Assim dizemos, primeiro a presidenta (sempre entre aspas e em itálico); depois, eu:
"Há 90 anos, o Brasil era um país oligárquico, em que a questão social não tinha qualquer relevância aos olhos do poder público, que a tratava como questão de polícia."
Hoje, o Brasil continua um país oligárquico, como o é qualquer outro que se ordene segundo o modo de produção capitalista.
Além disso, cabe perguntar: que questão humana não é social, D. Dilma?
Por acaso a vida humana não é condicionada em todas as suas instâncias pela interação produtiva que se estabelece na exploração da natureza e de si pelos indivíduos humanos? Não é mesmo a existência do poder público, quer dizer, da oficialização do domínio de classes sob a aparência de apaziguamento de interesses individuais naturalmente contrastantes, uma "questão social"?
Então, que "questão social" a senhora defende como relevante e qual é o encaminhamento que a senhora aponta como legítimo para ela? O que a senhora permite e contribui para que se faça em seu país, antes de enviar às ruas a polícia, que desta vez está do seu lado e sob suas ordens?
Veremos...
"O país vivia à sombra da herança histórica da escravidão, do preconceito contra a mulher e da exclusão social, o que limitou, por muitas décadas, seu pleno desenvolvimento."
Ainda hoje, o país vegeta na mesma penumbra! Os negros são discriminados (e reagem a isso, em regra, de modo igualmente discriminatório – em alguns casos contra si próprios); as mulheres sofrem ações preconceituosas em vários âmbitos sociais, desde o lar até a lamentável igreja, passando por seu eventual trabalho externo (quando é o caso de ter também esse membro da família, além de muito trabalhar em casa, que se sacrificar diretamente ao capital no maldito moedor de gente que é o "mercado de trabalho" – configurando o que chamam de "a conquista do mercado pela mulher", ideologia que camufla o fato de ser a mulher uma nova conquista do mercado).
E não há algo a que se possa dar o nome de "exclusão social", minha senhora! O mendigo não está à parte, mas é parte! Ele tem função econômica e pedagógico-moral na sociedade do capital: ele induz à apatia, pois inspira na mente da maioria a idéia de que sua própria vida está boa e que suas queixas não fazem sentido diante daquele que expõe suas enfermidades e tematiza suas limitações em público para inspirar a caridade. Isto é, a visão do mendigo leva a maioria a conformar-se com sua vida atual e "não fazer nenhuma besteira", tal como uma greve ou um protesto, na virtualidade de sua piora considerável.
Além do mais, a visão de um mendigo dá a alguns a oportunidade de pagarem por uma lavação de suas consciências. Atiram uma moeda e se sentem satisfeitos e orgulhosos de haverem contribuído para o bem; recaindo num aparente oposto daquele que se recusa a ajudar, com a doação dos insignificantes centavos, para não estimular a preguiça e a vadiagem.
E tem mais o que questionar no trecho acima: o que é "pleno desenvolvimento" no tocante à história de um país?
É algo que se alcança quando as unidades forçadas estabelecidas pelos Estados-Nação atuais forem removidas por completo, em prol das comunidades efetivamente autônomas, dotadas, elas sim, com verdadeiro potencial de inserção cooperativa (e não competitiva) global? O pleno desenvolvimento de um país é, pois, sua dissolução em prol de outra configuração social mais racional, instaurada em escala global?
Então, chegou-se em todo o mundo ao "desenvolvimento pleno" do sistema das nações!
É mais que hora de fazer tudo isso ruir, a partir de sua modificação pela base – o que a senhora vai, certamente, tentar impedir que aconteça por aqui (na estreita medida de seu poder, caso algo assim aconteça sob sua gestão), para mostrar a todos que uma ex-militante-lutadora-e-mulher pode governar o país como qualquer outro que "tenha juízo", isto é, que aja conforme as demandas impostas pelos detentores privados dos recursos sociais de produção de vida humana lotados no país que a senhora preside e mundo afora, mas com algum tipo de inserção neste curral.
Pense em termos históricos, minha senhora. Não estacione seu intelecto e sua moral nessa circunscrição temporal atual, na qual vivemos (todos nós humanos), separados em granjas chamadas países.
Não nos prenda eternamente nesses cercados, nos quais somos mal nutridos, com parte ínfima do fruto opulento de nosso esforço conjunto. Nos quais nos é retirado um excedente considerável do melhor de nós, que são nossa capacidade produtiva e seus efeitos concretos, a serem gastos ou investidos prioritariamente por aqueles que não se esforçam, senão por nos explorar eficazmente. E para que isso se faça com eficácia, estimulam que nos qualifiquemos, com esforço próprio, para cuidarmos de levar tudo isso a cabo com o dispêndio de nossa energia – os atuais executivos são descentes, portanto, dos feitores.
E isso apenas por termos tido a infelicidade histórica de deixar alguns de nós usurparem, há uns poucos milhares de anos, nosso poder material e imaterial comum já então várias vezes milenar, passando a gerenciá-lo segundos seus propósitos exclusivos.
Transferindo entre si, como em corrida de bastão, o produto de toda a humanidade pregressa como herança própria exclusiva, as classes dominantes que se sucederam na história formam a genealogia dos parasitas atuais. As revoluções que não abolem radicalmente a alienação, conferindo-lhe apenas novas formas, não são senão revoluções políticas, como escreveu o senhor Marx já em 1843. Elas mantêm os pilares da exploração, para sobre eles erigir um novo edifício perverso de instituições e disposições morais etc. voltadas para o domínio de classe.
Os países não são mais que unidades competitivas do mercado mundial, e sua população se divide, em regra, entre aqueles poucos que dirigem e se favorecem com esse "jogo" e aqueles que nele se negam cotidianamente, todos imersos em um processo que lhes foge por completo ao controle e com o qual têm que contribuir para manter-se vivos, sem ver nisso qualquer outro sentido.
