Todos os jornais estamparam em primeira página, recentemente, o corte do orçamento da União, uma vultosa quantia em torno de R$ 50 bilhões, com a conseqüente suspensão de novos concursos e nomeações nos quadros do funcionalismo (1). Uma medida desse jaez nada mais é que sintoma, cristalino, da submissão à cartilha neoliberal, pela qual se preconiza um "Estado mínimo". Em outras palavras, "enxuga-se" a máquina pública, de modo que, enquanto o Estado sai de cena, assoma a iniciativa privada. Outro exemplo temos na intenção declarada do governo federal, e em vias de ser implementada, de transferência dos aeroportos ao empresariado (2).
O modus operandi neoliberal se arvorou mundialmente em pensamento hegemônico há pelo menos três décadas, e a queda da URSS, agravando o cenário, serviu para que fatalmente proclamassem o "fim da História" e a vitória do capitalismo selvagem (3). Por onde quer que se olhe, se verá sua aplicação, nas diversas esferas de política econômica. Da privatização de serviços públicos (que alguns juristas, talvez hipocritamente, preferem conceituar como "desestatização", a indicar que tal serviço não se tornou privado e sim que apenas saiu do manejo estatal para o particular; como se o fato evidente da passagem de um serviço público para a ótica da economia de mercado fosse questão de mero jogo terminológico) ao rebaixamento do servidor público (em prol de uma terceirização precarizada), tudo parece seguir à risca o ideário neoliberal. E, tal como dito, os anos de lulismo (e agora, "dilmismo", mais do mesmo) não só não arrefeceram essa mentalidade como, em certa medida, a fomentaram.
Essa hegemonia neoliberal está incrustada nas "mentes pensantes" brasileiras. Pegue-se qualquer manual de Direito Administrativo: em todos, se encontram loas ao esvaziamento do Estado. A máquina pública é tratada como um mal, pesada, arcaica, a entravar o "progresso". A solução, que é mesmo simplória, é uma só: reduzir o Estado. E não, como seria o correto, melhorá-lo.
Não ignoro os perigos da burocracia- aqui em sentido lato, isto é, a atividade administrativa do Estado, e não no sentido estrito, o de "casta" governante, fenômeno típico dos Estados Operários degenerados (4). Já tive a oportunidade de, ao falar dos princípios da Administração Pública, sustentar a importância do Princípio da Eficiência ser melhor observado, em face dos entraves que o Princípio da Legalidade (com o rigor da submissão aos formalismos da lei) pudesse, num caso concreto, trazer (5). Mas a solução dada é muito simples: o equilíbrio entre os dois princípios, de modo que a Administração deve ser eficiente sem deixar de ser legal, e vice-versa. Isto é, não se pode, diante de uma suposta ineficiência da máquina pública, singelamente "jogá-la fora"; e sim, devem ser buscados mecanismos para seu aperfeiçoamento, o que não é o caso, naturalmente, de simplesmente transferi-la para a iniciativa privada.
A ótica do empresário, aliás, é essencialmente diversa da ótica do administrador público. Enquanto este está jungido ao interesse coletivo, aquele tem como escopo o lucro, a vantagem, o ganho- que é o motor do capitalismo. É de uma crueldade ímpar colocar serviços essenciais ao indivíduo, como educação e saúde, nas mãos da iniciativa privada. É tornar a educação e a saúde em mercadorias. E isso se aplica aos diversos setores da vida em coletividade, como o transporte, a segurança, água e eletricidade, dentre outros, que cada vez mais têm servido para enriquecer as grandes empresas em detrimento da satisfação das necessidades do cidadão.
Importante deixar claro que os marxistas temos plena noção do Estado enquanto instrumento de classe (6). A nossa defesa da máquina pública não é acrítica, portanto. Mas é imprescindível verificar que o Estado, do alto de suas contradições, pode ser instrumento de disputa, em prol das garantias sociais. É por isso que o ex-ministro do STF Eros Grau afirma que "o Estado, apesar dos pesares, é ainda, entre nós, o único defensor do interesse público", de forma que "a destruição e mesmo o mero enfraquecimento do Estado conduzem, inevitavelmente, à ausência de quem possa prover adequadamente o interesse público e, no quanto isso possa se verificar, o próprio interesse social" (7).
É dever de todas as forças progressistas, portanto, combater o desmanche da máquina pública. Deve-se empreender uma luta sem cartel contra o pensamento neoliberal, mesmo que apareça "suavizado", mesmo que consiga iludir a tantos- como o neoliberalismo lulo-dilmista tem iludido.
Notas
(1) Jornal do Brasil: "Governo anuncia corte de R$ 50 bilhões no Orçamento"- http://bit.ly/h38NAs
(2) Correio do Brasil: "Concessões e PPPs podem melhorar aeroportos a partir de 2011", texto de José Dirceu, quadro do PT- http://bit.ly/f7pUE5
(3) Mozart Victor Russomano, "Direito do trabalho e globalização econômica".
(4) Leon Trotsky, "A revolução traída".
(5) "Princípio da Eficiência e o dinamismo do Direito", na Revista Síntese de Direito Administrativo nº 59, de novembro de 2010.
(6) Vladimir Lênin, "O Estado e a revolução".
(7) Eros Roberto Grau, "O direito posto e o direito pressuposto".