Propõe-se igualmente que, silenciadas as armas, em março de 1870, com a morte do presidente Francisco Solano López [1827-1870], por décadas, na Monarquia e na República, teria se mantido consenso historiográfico também quase total quanto às boas razões e às explicações apologéticas sobre a participação do Império na dolorosa hecatombe. Apenas em 1978, nos últimos anos da ditadura militar, o jornalista J. J. Chiavenato publicaria sua célebre – e a seguir questionada – reportagem histórica O genocídio americano: a guerra do Paraguai.
Se não houve efetivamente oposição culta durante a guerra, não procede a proposta de pleno consenso após o conflito. O acordo monolítico sobre as boas razões do Brasil no ataque ao Paraguai constitui mito construído, inicialmente, através da deslegitimação e, a seguir, do encobrimento, da critica positivista comtiana sobre a responsabilidade do governo e das classes dominantes imperiais na guerra fratricida, sistematizada em 1892, por Raimundo Teixeira Mendes, em seu livro Benjamin Constant: esboço de uma apreciação sintética da vida e da obra do Fundador da República Brazileira. Conspiração de silêncio que se mantém substancialmente ainda hoje.
Boas e Fortes Razões
O positivismo comtiano tinha boas razões para opor-se à intervenção imperial no Prata, primeiro contra o Uruguai e, a seguir, contra o Paraguai. Na sua visão histórica, a monarquia era momento metafísico, em direção à república, organização da sociedade positiva e industrial no seu estágio definitivo. Para aquela interpretação, se havia razão histórica positiva na escravidão antiga, que garantira o pregresso e a evolução social, nada desculpava a escravidão moderna ou americana, verdadeira “aberração moral” e “monstruosidade colonial”.
A visão comtista de mundo previa igualmente a inevitável e saudável divisão das grandes nações em pequenos estados. Ela pregava o pacifismo e o advento da fraternidade universal, apoiados na organização científica da sociedade industrial e nas tendências altruístas do homem e consubstanciados na “Pátria Universal”. O doutor José Gaspar de Francia, fundador do Paraguai moderno, era citado no Calendário Positivista, no 27º dia do 12º mês (Frederico), entre Bolívar e Cromwell, como paradigma de ditador republicano.
O positivismo comtiano era ciência social pró-burguesa e anti-operária, nascida sob a influência da Revolução Francesa e do hegelianismo, quando a grande burguesia assumira já caráter conservador, após revolucionar a ordem feudal. Conservadorismo que se expressara no abandono pela burguesia da direção da revolução democrática de 1848 e, em forma mais enfática, na repressão selvagem da Comuna de Paris [26 de março a 28 de maio de 1871], o primeiro Estado operário da história, que cumpre em 2011 seus 140 anos.
Os Dois Maiores Pecados
Em inícios dos anos 1880, ao organizar-se no Brasil, sob a direção de Miguel Lemos [1854-1917] e Raimundo Teixeira Mendes [1855-1927], o comtismo era visão de mundo superada na Europa, onde o proletariado propunha-se já objetiva e subjetivamente como demiurgo social. No Brasil monárquico, clerical e escravista, o evolucionismo positivista, apesar de mecanicista e conservador, era espécie de antecipação de sociedade industrial que sequer raiava no horizonte.
Ainda na República Velha [1889-1930], mesmo com suas enormes limitações e incorreções, já claramente explícitas, a aplicação do método positivista comtiano contribuiu para a superação das aparências fenomênicas e para a compreensão mais objetiva de questões fulcrais do passado e da sociedade nacional. Dentre as principais contribuições positivistas comtianas à leitura do passado e da sociedade brasileira, destaca-se certamente a definição da escravidão colonial e da guerra contra o Paraguai como os pecados fulcrais de dom Pedro, do Estado imperial e das classes dominantes da época. Culpas que os positivistas exigiam que fossem reconhecidas e, sobretudo, que se procedesse a “reparação” desses “erros cruéis dos nossos antepassados”.
Como reiteradas outras vezes, em 1895, cinco anos após a proclamação da República e trinta após o início da guerra, o Apostolado Positivista do Brasil definia a grande guerra sul-americana como uma “das páginas mais tristes” do Segundo Reinado, que a “posteridade” haveria de “julgar severamente”. Na ocasião, voltava a exigir que fossem restituídos “solenemente ao Paraguai os troféus” que o Brasil guardava da “pugna fratricida”, declarando-se “saldada a dívida de guerra”. Tudo para que se registrasse que a “República Brasileira” repudiava as “tradições nefastas da política do Império” e oferecia à “nação vencida inestimável penhor de fraternidade universal”.
Após a morte de Benjamin Constant, em 1891, o Apostolado esforçara-se para transformar o monumento ao mais destacado republicano positivista, levantado no Rio de Janeiro, em “monumento à fraternidade universal e especialmente americana”. Para tal, uma “estátua de Benjamin Constant” foi “fundida” com “fragmentos de bronze” de “canhões brasileiros e paraguaios” utilizados naquela “deplorável luta”, oferecidos por ambos os governos. O “medalhão destinado ao monumento” traduzia igualmente a proposta de “restituição dos troféus” e “cancelamento da dívida de nossa querida irmã, a República do Paraguai”.
* Mário Maestri, 62, é professor do Curso e do Programa de Pós-Graduação em História da UPF, RS. E-mail: maestri@via-rs.net
*Agradecemos o gentil apoio bibliográfico da Templo Positivista de Porto Alegre
Bibliografia consultada:
[Apostolado Positivista do Brasil] “A realização de um voto de Benjamin Constant”. snt.
LEMOS, Miguel. A nossa irman a Republica do Paraguai. Apostolado Pozitivista do Brasil. Rio de Janeiro: Capela da Humanidade, 1894.
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MAESTRI, Mário. A Guerra Contra o Paraguai: História e Historiografia: da instauração à restauração historiográfica [1871-2002]. La Guerra del Paraguay: historiografías, representaciones, contextos – Anual del CEL, Buenos Aires, 3-5 de noviembre de 2008, Museo Histórico Nacional, Defensa 1600 Nuevo Mundo/Mundos Nuevos. http://nuevomundo.revues.Org /55579.
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QUEIROZ, Silvânia. “Revisando a Revisão: Genocídio americano: a guerra do Paraguai, de J.J. Chiavenato. Programa de Pós-graduação em História, Universidade de Passo Fundo. Dissertação de Mestrado, 2010.
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