E é essa ausência de sentido que alimenta a compulsão pelo consumo que hoje se verifica em qualquer canto do mundo, em qualquer classe social, incentivada pela classe capitalista sobre si mesma e sobre as demais, pelo seu impacto na venda – e não, obviamente, por preocupação destes empreendedores com o fim que se dá às mercadorias por eles ofertadas após serem compradas, em seu consumo (não se importando o fabricante de ursos de pelúcia, por exemplo, se seu produto vai para a singela e acolhedora caminha de uma criança ou vai ser usado em um ritual qualquer, representando um indivíduo humano a ser executado, simbolicamente, evidentemente como suposta condição "mística" para que o praticante obtenha um benefício próprio concedido por alguma entidade fantasmagórica – cuja existência se restringe ao âmbito de sua imaginação).
Embora tenha iludido alguns do contrário, a senhora presidenta é agora uma engrenagem de destaque na reprodução de tudo isso, dadas sua importância para o Brasil e a importância deste país no engalfinhar-se geral das "nações". A senhora funciona como instrumento de dominação de classes, como quase todo presidente.
E há vários modelos deste tipo de presidente hoje em operação! Encontra-se de tudo, quando o que se quer é algum que assuma como missão a gestão da desgraça atual, não levando sequer em conta a necessidade histórica de seu combate radical com vistas à sua superação. Obama é negro. A senhora é branca, mas mulher. Mas, o que importa, mesmo, é que, para os movimentos de emancipação, você é ex-talvez-grande-coisa e atual mesma-coisa-que-todos, tendo passado por talvez-algo; enquanto ele é ex-nada e futuro-nada, bem como é um atual-quase-nada.
Vocês (assim como seu antecessor, homem, machista, mas ex-metalúrgico etc.) se equiparam enquanto servos do capital e enquanto ex-supostamente-algo-desejável pelas massas. Para o capital, apesar de suas peculiaridades, os três se igualam enquanto ferramentas.
"Mesmo quando os grandes planos de desenvolvimento foram desenhados, a questão social continuou como apêndice e a educação não conquistou lugar estratégico."
Quais foram os planos realmente grandiosos que já se traçaram no Brasil? O que se fez de grandioso aqui desde a repartição insistente dessas terras em fatias pelo rei de Portugal a quem ele quisesse dar e que aceitasse a aventura de recebê-las e explorá-las, passando pelo patético episódio da espadinha erguida pelo príncipe da mesma metrópole (que aqui estava em função da patética fuga da família real para cá quando da ofensiva napoleônica) em nome da "independência da colônia" (que não libera senão a exploração sem mediação portuguesa – que se faz substituir pela inglesa – das mesmas massas trabalhadoras, em larga escala escravas), até a formação dos atuais gigantescos conglomerados transnacionais de que somos todos (como em todo o mundo) recursos, "bens de capital"?
Foi tudo impulsionado pelo interesse minúsculo de explorar, com o apoio comedido dos exploradores iguais e similares de mundo a fora e sob o olhar atento das "grandes potências" – quer dizer, das circunscrições estado-nacionais que servem como as melhores ferramentas de que se vale o capital global, as quais são operadas pelos seus mais bem qualificados serventes: sua classe trabalhadora – dentre as quais se destacam os EUA.
E a educação?
Esta sempre foi e será, numa sociedade de classes, adestramento de uns para o domínio e de outros para a obediência produtiva. O fim é a promoção de todos para a produção obediente aos imperativos do capital (como critico em meu texto A prática pedagógica e seu potencial revolucionário).
E é isso o que a senhora quer. Não? Treinar as massas, com recursos extraídos delas mesmas de algum modo, para a eficácia na construção de um "país economicamente rico e socialmente justo", eufemismo que a idéia mesma de país e a separação entre economia e sociedade não conseguem esconder, como lembrarei abaixo.
"Avançamos apenas nas décadas recentes, quando a sociedade decidiu firmar o social como prioridade."
O que quer dizer com "avançamos"?
Se o termo estiver mesmo sendo utilizado em algum sentido válido, não seria desprezível assim o progresso caracterizado pela transição da escravidão para o trabalho assalariado (que representou ganhos também para os novos senhores, que agora não têm prejuízo com a morte de um de seus servidores, por exemplo; nem têm de fato que dar-lhe o suficiente para ele manter-se vivo e saudável, bastando pagar-lhe o salário mínimo oficialmente estipulado, por meio de um instrumento político manipulado pelos próprios senhores). E essa transição aconteceu há muitas décadas, não nas recentes.
Mas, não deve ser isso o que considera "avançar". Não pode falar de transformações nas relações sociais de produção. Isso é falar de revolução...
Aliás, não deve referir-se a coisa alguma com o termo, pois não consigo me lembrar de qualquer grande movimento histórico que tenha sido capitaneado por aqui por esse agente tão amplo e diverso que nomeia de "a sociedade". Nem mesmo a transição do trabalho escravo para o assalariado como forma padrão de exploração; pois, a abolição no Brasil foi uma transição negociada em alto escalão, nada tendo a ver com movimentos populares de talhe haitiano.
Recordo-me, ao invés disso, das variadas formas pelas quais as sucessivas elites exploraram o potencial e sufocaram as revoltas que tiveram nascimento no seio da mesma sociedade, quando se dá esse nome à sua porção mais ampla, que se constitui dos explorados.
E o que, diabos, ocorreu recentemente que nos permita dizer que "o social" foi firmado "como prioridade"?!
Sobre esse trecho cumpre, antes de tudo, lastimar o fato de a senhora presidenta reincidir na idéia absurda de que não só a algumas, mas a quase todas as múltiplas dimensões da vida humana deva ser negado o predicado "social", que deve ser restrito a seu único merecedor: aquele âmbito do atendimento hipócrita às necessidades mais elementares das vítimas em estado mais grave do próprio sistema social vigente, cuja naturalização ideológica conduz ao imobilismo e à frustração, que se atenua por meio da caridade!
"O social"... Seria uma mera bobagem, uma estupidez teórica, se não fosse uma idéia tão perigosa!
A preocupação com "o social" refere-se àquele montante de recursos que devemos fazer algum esforço por juntar, para que se possa remediar, eventualmente e bem por alto, a grande catástrofe gerada pela criação mesma de sobre-valor a que é submetida toda a vida social humana atual; mas, se for o caso de ocorrer pruma emergência maior que a manutenção de alguns milhões de quase-vidas, como a iminência de prejuízo privado de algum grupo financeiro, comercial ou industrial forte, por exemplo, não há problema em gastar em seu socorro o que seriam as condições de vida daqueles milhões e de seus descendentes. É um dinheiro que está ali, podendo ser gasto a conta-gotas com a atenuação da miséria; ou aos borbotões, atendendo a demanda vertiginosa das dívidas bancárias etc.
Outro modo de se gastar com os pobres hoje em moda: mísseis. Dizem que não se gastam suficientes recursos financeiros em escolas, hospitais e outros ambientes complexos e virtualmente promotores de bem estar comum. É falso! Quantos mísseis israelo-americanos já foram disparados contra tais edifícios?! Um único míssil tomahawk custa em torno de US$ 569.000,00. Só em 1991, na assim chamada "Primeira Guerra do Golfo", os EUA lançaram 288 mísseis.
Em um ano, seu investimento na educação, na saúde, na infra-estrutura, no esporte, no lazer, na indústria, no comércio e em tudo o mais no Iraque girou em torno de US$ 172.800.000,00. Que tenha sido em sua destruição parece ser só um detalhe.
E a benevolência norte-americana para com o povo iraquiano não para por aí: o volume diário investido na atual ocupação chega a aproximadamente US$ 450.000.000,00. Um donativo de quase meio bilhão por dia! Condenar essa manifestação de solidariedade, de humanidade, é algo que só se pode fazer de má-fé... Não?
E por falar nisso, qual será a linha adotada pela equipe de dona presidenta quanto às Relações Exteriores, mais especificamente aquelas referentes às potências do norte, com destaque para os EUA? Regresso, retrocesso: subserviência.
Voltando ao "social" de D. Dilma, cumpre dizer que se trata daquele montante de dinheiro que o Estado esconde nas ceroulas e se permite apenas pingar aqui e ali, como faz o churrasqueiro que evita as chamas que ameaçam queimar seu assado gotejando água (às vezes salgada) sobre as pequenas labaredas que vão se formando nas brasas, apagando possíveis levantes; dinheiro igual a qualquer outro que, por isso, pode ser vertido de uma vez, todo o balde, sobre um início de incêndio na mesa dos comensais. E é bom que o que se "guarda para projetos sociais" seja dispendido em socorro a investimentos privados, pois com é com uma parte dele que se geram emprego e renda. Não? Se o pessoal que serve nesse metafórico rega-bofe não estivesse servindo, onde estaria? Em casa, desperdiçando aquela belíssima oportunidade que lhe cai do céu, numa época tão difícil para "todos"? Não! Do início da manhã até à noite, estarão ali! São pessoas "batalhadoras". Né? É bom que as empresas recebam recursos públicos para que, com seu investimento, possam explorar o trabalho daquelas que nada têm além de sua própria carcaça, com as parcas "qualificações" pelas quais já foi capaz de pagar. Direcionar o dinheiro a essas pessoas sem a mediação do capital é estimular-lhes a preguiça. Não é assim...? É a velha história hipócrita de que não se deve dar o peixe, mas ensinar a pescar; só não se costuma contar que cada pescador que assim vai se formando (a custas de esforço próprio) só poderá pescar sob ordens de outros e para fins determinados por eles, utilizando os meios que disponibilizam e os rios e mares em que autorizam.
Quer dizer: os meios de produção são privados e utilizados com vistas à produção de lucro; e o trabalhador entra aí como um recurso a mais a ser explorado, com a diferença de ser o único capaz de agregar valor à matéria morta, ao conferir-lhe nova utilidade por meio de seu trabalho – bastando, para produzir o almejado lucro pelo empregador, que ele seja mantido por mais tempo trabalhando do que o suficiente para suprir suas próprias demandas. Qualquer elemento da riqueza social geral só é autorizado a suprir alguma demanda efetiva dos trabalhadores por intermédio desse esquema. Se algo vai direto a ele, isso o transforma em preguiçoso e indolente. Os proprietários podem receber diretamente as benesses do Estado, ofertadas com os recursos da derrama geral dos trabalhadores, principalmente; e isso não os torna preguiçosos e indolentes, pois não se pode tornar aquilo que já se é.
Afinal, não há problema em tirar escolas, hospitais e praças públicas das pessoas, ajudando às empresas e àqueles que vivem de seus lucros com os recursos que a elas se direcionariam. Pois, "se tudo correr bem" após esse resgate, poderão essas organizações um dia se recuperar (após haverem quitado, com o dinheiro público recém privatizado, suas dívidas com outras empresas privadas) e, com isso, vir a oferecer empregos ou serviços diversos e variados bens nas prateleiras. Em um caso, brindam-nos com a possibilidade de nos comprarem a força de trabalho (isto é, a capacidade de exteriorização de nossa humanidade); em outro, com a possibilidade de, com a renda adquirida por essa alienação de nós mesmos, comprarmos uma porção ínfima do produto de nosso próprio trabalho conjunto, pela qual nada nos pagaram.
"Contudo, o Brasil ainda é um país contraditório. Persistem graves disparidades regionais e de renda."
E a divisão da sociedade em classes?
Não é essa a maior contradição, não só no interior desse curral, mas de todo o mercado de produtos humanos mais ou menos controlado pelos gestores do capital global? O "capital global" não é senão a forma social alienada e unilateralmente orientada do trabalho de toda a gente que sofre mundo a fora em busca das condições materiais de sua própria existência, conseguindo manter-se vivo apenas como alguém que enriquece outros. E é a isto que se reforça no discurso da senhora presidenta, por meio da omissão.
Não está autorizada a tratar do assunto, presidenta? Então, por que o "tirano" da Venezuela o pode fazer?
Por que ele é um parceiro dos movimentos sociais de caráter emancipatório (apesar do construto midiático que alardeia o contrário), tanto dos que têm lugar naquela circunscrição humano-societária imediata como daqueles que se situam e atuam para além dela. É certo que não o faz de modo sequer próximo do perfeito, mas é com esses movimentos e com os teóricos que lhes são simpáticos sua maior interlocução, o que lhe tem propiciado avanços notáveis. É com essa turma que Chávez tem aprendido.
E a senhora Rousseff? O que é e com quem tem tomado suas lições?
É uma inquestionável oponente de tais movimentos. Não é com eles sua conversa. A senhora presidenta serve a interesses contrários à emancipação humana; sua idéia de educação se ancora em ideais de competitividade e de exercício de poder (que requenta o projeto sub-imperialista que faz do Brasil uma vergonha para a América Latina), sua proposta de gestão ambiental é matrizada pela idéia de lucro. Serve ao capital, sim, a senhora Rousseff, como o fez e faz assumidamente o senhor que a precedeu imediatamente no cargo. São os gestores do capital seus "interlocutores" – eufemismo, agora, para reais ditadores, aqueles mesmos que mantinham seus truculentos fantoches no assim chamado "mundo árabe".
Não?
"Setores pouco desenvolvidos coexistem com atividades econômicas caracterizadas por enorme sofisticação tecnológica. Mas os ganhos econômicos e sociais dos últimos anos estão permitindo uma renovada confiança no futuro."
A disparidade entre os "setores" é reflexo da gestão da produção social de riqueza pelos mecanismos alienados e alienantes do mercado, fundado nas atuais relações de propriedade, cuja condução racional e voluntária é efetivamente impossível.
É falacioso um governo garantir em discurso a seu povo algo que está muito mais sujeito ao afluxo de capitais privados disponíveis em âmbito transnacional (que, por sua vez, depende de rara convergência de apostas e uma intrincada rede pouco inteligente de estímulos e respostas) do que se deixa determinar por sua própria política – podendo essa última, no máximo (e a custo de sofrimento das pessoas que se diz proteger, em decorrência da "austeridade" exigida), criar no país as melhores condições possíveis para a lucratividade do capital. Lembra-se do Palocci, lá atrás, no primeiro governo do Lula, dizendo que viajava mundo a fora para "vender a marca Brasil"? Pois, é. É quanto a isso mesmo, segundo a senhora, que devemos manter renovada nossa confiança. Não?
Ou a senhora fala dos recentes levantes populares na Grécia, na Inglaterra, na França, na Tunísia, no Egito, no Marrocos, no Iêmen, em Bahrein, na Líbia etc.? Fala da resistência do povo palestino, cujos guerreiros mirins armados com pedras têm que enfrentar brutamontes cujos cérebros lavados não permitem mais que a obediência a ordens brutais, tendo como lastro um amontoado de fantasias de mau gosto? Fala de quê? O que quer que esperemos com ânimo sempre novo? Está chamando a nossa atenção para o fato de que Fukuyama (requentado norte-americano do pior hegelianismo) estava redondamente enganado; de que a história, afinal, não acabou?
Mas, isso já se vem demonstrando nas ruas desde fins do século passado, mesmo a partir do ventre da besta. Lembra-se de Seattle?
"Enorme janela de oportunidade se abre para o Brasil. Já não parece uma meta tão distante tornar-se um país economicamente rico e socialmente justo."
Que conceitos rombudos e anseios tacanhos são esses?!
A senhora está ancorada historicamente em algo que desumaniza: o arremedo de liberdade de que gozam as pessoas na sociedade do capital; que, além de tudo, favorece discriminadamente esses indivíduos, em função da posição ocupada nas absurdas relações de propriedade atuais. Perceba!
E o que entende por "justiça social"? Há alguma justiça que não seja social? E há hoje, de fato, algo a que se possa batizar de justiça? Julgo que não, apesar de reconhecer a existência de inúmeros e heróicos atos inquestionavelmente justos de alguns dos atuais viventes humanos. Atos que, em sua maioria, no entanto, consistem em reação rara à tão comum injustiça de fundo que ressoa em todos os âmbitos de nossa sociedade: a cisão em classes.
Em primeiro lugar, qualquer idéia do justo ou qualquer aparelho institucional etc. que se desenvolva para promovê-la e implementá-la é necessariamente referente a algum grupamento humano, sendo, portanto, social; de modo que a senhora Rousseff incorre em redundância ao aplicar a expressão "justiça social". Em segundo lugar, o capitalismo não pode ir além da quase-garantia de funcionamento dos mecanismos do mercado (com destaque para aquela porção em que se põe à venda a força de trabalho), promovendo, quando muito, a atenuação cosmética de seus impactos negativos sobre as fibras e tramas do tecido social – os indivíduos, as comunidades etc.
O que a se pode chamar de justiça sob a égide de um sistema social em que toda a produção de riqueza é direcionada para a satisfação do anseio de investidores privados em ver ampliado o seu quinhão? Há justiça em um sistema no qual a impossibilidade de contribuir para que isso aconteça condena milhões de indivíduos ao desemprego e várias centenas de milhares, conseqüentemente, à mendicância e à criminalidade, bem como alguns milhares ao suicídio – única opção em que não se faz recairem sobre outro as despesas pessoais do desocupado, abstraídas aquelas referentes a seu funeral. Em nenhum dos casos fica prejudicado o sistema do lucro; e isso parece ser o que importa.
"Mas existem ainda gigantescos desafios pela frente. E o principal, na sociedade moderna, é o desafio da educação de qualidade, da democratização do conhecimento e do desenvolvimento com respeito ao meio ambiente."
Frases que soam vazias quando não precedidas de uma consideração cuidadosa do que deve ser admitido como educação para nossos convivas na "sociedade moderna": mera adequação de mentes e corpos segundo as demandas do capital, incluído aí o entretenimento imbecilizante de nossa arte e de nossas telecomunicações; ou um processo de conscientização de si mesmos enquanto co-partícipes de um processo cooperativo infindável de criação de nós mesmos, por meio da criação conjunta de nosso próprio ambiente, material e imaterial, o que inclui o desenvolvimento das formas específicas de nos apropriarmos dele?
Façamos essa opção. Aí, sim, poderemos começar a falar das demais questões, como aquelas referentes à difusão dos produtos obtidos pela educação efetivamente crítica: pessoas que conhecem e sabem usar responsavelmente os recursos disponíveis para a produção das condições diversas de sua própria vida, bem como daquelas de que irão dispor as gerações futuras.
É importante a senhora presidenta e sua equipe discutirem sobre isso com a sociedade. Mas, essa expressão, "sociedade", não deve ser entendida, como usualmente o fazem os governos, como agrupando empresários e bandos afins, com quem medidas unilaterais são tomadas por meio do Estado para o benefício capital. Deve ser compreendida como expressando um conjunto de pessoas, reunidas ou não por meio de grupos menores multiplamente articulados, que se interessa diretamente por sua própria formação geral, com aquela de seus filhos e com a de seus pares, e lutam para que tal preocupação seja de fato repercutida por meio da criação de mecanismos institucionais que lhes confiram poder efetivo com relação aos "serviços" educacionais que se prestam em sua comunidade. Isso por que a usual prestação de serviços educacionais não passa de exploração particularmente interessada de carências e potenciais comunitários pelo capital, com a habitual conivência do Estado.
"Ao longo do século 21, todas as formas de distribuição do conhecimento serão ainda mais complexas e rápidas do que hoje."m
Não torce a senhora para que, de fato, as formas de apropriação de todo o atual aparato produtivo humano (do qual o conhecimento é um elemento) se integrem em uma unidade não submissa ao capital, não é? Acho que o que pensa é bem distinto disso.
De todo modo, a união efetiva do trabalho social global (do qual o conhecimento é um dos elementos fundamentais, não podendo ser dele separado) já existe. O que se faz necessário é que, em sua operação, as pessoas se tornem capazes de reconhecer e explorar esse fato, promovendo uma reconfiguração de todo o equipamento de auto-produção do humano em geral a partir de sua base. E é nisso que a educação efetivamente merecedora desse título tem papel destaque, o qual é condicionado por sua associação aos interesses da classe trabalhadora em emancipar-se – o que é interesse da humanidade em geral, por representar a supressão de suas divisões em classes e países (absurdos discriminatórios sobrepostos e mutuamente fortalecedores) e a readmissão de suas forças sociais outrora alienadas a uma porção de seus componentes para usufruto privado, há um punhado de milhares de anos.
Não será, pois, o discurso da senhora para seu povo (tampouco aquele possível outro e mais efetivamente válido, privativo dos investidores no "futuro do país" e proferido em sigilo ou em festas privadas de jornais outrora hostis), o que vai determinar esse ou aquele encaminhamento realmente legítimo no campo da produção e da difusão do conhecimento e da informação nesse século – centúria que avança com passos históricos inusitados, contrariando os prognósticos pós-modernos e os interesses dos dominantes, aos quais aqueles "pensadores" dão expressão "teórica".
Essa reordenação radical só pode ser gestada e operada pela população organizada, sem render-se a fronteiras geopolíticas. Constituída em sua maioria por pessoas lesadas pelo sistema atual ou ofendidas por seu absurdo, por razões diversas, essa coletividade está se reconhecendo cada vez mais como interessada em seu colapso. No país, sua porção constitutiva pode derivar da radicalização de seus próprios eleitores, Dona Rousseff. São eles que, nessa sua articulação com o todo, simultânea à intensificação de suas lutas referentes a questões internas e mais imediatas, podem assumir a porção brasileira de uma revolução global. Então, o mesmo agente por obra do qual a senhora ascendeu ao relativo poder de que goza, em boa parte em ato de defesa contra a aberração que se apresentava como opção (como foi o meu caso, nos termos explicitados em Minha posição nessas eleições), pode muito bem tornar-se aquele por cuja ação venha a ser dele removida, como passo ainda tímido de algo muito mais significativo que a mera deposição de um presidente representa.
Quando não se pode contar com ele como um aliado, como o podem de algum modo os Venezuelanos, a significação positiva de um presidente pode residir em seu potencial desencadeador de algum tipo de reação traumática da massa explorada. E a traição de uma esmagadoramente enorme parcela da população, sua eleitora, por um(a) governante que passa a defender praticamente os interesses restritos que em campanha atribuía aos promotores de seu rival, pode ser algo que sirva de estopim.
Mas, não se preocupe! É só elucubração. No Brasil não ocorrem coisas assim... africanas ou das arábias.
Ainda!
"Como a tecnologia irá modificar o espaço físico das escolas? Quais serão as ferramentas à disposição dos estudantes? Como será a relação professor-aluno? São questões sem respostas claras."
Não só isso. Trata-se de questões que são elas mesmas obscuras ou mal formuladas, com exceção da última, com relação à qual a senhora Rousseff peca em outro aspecto: no encaminhamento de uma resposta. Com a primeira (à parte o fetichismo, que atribui à tecnologia o papel de sujeito, como se fez acima com o conhecimento e com a educação), remete-se à tentativa de adivinhar quais serão os próximos avanços tecnológicos e como a escola deverá modificar-se para sua adaptação física a eles. Ao mesmo plano divinatório se é lançado com a segunda questão, se não a compreendemos como uma pergunta acerca de quem vai pagar a conta, dado que os recursos mesmos não se podem conhecer de antemão, isto é, antes de que venham a ser.
