinda de alguém já há 40 anos no poder. Ao invés do diálogo e das mediações, a truculência e a bravata. Se bem que, como diz Trotsky de novo, "a luta política é, no fundo, a dos interesses e das forças, não dos argumentos" (3). Força invés de argumento, tal é a receita do déspota (nada esclarecido) Muamar Kadafi. Reformas na constituição, mudanças nisso e naquilo- e não estaríamos presenciando a escalada de nova invasão imperialista num país árabe. Mas não: Kadafi prometeu esmagar os "bêbados e drogados"- e arrastou a Líbia à guerra civil. O pretexto que o Ocidente esperava.
O povo líbio (quero dizer, a classe trabalhadora e as forças progressistas líbias; socialistas, seria pedir muito, 40 anos de Kadafi não deram brecha para isso) tem diante de si, agora, duas frentes de batalha. O inimigo interno, Kadafi e seus sequazes, e o externo, que é decorrência do interno. A solidariedade internacionalista, que move a nós marxistas, faz com que levantemos, alto, a palavra de ordem que, mais do que nunca, deve ser: "Pela autodeterminação do povo líbio!" (4).
Notas
(1) Último Segundo: "Conselho de Segurança aprova zona de exclusão aérea na Líbia"- http://bit.ly/f1Xmfo
(2) Leon Trotsky, "A revolução traída".
(3) Trotsky, idem.
(4) "Contra a invasão da Líbia e a guerra imperialista", nota do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB), de 20/ 03/ 2011- http://bit.ly/eqrhBB