Isto porque, uma vez que o ingresso no processo produtivo é condição necessária para a sobrevivência mesma dos indivíduos, se a escola se recusar a propiciar-lhes a possibilidade desta inserção, eles não terão alternativa ao abandono deste estabelecimento, que se mostra incapaz de satisfazer suas demandas mais imediatas – e, conseqüentemente, quaisquer outras.
Apesar disto, não se deve acreditar que o papel da escola deva necessariamente reduzir-se à preparação de novos agentes a serem incorporados, sem mais, ao sistema produtivo. Tampouco se deve acreditar que, paralelamente a esta formação, a escola tenha apenas como atribuição fornecer aos indivíduos os elementos que os capacitem a desenvolver uma clara consciência de seus direitos de cidadão. Tal consciência, que obviamente não chega ao entendimento do caráter extremamente limitado desses direitos, leva aqueles indivíduos a pleitear como seu bem supremo o reconhecimento de si mesmos pelos outros enquanto co-partícipes da comunidade abstrata, formal dos homens (a igualdade de direitos perante o Estado) – cujo único benefício concreto decorrente é a quase garantia de que não poderá ser logrado e prejudicado ao se inserir, conforme sua situação, como livre comprador ou vendedor no famigerado mercado de força de trabalho.
Não se deve acreditar tampouco que, complementando tais tarefas com a propagação da idéia de que tal inserção não deveria ser, embora seja atualmente, prejudicada por algumas particularidades étnicas, culturais, de "gênero" etc., a escola consiga incutir nos alunos os valores necessários para um convívio harmonioso e saudável, apesar daquilo que o mundo é e daquilo com o que ele faz conviver todos os dias cada indivíduo, em luta com os demais pela apropriação contraditoriamente privada das condições sócio-históricas de seu desenvolvimento.
Limitando-se a fornecer (ou, melhor, vender) aos indivíduos os instrumentos para sua inserção regular no bojo das vigentes relações alienadas e alienantes de produção da vida humana (típicas de uma forma de sociabilidade em que o pressuposto ineliminável da cooperação entre os indivíduos é sobrepujado pela competição encarniçada a que os mesmos são lançados entre si, sob pena de degradação multidimensional e mesmo de inanição e fenecimento aos derrotados), a escola não faria mais que perpetuar a imundície atual, ratificando e justificando seus pressupostos. Quando muito, concederia um voto de piedade àqueles que neste contexto se revelam perdedores, reconhecendo-os como cidadãos. E isso não é nada além de dizer-lhes que, se fossem aproveitáveis (ou se um dia vierem a assim se demonstrar), poderiam (ou poderão) ser comprados por qualquer um que pudesse (ou possa) pagar-lhes o mínimo para manter-lhes vivos e em condições razoáveis de funcionamento, enquanto ampliadores da riqueza pessoal do mesmo comprador.
O valor da existência saudável e rica de cada indivíduo por si mesma não tem a menor relevância sob a ordem do sistema social ora em vigor. E a gestão do processo histórico segundo essa ordem, travestida de lei natural, é tida como condução racional, científica do negócio humano; ao passo que a educação que ousa negar-lhe obediência cega e irrestrita é combatida e desacreditada em todas as frentes, por sua "ingenuidade" e pelo "desperdício" que promove ao se deixar guiar pelas "emoções" ao invés de se conduzir pela "razão"!
O papel que aqui se defende poder ser desempenhado por uma educação revolucionária é o de promover nos estudantes, apesar e a partir das limitações objetivas a que tem que se submeter na ordem vigente, um interesse intenso pela problemática da apropriação das condições sócio-históricas, materiais e imateriais, da vida humana, bem como das limitações e das potencialidades de sua forma atual, no que diz respeito à vida que pode proporcionar aos indivíduos mesmos que a promovem.
Por envolver os humanos em relações multidimensionais, que incluem interação produtiva concreta, bem como projetos acadêmicos conjuntos de pesquisa, ensino e extensão, além de intercâmbio intenso e diversificado em outros âmbitos da interação cultural global (que, de fato, hoje já existem em larga escala, ainda que predominantemente sob forma alienada típica e lógica brutal correspondente), os alunos devem ser conscientizados desse processo como sendo aquele de gestão cooperativa do patrimônio cultural global da humanidade, de que depende toda a vida humana atual e futura – assim como depende, de certo modo, toda a vida no planeta –, ao mesmo tempo em que é aquele por meio do qual os próprios indivíduos se produzem. Daí sua conscientização da necessidade de preservação e gestão responsável daquele acervo (com exceção daqueles de seus elementos cuja função é incrementar a segregação, obviamente), por meio de mecanismos sociais que confiram poder efetivo ao conjunto dos indivíduos sobre esse legado que, ainda que de forma contraditória e limitada, muitas vezes cruel, herdamos todos nós das gerações anteriores. Daí, portanto, seu entendimento da necessidade da revolução social contra a aviltante forma atual, em que os indivíduos associados se submetem àquilo que eles próprios produzem.
Isto consiste, no âmbito restrito da educação, em uma qualificação de novos integrantes para o processo produtivo atual, como ocorre em qualquer escola, mas que, neste caso, vem acompanhada de um estímulo constante à tomada de consciência crítica de si por esses indivíduos, enquanto co-partícipes, não de uma comunidade abstrata e circunscrita que paira acima de suas cabeças concretas e lhes atira migalhas de vida: o Estado; mas de uma comunidade concreta e irrestrita, cujo funcionamento, perfectibilização ou revolucionamento só dependem, ainda que a longuíssimo prazo, de suas próprias ações concretas conjuntamente articuladas, para além de quaisquer fronteiras ou jurisdições de todo talhe: a Humanidade.
Portanto, há o que se possa fazer no campo específico da prática pedagógica, apesar de seus limites intrínsecos e daqueles que lhe são impostos, por acréscimo, a partir de outras esferas (principalmente daquelas mais imediatamente ligadas à reprodução material das condições de vida, que a ela encomendam "recursos humanos", indivíduos formatados como força de trabalho qualificada e obediente). Pode-se estimular e conduzir os estudantes, desde o início de sua formação, ao exame mais ou menos profundo das especificidades de cada área acompanhado de um exame progressivamente profundo de toda a dinâmica social, considerada em seus mais variados âmbitos e articulações.
Isto iria não só capacitá-los a distinguir claramente a função social e as possibilidades de desenvolvimento das diversas atividades específicas e a definir com o que podem eles mesmos contribuir mais produtivamente em termos tecnológicos, dadas as suas aptidões e preferências – escolhendo de modo efetivamente racional e socialmente útil uma profissão –; mas, além disso, iria capacitá-los a compreender com precisão as cadeias sócio-históricas com que estão atualmente atadas essas atividades e sua inserção nas mesmas, os limites da forma mercantil/capitalista de organização e gestão do processo produtivo social. E isto iria torná-los aptos a decidir acerca de quais tendências históricas devem ser objeto de contribuição crítica e autocrítica e de quais devem ser alvo de ataque certeiro e constante, igualmente consciente e responsável.
Sob este estímulo não se impulsiona ao adestramento para o mercado, mas a uma inserção efetivamente responsável no mesmo, alicerçada pela compreensão de sua atual necessidade, bem como de sua atemporal (e atualmente demonstrada) inadequação como mecanismo de alocação das capacidades e dos recursos produtivos humanos, do caráter alienado da articulação que ele promove entre os vários e multidimensionalmente articulados campos do saber e do agir humanos. Impulsiona-se, portanto, uma postura de combate, e não de reforço, como se estimula em todas as dimensões formativas da vida humana contemporânea.
E é atuando assim que a prática pedagógica pode, sem aventurar-se romanticamente para além de seus limites, contribuir consideravelmente para tornar os estudantes mais receptivos à interlocução e à interação críticas radicais, as quais são extremamente necessárias à urgente integralização auto-gestionária do potencial produtivo e auto-produtivo do ser social, por haver sido ele constituído pelos homens e por eles apreendido de forma usualmente e usualmente estranhada.
Embora não possa ser resolutiva (como, por princípio, não o pode qualquer outra de seu tipo), uma prática pedagógica assim orientada, e levada a cabo por meio das técnicas e estratégias que se mostrarem mais indicadas em cada circunstância, pode e deve surtir efeitos mais positivos que a maioria das estratégias hoje postas em questão, atuantes ou não, cujas pretensões revolucionárias, quando é o caso de existirem, vêem-se negadas por seus próprios pressupostos teóricos limitados.
Contrariamente a posições teórico-práticas que pretendam sanar as relações efetivas a partir de supostas reformas espirituais e afetivas autônomas; bem como em oposição àquelas segundo as quais as relações efetivas são naturais e inamovíveis, de modo que as reformas espirituais e afetivas se vêem impossibilitadas, por serem as idéias e os valores meros reflexos necessários daquelas relações fixas (ou, no mínimo, se vêem restritas a um campo bem estreito, supostamente alheio à produção material); a prática que aqui se advoga consiste no reconhecimento de que tanto as relações efetivas como as próprias relações espirituais e afetivas só podem ser alteradas radicalmente a partir de ações concretas incidentes sobre o modo de produção vigente.
Trata-se de ações orientadas e estimuladas por meio de idéias, sim, mas de idéias criticamente estabelecidas em uma análise rigorosa, responsável e constante tanto das condições objetivas e subjetivas da existência humana global atual (compreendendo-a em sua historicidade e em sua história, o que envolve o reconhecimento de sua imensa pluralidade), como das relações entre tais tipos de condições – tipos que, articulados de um modo ou de outro em cada sistema social específico, servem de propulsão à reprodução ou ao revolucionamento (às vezes aos dois ao mesmo tempo) de tal existência.
Reconhecendo, portanto, que em todos os âmbitos da atuação humana a consciência, a volição e a prévia ideação, bem como os anseios e os valores, têm participação necessária, ainda que não de forma indeterminada, arbitrária e preponderante, o que se deve fazer, como foi dito, não é abandonar como sendo infrutífera a atuação revolucionária no campo da formação escolar, mas compreender quais são precisamente seus limites e potencialidades.
Além disto, deve-se buscar articular toda a ação neste âmbito com aquela igualmente bem orientada nas demais esferas de atuação humana com algum potencial formativo, se é que se quer ver ruírem os entraves que impedem a humanidade de ir ainda mais longe do que foi até o presente momento de seu processo de auto-formação.