A terceira questão é a única verdadeira. Mas, sua dificuldade é apenas suposta. Pois a resposta ao enigma que propõe irá saltar aos olhos tão logo se responda àquela pergunta mais fundamental proposta mais acima, acerca da educação que se pretende promover: se adestradora ou emancipadora.
Também como dependentes dessa resposta fundamental, há que se formularem inúmeras outras questões importantes. Se a opção for por emancipação efetiva, deve-se perguntar: o que será ensinado ao alunado quanto ao caráter incontornavelmente alienado e alienante do processo produtivo para o qual estarão sendo adestrados? Assim como: de onde virão os recursos para essa qualificação de trabalhadores para o próprio usufruto exclusivo do capital, mas que os capacita também para o combate do atual estado de coisas, em que tal usufruto vige como regra?
O que resta de vida para o trabalhador, para além de sua qualificação e operação para o capital, de sua moldagem e utilização para a produção de lucro? Resta-lhe o momento de ser também consumidor – que, de fato, não passa de uma dimensão de si mesmo enquanto produtor de riqueza alheia, pois consumindo ele se mantém em condições de operação, embora para enriquecer outro. Nessa esfera do consumo, ele compensa (com prazeres rasteiros, proporcionados por produtos e serviços imbecilizantes, promotores do egoísmo) a vida de que não desfruta com os outros, pelo menos sem se sentir por eles ameaçado e sem ameaçá-los de algum modo.
A presidenta nada diz quanto a isso?
"Tenho certeza, no entanto, de que a figura-chave será a do educador, o formador do cidadão da era do conhecimento."
Embora possa e deva ocupar uma posição de "figura-chave", o educador tem hoje pouca opção quanto à porta que deve contribuir para que se abra. Predomina sua utilização para abrir os portais da exploração mais liberal possível da força de trabalho nacional e internacional (dadas as possibilidades atuais de transnacionalização dos negócios) por uma elite desprezível que, por meio de seus "servidores públicos para fins privados" (aqueles mesmos que se dão aumentos de sessenta e tantos por cento, enquanto pouco fazem em prol do aumento para quem de fato produz), faz desse trabalho social um instrumento de seu favorecimento privado, exclusivo. E não predomina tal orientação da prática pedagógica por opção esclarecida dos professores pelo sistema do capital; predomina por seu medo ou por sua ignorância.
"Priorizar a educação implica consolidar valores universais de democracia, de liberdade e de tolerância, garantindo oportunidade para todos."
Palavras ocas soltas ao vento, sem qualquer estofo que lhes confira algum peso! O que se entende aí por democracia? E mesmo sobre a universalidade que é possível aos valores? De que idéia de liberdade se trata? Trata-se daquela em que o outro aparece a cada um como um maldito limite, ao invés de aparecer-lhe como condição de possibilidade? Trata-se aí da tolerância da particularidade que encobre a raiz e a natureza de determinados conflitos, servindo de anteparo a violações execráveis como aquelas perpetradas pelo Estado de Israel contra o povo palestino ou da Arábia Saudita contra seu próprio povo, por exemplo? Pregar a tolerância é pregar a aceitação sincera da saudável pluralidade de referências humanas possíveis e passíveis de assimilação livre e responsável pelos indivíduos; ou é ser conivente com a brutalidade de instituições e práticas caducas, em obediência ao abstrato direito de autodeterminação dos povos, cujo exercício concreto sempre se dá por obra das elites? Ser tolerante é entregar Battisti, por exemplo; ou mantê-lo a salvo aqui? Ser tolerante é não vascular os arquivos da ditadura brasileira, pra não incomodar o sossego dos generais envolvidos em crimes contra a humanidade, bem como aquele de seus comparsas, cúmplices ou mandantes?!
"Trata-se de uma construção social, de um pacto pelo futuro, em que o conhecimento é e será o fator decisivo."
Como está, trata-se de lamentável e equivocado chavão, fundado na idéia tola de que vivemos numa sociedade do conhecimento e da informação, em que o trabalho (contexto e propósito da quase totalidade de nosso conhecimento sistemático do mundo e de nós mesmos e de quase toda informação relevante) deixou de existir ou de ser importante.
Substitua "conhecimento" por "propriedade privada dos meios de produção" e terá uma frase plausível, ou seja, condizente com os tempos correntes e conforme os interesses para cuja satisfação a senhora presidenta é um instrumento político, assim como todo o aparato estatal, indo para muito além do governo e de toda conjuntura política atual.
Se preferir substituir a frase atual por uma que impulsione de fato para adiante o espírito de seus leitores, motivando-os a reflexões, decisões e ações efetivamente humanizantes de si e dos demais, sugiro trocar "conhecimento" por "trabalho", entendendo essa expressão como referente à classe trabalhadora como um todo, em escala global, no exercício de seu poder conjunto. Deste modo, sim, teremos um aceno para algo que mereça de fato o qualificativo de justo.
Se a mudança sugerida fosse feita, veja o perigo a que se exporia a senhora D. Presidenta diante daqueles que a governam, isto é, os agentes do capital:
"Trata-se de uma construção social, de um pacto pelo futuro, em que o trabalho é e será o fator decisivo."
Mas, e então, não seria mesmo o conhecimento um elemento do trabalho? Se isso é fato, a quem pertence efetivamente o conhecimento, com todo o poder que faculta? E por quem são de fato produzidos e operados os equipamentos produtivos mundo a fora com base nesse conhecimento e com auxílio dele operado, apesar de sua propriedade ser registrada em nome de terceiros, titulares também das contas em que atracam os lucros provenientes de sua exploração?
Então, os trabalhadores têm a faca e o queijo na mão, como se ouve aqui no interior de Minas, sua terra. Não é, Dona presidenta?
Não precisa dizer. Sei o que a faz Temer. E não quero indispô-la quanto a tal ameaça vinda de cima.
Quero indispô-la, sim, contra aqueles que a elegeram, alertando-os de que seu governo se constitui em ameaça a seus anseios. Quero ajudar a promover a desavença entre eles e o atual governo, que de fato já se opõe a seus interesses, tanto em atos como em discurso – desde seus primeiros passos (como nos mostra Lucas Morais em seu Governo Dilma: perspectivas e colaboração de classes , por exemplo, em reforço a um coro de múltiplas vozes entoado pelos jornalistas e analistas efetivamente de esquerda).
"Existe uma relação direta entre a capacidade de uma sociedade processar informações complexas e sua capacidade de produzir inovação e gerar riqueza, qualificando sua relação com as demais nações."
Sim! E a senhora presidenta já disse isso logo acima. O trabalho qualificado depende, sim, de conhecimento qualificado; assim com outro não pode ser o ambiente do saber sofisticado que não a produção sofisticada. E a exploração dos trabalhadores, brasileiros ou de qualquer outra nacionalidade, depende de que o trabalho com cujos produtos pretenda competir cada país seja compatível com as demandas do mercado mundial, para que nessa ciranda se possam obter polpudos lucros, para os proprietários e seus asseclas nos Estados. Daí a necessidade de adestramento, sob o injusto apelido de "educação", propalada como urgente pelos apologistas do capital.
Há, pois, finalmente, uma grande verdade no discurso aqui tratado. Mas está implícita. Trata-se da afirmação proibida de que o conhecimento é parte do trabalho e que a chamada revolução do conhecimento não é mais que um passo importante no avanço tecnológico geral do trabalho contemporâneo – que gera mais um "setor" em que esse mesmo trabalho se faz explorar pelo capital; mas, também, uma nova instância da resistência contra o mesmo capital: o assim chamado "trabalho imaterial", expressão confusa que confunde um ramo da divisão do trabalho com uma esfera à parte, que sustenta a pretensão de ser a única em que o intelecto é usado. Ao "trabalho material" sobra o status de atividade puramente animal, como aristocraticamente pretendia Hannah Arendt.
Cuidado, D. Presidenta! Não deixe mais explícito que todo o poder efetivo é dos trabalhadores! Pois isso abre a porta para que se diga que os capitalistas não passam, enquanto classe, de usurpadores do poder social global constituído ao longo dos quase 200.000 anos de nossa espécie. E para que se diga que é algo benéfico para todos a sua supressão – isto é, sua reincorporação ao processo produtivo, desta vez como produtores, mas não alienados como aqueles que outrora exploraram.
Não diga isso, portanto! Lembre-se de que a perda de seu cargo é algo a Temer.
"No presente e no futuro, a geração de riqueza não poderá ser pautada pela visão de curto prazo e pelo consumo desenfreado dos recursos naturais."
Será que estamos vendo alusão à substituição do atual sistema do lucro privado irresponsável por algo que se paute por necessidades que merecem de fato o qualificativo de humanas? Estaremos diante de uma manifestação revolucionária?
Não! Um presidente do Brasil ainda não dá conta disso. Só pode repetir a falácia de que é possível ser racional sob o regime do capital global. Nada mais; a menos que os movimentos se articulem em torno de uma candidatura única com propostas efetivamente radicais, que contemplem de fato os interesse universais que se representam pela luta pela emancipação do trabalho do jugo do capital, mundo a fora; candidatura que deve ser elemento, e não propósito último de uma interação integradora para os próximos anos, em vários planos do ativismo hoje possível – o que apresentaria anseios e procedimentos muito distintos daqueles por meio dos quais foi forjado o famoso Lula, por exemplo.
"O uso inteligente da água e das terras agriculturáveis, o respeito ao meio ambiente e o investimento em fontes de energia renováveis devem ser condições intrínsecas do nosso crescimento econômico."
A palavra "investimento" revela a estreiteza dos interesses que estão de fato impulsionando a senhora Dilma, bem como da "inteligência" que a orienta. E o mesmo ocorre por meio da expressão "crescimento econômico", cujos conectores só se encontram no discurso conservador, travestido ou não de suas roupagens reformistas. Em um pensamento que preza de fato a humanidade, "o social" e "o econômico" não sofrem essa separação estratégica e restritamente conveniente. Não há economia que não social, nem sociedade que não tenha como lócus de suas determinações mais fundamentais o âmbito que hoje se batizou com a expressão mutiladora "o econômico".
"O desenvolvimento sustentável será um diferencial na relação do Brasil com o mundo."
Trata-se, pois, de criar um diferencial competitivo para o sucesso da "marca Brasil" na peleja internacional. E isso é bom? Basta para a senhora? É esse o seu projeto para essa porção continental da humanidade que é o país que a elegeu como presidente, cuja influência mundial em todos os âmbitos é digna de nota?
É pouco, Dona!
O que se mantém com tal "sustentabilidade"? Uma sociedade competitiva, em que não só os indivíduos de uma nação têm que lutar encarniçadamente entre si, mas as próprias nações devem fazê-lo inevitavelmente e invariavelmente, para que os investimentos privados sejam religiosamente "premiados" e que seus operadores sejam devidamente remunerados (o que "justifica" não só os altos rendimentos dos executivos privados, como também aqueles polpudos "salários" dos legislativos, executivos e judiciários "públicos").
Sustenta-se, pois, uma sociabilidade em que toda vantagem obtida deve ser mantida como vantagem exclusiva e não convertida em avanço comum da humanidade? É isso?! Certamente que sim! Está no título do texto da senhora Rousseff, assim como ali está a tolice acerco de um suposto saber desencarnado do trabalho e a vocação imperialista requentada.
"Noventa anos atrás, erramos como governantes e falhamos como nação."
Hoje fazemos o mesmo! Só não pensa assim quem se contenta com pouco, como a senhora, que agora falha como pensadora...também.
"Estamos fazendo as escolhas certas: o Brasil combina a redução efetiva das desigualdades sociais com sua inserção como uma potência ambiental, econômica e cultural."
Quanto ao suposto acerto das escolhas, fale por si mesma e por seus pares!
Não vejo engrossando seu coro senão aqueles poucos que se vêem efetivamente atendidos em suas demandas, a nossa vergonhosa elite industrial-comercial-financeira, com seus respectivos servidores (de dentro ou de fora do Estado) e demais comensais.
Quanto ao restante do trecho, peço-lhe que esclareça, por favor, o significado do termo "Brasil", que aí aparece como sujeito de grandes façanhas. Peço isso pois não vejo Sr. Brasil algum fazendo coisa que preste quanto aos temas. E me explique também com quem é que ele "combina" essa suposta redução, para que eu confirme aqui minha suspeita de que é com o bando de lacaios do capital global.
Que façanha do Sr. Brasil a senhora quer ressaltar? O comando da "missão de paz" encarregada de sufocar a revolta haitiana em reação ao golpe de estado perpetrado com apoio dos EUA e seus comparsas da ONU contra o presidente Aristide, devido à sua rebeldia com relação à natureza humana de Adam Smith, isto é, com relação à inexorabilidade dos imperativos do mercado, diante dos sacerdotes do FMI etc.? Fala desses miseráveis jovens latino-americanos (e não só brasileiros) que sob as ordens mediadas pelo Exército Brasileiro empreendem incursões assassinas em favelas já há muito expurgadas de resistência armada organizada, "justificando-se" pela mentirosa afirmação de sua existência ameaçadora? Fala desses jovens autorizados e estimulados a matar a tiros de fuzil alguém que rouba um saco de farinha após perder não só sua casa, como toda a vizinhança em um violento terremoto?
Nem se assumirmos a desumanidade dos critérios atuais isso fica claramente "justificado", dado que uma bala de uma arma dessas custa certamente mais do que aquilo que com seu disparo se impede de roubar.
Mas, o mistério se revela a custo de um pequeno esforço reflexivo: aqueles cuja morte não seria econômica, por custar mais que aquilo que se pretende resguardar com ela, têm sua execução convertida em bom negócio quando se toma consciência de que aqueles indivíduos não podem mais articular-se entre si e com outros para organizar demandas mais ameaçadoras para a ordem vigente que o roubo desesperado de um saco de arroz ou farinha. Matar haitianos que pilham é um grande negócio, pois evita que eles "roubem" para si o Haiti, inspirados em seu próprio passado e inspirando ações similares em todo o globo, após haverem comido o alimento furtado e assim se tornado fortes. Né?
É esse o heroísmo de nossos pobres soldadinhos: matar, antes de se tornarem ameaças reais ao status quo, aqueles que lutam por liberdade – herdeiros, estes sim, de gerações verdadeiramente heróicas de lutadores, como nos conta a história tão pouco comentada do país. É disto que fala? Não... Disso não se fala a partir da presidência do Brasil.
Quero saber também o que foi que se combinou nesse suposto acordo referido no trecho citado, pois parece que a redução almejada não chega próxima da eliminação das absurdas discrepâncias de renda aqui vigentes, tampouco da proscrição da miséria, bem como sequer aponta para a supressão da cisão da sociedade em classes que aqui viceja há tempos, apesar da alternância de suas formas. Claro!
Ainda a respeito desse trecho magistral, ressalto as alturas (ou a baixeza) dos anseios da senhora governante de cujo discurso aqui se trata: tornar seu país uma potência capitalista, inclusive por dispor de um armazém lotado de recursos, minerais e biológicos, bem como humanos. Tais "recursos humanos" se devem entender como um grupo razoavelmente numeroso de indivíduos tecnológica e emocionalmente programados para levar adiante um projeto que não é seu em troca de um arremedo de vida livre – quase como um soldadinho de chumbo israelense ou norte-americano –, se tiverem a sorte de se fazerem cair nas graças de algum caridoso "gerador de empregos", que se valha de todos os recursos legais (e, muitas vezes, ilegais) para dele extrair a alma.
"Um país capaz de escolher seu rumo e de construir seu futuro com o esforço e o talento de todos os seus cidadãos."
Quanto a essa passagem, eu e Dona presidenta gozamos de alguma convergência. A distinção está em que não acredito que todos os cidadãos participariam daquilo que eu considero ser um futuro digno de esforço e empenho de talento, para o Brasil e para a humanidade.
Alguns, como certamente a senhora Rousseff, lutarão fervorosamente pelo contrário, caso esse cenário se anuncie, ainda que ao longe.
E isso não deve ser motivo apenas de lamento; mas também de protesto e de ação comunitária edificante, que tencione para além dos propósitos mesquinhos que inspiram seu governo nominalmente de esquerda.
E isso é o que tenho a dizer-lhe, "excelência"! O restante talvez diga nas ruas, em meio a um burburinho no interior do qual não conseguirá distinguir minha voz, inclusive pelo fato de que a senhora irá dele buscar manter distância, se minha avaliação estiver correta.
Mas, somente na circunstância de que aqui se façam repercutir as tendências libertárias atualmente desencadeadas ao redor do mundo. O que é muito pouco provável, pois, como a senhora não só sabe como exemplifica, a militância em nosso país vai hoje pouco além de uma piada de mau gosto. Piada que só não soa mais desagradável que a tentativa de criminalização das poucas (e felizmente significativas) exceções a essa regra – que espero um dia ver se tornarem hegemônicas.
Como esperança mais imediata, nutro o anseio de que a senhora não tenha mudado tanto, desde seus tempos de juventude, a ponto de agora defender a repressão policial da dissidência, da qual foi vítima naquela época. Prezo imensamente a liberdade de expressar-me e de tentar influenciar com a veiculação do que penso e sinto; valorizo-a ainda mais o prazer que experimentei ao redigir essas linhas.