Porém, para que o leitor tenha uma ideia do que penso acerca da problemática da aplicação concreta dos referidos lineamentos, antecipo que a criação massiva de procedimentos técnicos inusitados não é tão urgente ou fundamental quanto a adequação dos artifícios deste tipo já existentes segundo os novos propósitos a atingir. Muitas práticas já tradicionais nas escolas assumem poder formativo mais amplo e profundo pelo mero fato de almejarem o questionamento, ao invés do endosso, do status quo.
Dependendo da discussão preparatória, do consequente estabelecimento deste ou daquele recorte e da absorção de tais ou quais conceitos, com vistas a estes ou àqueles fins, o nada excepcional exercício de expor e apreciar o conteúdo e a tendência lidos em um artigo de jornal ou ouvidos em uma canção ou discurso falado, em peça ficcional ou de imprensa, por exemplo, pode impulsionar o desenvolvimento de capacidades e disposições distintas no discente, o que vem a expressar-se em seus produtos e em suas atitudes, valham-se eles de quaisquer recursos tecnológicos de que se possam valer.
A reorientação fundamental de propósito, do empenho na reprodução (como é usual) para o esforço no combate à ordem vigente (como sugiro no texto, acompanhando inúmeros outros autores de maior calibre – de Marx a Mészáros), pode reprogramar pedagogicamente quaisquer artifícios educacionais, promovendo uma renovação didática extensiva e profunda sem necessidade de uma criatividade mirabolante.
Isto não quer dizer, porém, que novíssimos processos não possam nem devam ser gestados desde o início sob o impulso do propósito de forçar para as grandes mudanças. Novos procedimentos podem e devem surgir. Porém, não em substituição irrestrita, mas seletiva; quando não se tratar dos mais numerosos casos em que compareceriam em apoio àqueles já existentes (hoje usurpados que estão pela qualificação para o mercado, que se traveste de educação e assim se apresenta à sociedade).
Abaixo apresento algumas sugestões em que creio mesclarem-se velhas e novas ideias em propostas que visam a envolver os estudantes com o processo produtivo cooperativo humano global, por meio da promoção de interação produtiva em âmbitos deliberadamente mantidos isentos das imposições mercadológicas diretas (em trabalho laboratorial), com a promoção de reflexões e debates com vistas ao estabelecimento constante de contrastes entre a liberdade ali percebida (que pode e deve ser, em exercício mental sugerido pelo professor, projetada como fundamento de nova ordem social) e as restrições que a ela se impõem na forma do intercâmbio de trabalho humano sob a forma mercadoria – seja como produto, seja como força de trabalho.
Diferentemente, por exemplo, do esforço de ensinar precocemente as crianças a usar o dinheiro (e a “dar-lhe o devido valor”, como querem uns), sugiro que se esforce em evidenciar-lhes seu absurdo, bem como aquele de sua reprodução ampliada (e armazenada em algumas contas bancárias) como fim último da produção de riqueza e, consequentemente, da vida humana – o que é evidenciar-lhes a inviabilidade histórica do sistema do capital. Sugiro que em tal empreitada, seja ressaltada sempre a contradição atual entre a capacidade produtiva que se supera em ritmo frenético a cada instante sob essa lógica e a capacidade destrutiva que se desenvolve de maneira simultânea e a que se associa necessariamente, causando morte e miséria extrema muitas, privação material à esmagadora maioria e miséria espiritual à quase totalidade das pessoas mundo a fora, não obstantes a opulência material de algumas e a qualificação subjetiva elevadíssima, mas unilateral, de muitíssimas.
Essa denúncia do caráter alienado do trabalho atual pode ser feita de modo acentuado sem qualquer prejuízo à qualificação dos estudantes para sua operação ainda necessária. Quer dizer: os alunos são qualificados para a gestão do atual processo, ao mesmo tempo em que se qualificam para sua reorientação profunda, de algum modo assim promovendo-a em desde suas bases, para frutificar efetivamente em um futuro indeterminado, mas cada vez mais plausível e próximo. Cumpre notar nesse momento que, por ser um modo de produção erigido sobre e com os destroços daqueles que “superou”, o sistema capitalista propiciou e depende da preservação de alguma solidariedade, proporcionando, além disso, estímulos para o aumento de abrangência do raio de alcance dessa atitude (como ilustram as doações globais em casos de catástrofes em qualquer canto do planeta etc.). E é a essas reminiscências e vínculos comunais ancestrais, reforçados com outros múltiplos nexos por meio da associação planetária do trabalho humano, com seu aparato material e imaterial, que se devem explorar no fomento a uma postura humanista radical. Ainda que sob a forma alienada do mercado mundial, o sistema capitalista propulsionou muitíssimo avanço à capacidade autoprodutora do humano, à liberdade humana, portanto. Urge retirar a casca do fruto, retirar-lhe a parte podre, para saboreá-lo com gosto, se aqui nos permitirmos uma metáfora.
Outro exemplo de situação pedagógica concreta passível de realizar-se conforme os princípios acima é o cultivo de uma horta por crianças e adolescentes. Este pode ser um projeto transdisciplinar em que tenham ocasião de serem tratadas questões candentes de nosso tempo (tais como superexploração do trabalho agrícola e geral, esgotamento do solo e degradação ambiental em geral, insuficiência alimentar, desperdício, transgenia, agrotoxicidade como prática imperativa do agronegócio, êxodo rural, inchaço urbano), além daquelas mais fundamentais e gerais das ciências da natureza, constantes nos currículos regulares atuais. Além disso, tal situação pode ser oportunidade para as questões filosóficas ainda mais abstratas acerca da relação do homem com a natureza; e deve sê-lo, por serem justamente estas as questões cujo tratamento permitirá a formulação adequada e o encaminhamento de uma resposta para as demais.
Mais exemplos de atividades assim podem ser arrolados. Podem-se promover grandes discussões e projetos, conduzindo-se ao desenvolvimento de capacidades e disposições, considerando-se o objetivo de realizar eficazmente a distribuição gratuita de seus produtos (e de seus novos saberes, por meio de oficinas) em regiões carentes. Isso pode incluir ou não o processamento prévio de alguns dos alimentos colhidos in natura, o que daria ensejo ao estabelecimento de mais um laboratório, sob a forma de uma unidade simples de processamento de alimentos. Uma atividade assim impulsionaria os estudantes, como foi aludido, a tentar retransmitir o que lhes foi proporcionado aprender com o auxílio de seu professor, de modo que o aluno tem ocasião de se tornar mestre – e desmistificar essa posição a partir de sua própria experiência.
A preparação de refeições pelos próprios alunos, sob supervisão qualificada, no dia a dia, nas escolas cujo tempo de permanência dos estudantes assim permita, ou excepcionalmente, para seu oferecimento em festividade à comunidade em que se insere a escola; a visita instruída e frequente a vários ambientes do processo coletivo de trabalho social, como indústrias, lavouras, estações de tratamento de água e de resíduos etc., bem como a universidades e demais ambientes de produção de conhecimento sofisticados (sempre ressaltando seu vínculo com a indústria, com os serviços e demais atividades em algum sentido produtivas), todas essas são possibilidades que se inscrevem nos parâmetros acima propostos.
Outra ideia pedagogicamente rica nesse sentido é a elaboração conjunta e a implementação cooperativa de processos de coleta seletiva e mesmo de reciclagem artesanal de lixo, com vistas à sua repercussão sobre ambientes sociais extraescolares de acesso dos estudantes. A pesquisa em busca da origem histórica das necessidades e dos bens, bem como o rastreamento de sua difusão e de seu incremento (ex.: a utilização do fogo) são igualmente ideias fecundas, por que promovem uma noção de unidade humana para além das fronteiras territoriais e temporais, para além do bairrismo e do patriotismo patéticos, portanto.
Muito de positivo pode ser impulsionado por meio do contraste entre as formas comunais de apropriação da natureza, passadas e contemporâneas, espontaneamente desenvolvidas ou erigidas por processos revolucionários conscientemente conduzidos, com a forma atual, típica do sistema capitalista. Também enriquecedora pode ser a implementação da proposta de alfabetização etc. de adultos por adolescentes estudantes, supervisionada pelos professores, em regiões e contextos diversos, por promover a tomada de consciência pelos estudantes da diversidade-na-unidade/unidade-na-diversidade como característica inelutável e desejável da comunidade humana global.
Tudo isso funcionaria não só de estímulo à absorção de todo o conteúdo formal tratado em sala de aula, como de catalisador da capacidade imaginativa dos alunos; do mesmo modo que promoveria a qualificação moral destes indivíduos, por fornecer-lhes ocasiões propícias ao reconhecimento mútuo como iguais cooperantes – identificação que não se dá pelo plano do consumo, estimulado pelo marketing via propaganda e redundante em reforço do egoísmo competitivo, mas pelo plano da produção, que conduz à solidariedade.
Outras reflexões e outra formação são impulsionadas quando, portanto, ao invés de brincar de mercadinho, os alunos são levados a ver a forma mercadoria do trabalho e da força de trabalho como nociva a todos os seres humanos, em todas as esferas de sua vida. Assim, a necessidade da revolução como saída única para um conjunto volumoso e complexo de problemas pode e deve ser tratada na escola, não obstantes a eventual pouca idade dos alunos e seus hábitos mais ou menos arraigados e reforçados com recompensas pelos pais e demais convivas.