Neste contexto de apatia, a ocupante (ou ocupanta?) do cargo executivo máximo do país, portanto, pode ser seguida por um nacionalmente destacado lingüista em sua empreitada de se fazer chamar de presidenta. E os dois, juntos, podem fazê-lo com ares de quem faz uma grande coisa.
Uma vez havendo selecionado o que acredita ser um absurdo merecedor de nota em nosso país, o senhor Marcos Bagno, acadêmico da UNB, sugere (em seu texto "Presidenta") uma nova formulação para o relato de um acidente envolvendo mulher e cão como vítimas de condutor imprudente. De modo indireto, o autor recomenda dizer, no caso, que foram atropeladas um cachorro e uma mulher por um motorista bêbado. E o faz com uma pergunta retórica posicionada após o relato de que, em português, utiliza-se a forma masculina quando se faz referência a um conjunto composto por objetos cujos nomes não são de mesmo gênero. Questiona ele, já tendo lá sua resposta pronta: "Não é impressionante"?
Diferentemente do que pensa o autor, creio que "impressionante" é o motorista dirigir bêbado; não essa forma de que se valem os falantes de nossa língua para relatar seus crimes. Também impressionante é o fato de que um cachorro possa fazer sumir a individualidade e a humanidade de uma pessoa de qualquer sexo, e não a feminilidade de uma mulher apenas, quando esse indivíduo de nossa espécie consegue nela tão pouco respaldo que sua vida cobra sentido naquela do canino. "Só meu cachorro me entende!"
Mas, se formos nos deixar impressionar pelo mesmo que impressiona o Sr. Bagno; se formos seguir a lógica de seu discurso e a direção apontada por seus imperativos, devemos lutar a seu lado também para que, no relato do sinistro, fique claro tratar-se de um motoristo irresponsável.
Claro! Pois, dizer motorista seria acusar alguma mulher por um delito que não cometeu. E isso seria injusto.
O que de fato impressiona no texto de Bagno é a imprecisão histórica. Pois, contrariando as insinuações de seu escrito, a dominação das mulheres pelos homens não remonta às origens de nossa espécie. Ela tem início em era bem determinada e relativamente recente, se levarmos em conta as quase duas centenas de milhares de anos já vividos por nós humanos e se as compararmos com os poucos milhares em que se pode verificar tal situação. Além disso, não é regra geral a ocupação de posições subalternas pelas mulheres nem mesmo após o início do assim chamado período histórico. Inúmeros são os exemplos muito e pouco antigos que o autor deixou no sossego dos livros de arqueologia e história e que contrariam sua tese. Ainda no século XIX, como se pode ler em Morgan, por exemplo, as mulheres iroquesas gozavam de um prestígio ainda maior que aquele outrora gozado pelas mulheres gregas de tempos mais remotos.
Nada disso é explicitado pelo autor, bem como não se expressa em seu texto a raiz efetiva de tal dominação das mulheres pelos homens (que, de fato, é uma forma de dominação que convive com aquela em que a opressão não se determina por gênero, mas por classe): a apropriação privada pelos homens dos bens fundiários outrora comuns, processo que culmina em modificações profundas nas relações entre gêneros (e não só nelas), em todas as instâncias da vida em sociedade, em todos os lugares onde ocorre.
Também em contraste com as afirmações de Bagno, é necessário dizer que bem antes do século XX as mulheres já lutavam contra a opressão secular que sobre elas se impõe. Há relatos de gregas que se isolavam em bandos do contexto marcadamente masculino em que nasceram e se criaram – as quais eram taxadas como loucas ou mesmo possuídas por entes sobrenaturais. E nos movimentos de transformação social do século XIX se podem destacar mulheres singulares, bem como grupos de mulheres, cuja peleja diária foi merecedora de destaque: pensemos, por exemplo, em Vera Zasulich, figura proeminente do assim chamado populismo russo, e nas "pétroleuses", dramaticamente atuantes na Comuna de Paris. E certamente há várias outras que se poderiam mencionar.
E estes não são os únicos equívocos históricos cometidos pelo autor. Ao lamentar-se pelo desprezível agradecimento feito a um suposto ser supremo pelos homens judeus em oração, por não haverem eles nascido com o sexo feminino, Bagno busca mais uma vez projetar para as brumas de um passado longínquo o alvorecer da opressão da mulher. O que não diz a seu leitor é que o judaísmo é uma religião de anteontem, em termos históricos, assim como o são seus lamentáveis filhos ou sobrinhos, o cristianismo e o islamismo. Algo que também não menciona é que, também como ocorre com suas religiões parentes, o judaísmo expressa instituições sócio-econômicas cujo fundamento é a propriedade privada dos bens fundiários, herdeira recente da várias vezes milenar propriedade comum de tais recursos sociais, que caracteriza quase toda nossa história – não obstante a ilusão compartilhada de que jamais existiu ou poderá existir algo assim.
Por que nosso lingüista não diz a seu leitor algo acerca das antiqüíssimas estatuetas femininas encontradas em escavações mundo a fora e que sugerem uma posição singularmente louvável das fêmeas de nossa espécie nas sociedades em que tais obras foram esculpidas? E por que não diz nada acerca das causas do fim de tais circunstâncias favoráveis às mulheres e do início daquelas em que se privilegiam os homens? Por que não diz a seus leitores que a posição de subordinação das mulheres tem lastro efetivo em formas sociais recentes de exploração econômica?
Porque não parece sequer desconfiar disso!
Voltando à problemática central do autor, devemos nos perguntar algo mais: se de fato melhoramos a vida de um ascensorista rebatizando-o de ascensoristo; se beneficiamos de algum modo um manobrista se passarmos a chamá-lo de manobristo.
Terão os homens que conduzem veículos automotivos alguma mácula em sua masculinidade por serem chamados de motoristas, ao invés de motoristos, com sugerido acima?
O que é isso, