Portanto, para empreender uma prática pedagógica efetivamente revolucionária, como tantos pretendem fazer, não bastam boas intenções. Os agentes envolvidos no processo educacional devem buscar uma noção cada vez mais precisa das possibilidades e das limitações concretas peculiares à sua atividade, o que lhes demanda tornarem-se cada vez mais cientes não só de suas determinações mais gerais, abstratas, mas também do contexto social mais concreto e mais amplo no interior do qual ela se exerce e do papel que nele desempenha e pode desempenhar.
Submetendo, pois, a mera volição mais ou menos espontânea a uma reflexão racional rigorosa, responsável, continuada, conjunta e o máximo possível livre dos preconceitos da moda, os agentes mencionados acima, além de controlar o desgaste infrutífero de suas energias, regulando sua utilização conforme a oportunidade das circunstâncias, irão tornar-se capazes de divisar novos e mais pertinentes, e mesmo urgentes, objetivos para a sua prática, deixando ao mesmo tempo de perseguir outros propósitos que, embora às vezes nobres, não pertençam à sua alçada.
Defendo, pois, ser necessariamente infrutífera e frustrante a tentativa de se suprimirem imediatamente, por meio de uma reforma das consciências a ser levada a cabo através da educação, determinações sociais que se instituem em outro âmbito muito mais fundamental da atuação humana, a saber, aquele estabelecido pelas relações materiais de produção e reprodução da vida, do qual aquelas consciências recebem seus estímulos etc. E assim é por que, apesar de sofrer interferências provenientes da esfera educacional, este âmbito basal tende muito mais a influenciá-la do que ser por ela influenciado, chegando quase ao ponto de reduzir a função social da prática pedagógica à mera perpetuação de sua própria lógica.
De um modo ou de outro, a esfera em que se opera a educação deve ser compreendida como uma das engrenagens auxiliares daquele âmbito basilar da produção material da vida humana, e não como uma esfera que lhe seja externa e supostamente detentora de algum poder irrestrito sobre seu funcionamento e por isso responsável pelo direcionamento que se dá à produção mesma. Dadas as relações de produção e apropriação estabelecidas naquele plano basal, sua legalidade própria se irradia para as demais dimensões da vida social, inclusive e de modo às vezes mais sistemático para aquela da educação formal – sob impulso de imperativos de caráter econômico-político. E isto deve nos alertar acerca da limitada liberdade de que gozam os agentes pedagógicos em sentido estrito.
Não pretendo afirmar que seja estéril toda ação que não tenha vínculo imediato com a produção material e que o educador, em sentido amplo ou restrito, não tenha como interferir de forma contundente no processo sócio-histórico. Sustentar isso seria atribuir ao funcionamento da esfera imediatamente produtiva uma mecanicidade que ela não tem (aqui, no tocante à formação mesma dos agentes produtores e reprodutores do sistema), por ser ela de fato conduzida por meio de ações conjuntas refletidas e deliberadas, ainda que envolvendo graus bem limitados de autoconsciência crítica por parte de seus operadores na grande maioria dos casos.
Seria ignorar que é a qualificação operacional, emocional e moral dos atores deste processo o que exige, para a reprodução das relações de propriedade, a disseminação de sua própria lógica por todo o tecido social, através de todos os meios disponíveis – inclusive a domesticação de mecanismos potencialmente hostis a tal lógica e que, em alguns casos, tenham a princípio sido desenvolvidos com a finalidade de contrariá-la, ainda que confusamente, como exemplifica ricamente nossa cultura dita alternativa.
Seria desconsiderar que é justamente para desenvolver seletivamente as consciências, de modo a impedir-lhes a propensão à revolução que as agruras da vida contemporânea invariavelmente alimentam, fazendo-as crer que as demandas típicas da ordem vigente no atual processo de produção e distribuição de riquezas são universalmente válidas para toda vida humana, valência que se vê compartilhada pela forma como são satisfeitas aquelas demandas.
E algo que torna tudo isso ainda mais cruel é o fato de ser o trabalhador quem deve arcar com sua própria adequação às demandas do capital, sendo obrigado, portanto, a pagar àquele que irá explorá-lo para tornar-se explorável por ele. As demais qualificações que o mundo contemporâneo torna potenciais a qualquer indivíduo atual vão se tornando possibilidades efetivas para cada um deles apenas à estreita medida que adquire dinheiro para comprá-las. Nesse ambiente, quase todas as qualificações humano-societárias se tornam elementos de afastamento entre os indivíduos, ao invés de ser algo a torná-los cada vez mais conscientes e co-responsáveis por sua força social. A riqueza e sua produção não são mais condições do intercâmbio saudável, mas fatores de segregação. A riqueza é distintivo social ao invés de elemento de identificação e reconhecimento mútuo.
Mas, nossa necessária articulação produtiva nos tornou capazes de, ainda assim, desenvolver e conectar dimensões múltiplas de socialização que não se deixam corromper de todo pela lógica vigente, fazendo jazer suas raízes mais profundas em elementos que felizmente ainda guardamos como herança das antiqüíssimas formas comunais – das quais o capitalismo, não obstante, conseguiu ao longo de pouquíssimos séculos usurpar ou destruir inúmeros outros. E é a existência dessas dimensões de interação social e o fato de terem atualmente que se propor como tarefa a ruptura da estrutura social que as constrangem e mutilam o que acredito inspirar não só esse texto e o veículo em que ora o publico, como também ao todo multifacetado e multidimensional a que é dirigido, o movimento pela emancipação humana, pela revolução social – que há pouquíssimo tempo andava tão desacreditado.
O que digo, fazendo ecoar as palavras de Marx, é que as relações por meio das quais a produção social se opera não podem ser consideradas como passíveis de remoção imediata por uma esfera pedagógica que lhe esteja (de modo imaginário) totalmente à margem e em condições privilegiadas de influenciar, como sugerem aqueles que acham que "a mudança tem que se dar por via da educação". Ao invés disso, devem ser consideradas como condicionantes bem concretas tanto da prática pedagógica como das demais esferas que a mesma prática pretende influenciar, e de fato influencia – seja no sentido de reforçar aquelas relações mais fundamentais e as demais nas quais estas repercutem, como se tende a fazer hoje na escola e nos lares, seja no sentido de lhes questionar a pertinência, como aqui se propõe fazer, por meio da denúncia do poder e da concretude de sua lógica brutal ao lado do apontamento de sua não-naturalidade, de sua estrita historicidade e de sua incompatibilidade mesma com a promoção daquilo que, em seu processo de propagação (com sua respectiva propaganda), se diz estar a elas vinculado: a liberdade e a oportunidade de pleno desenvolvimento das capacidades individuais, imprescindível a um tecido social saudável.
O que afirmo aqui, portanto, é a urgência de se desenvolverem dispositivos que permitam, do interior de uma esfera que inegavelmente se vê atada pelas amarras da ordem vigente, que a tornam de modo quase absoluto o plano da formação "para o mercado", detectar e estimular movimentos que essas ataduras não constranjam e que, uma vez postos a operar, possam afrouxá-las, ainda que um pouco, permitindo a promoção de novas realidades.
Isto é muito distinto do exercício inútil de imaginar que tais amarras não existem, remetendo a educação a um plano puramente espiritual; de fingir que basta dar a todos uma qualificação profissional para que o mercado cuide de garantir-lhes uma vida digna da qualificação de humana, em todos os aspectos; ou de fantasiar acerca do alcance efetivo da prática de se esgueirar entre as brechas do sistema, mas sem buscar romper, ainda que em longo prazo e a duras penas, as peias impostas pelas relações mais determinantes atuais.