Além das afinidades culturais e geográficas -e um passado sob jugo colonial- tais países possuem um tétrico detalhe em comum: todos sob longas ditaduras pró-Ocidente (num menor grau no caso da Líbia, histórico membro do "eixo do mal" de inimigos dos EUA; mas também o regime de Kaddafi nos últimos anos se alinhou às potências ocidentais (1)).
Lênin diz que "só quando os 'de baixo' não querem e os 'de cima' não podem continuar vivendo à moda antiga é que a revolução pode triunfar" (2). Os levantes populares em voga, mostra da insatisfação política com os grupos dominantes, têm como pano de fundo as precárias condições econômicas de suas populações, numa região de altos índices de pobreza extrema, atingindo, como no caso do Iêmen, a mais de 40% da população (3).
Não podemos ser ingênuos e pensar que os levantes árabes culminarão, necessariamente, em regimes populares progressistas ou mesmo socialistas. A direita internacional acompanha o desenrolar de perto, e é preocupante que a "transição", como no caso do Egito, se dê através das forças armadas. É possível mesmo que muitos lugares recém-vacantes venham a ser ocupados por novos alinhados do imperialismo ianque, mas -e só por isso há um avanço, pequeno que seja- tais governos serão obrigados a adotar a forma democrático-liberal. E é fora de dúvida que, entre a ditadura aberta e a democracia burguesa, é melhor para a classe trabalhadora árabe esta última- daí, novamente Lênin: "nós somos pela república democrática enquanto melhor forma de Estado para o proletariado, no regime capitalista" (4).
Além da melhora qualitativa -relativa que seja- nas condições de vida das populações desses países, os levantes modificarão substancialmente a correlação de forças na região. Os EUA perdem aliados, abrindo margem para a possível assunção de governos, mesmo democrático-burgueses, mas de cunho progressista. E, importante frisar, Israel perderá o título de "única democracia na região", reiterada- e hipocritamente- utilizado como salvo-conduto diante do "obscurantismo árabe" que circunda o país. Em um mar de democracias (liberais-burguesas que sejam), ficará evidenciado que o obscurantismo parte, em verdade, do próprio sionismo. Não é coincidência que, quando do prelúdio da queda de Mubarak, velho aliado, diplomatas israelenses tenham expressado sua preocupação (5).
Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem livremente, e sim sob as circunstâncias legadas do passado (6). As massas do Maghreb e Oriente Médio têm, diante de si, a chance de romper com o próprio passado. Reitero: o que vem a seguir é ainda uma incógnita, mas a mera expectativa de passagem do poder para o povo é um avanço imensurável. Não se pode, contudo, exaurir a luta na mera derrubada dos ditadores. A plena vitória dos povos oprimidos -não apenas do mundo árabe-, para que seja realmente vitória, e realmente plena, requer a superação cabal do sistema econômico vigente, competitivo, degradante, predatório, e o erguimento, sobre suas bases, de um novo- cooperativo, associativo, emancipador. Um sistema socialista, enfim. É preciso ir à raiz da questão. Para que a Humanidade chegue a "seu mais alto cume", "as reformas parciais e os remendos de nada servirão" (7).
Notas
(1) "Media Tall Tales for the Next War", de Norman Solomon, de setembro de 2006. Em português: http://resistir.info/irao/media_next_war_p.html
(2) Vladimir Lênin, "Esquerdismo, doença infantil do comunismo".
(3) "EUA buscam mudança de hábito". Jornal "O Globo", 20 de fevereiro de 2011.
(4) V. Lênin, "O Estado e a revolução". Lênin prossegue: "(...) mas não temos o direito de esquecer que a escravidão assalariada é o quinhão do povo, mesmo na mais democrática república burguesa".
(5) "Revolução no Egito é ruim para Israel", de Ilan Pappe. http://www.patrialatina.com.br/editorias.php?idprog=d04cb95ba2bea9fd2f0daa8945d70f11&cod=7259
(6) Karl Marx, "O 18 Brumário de Luís Bonaparte".
(7) Leon Trotsky, "O marxismo no nosso tempo".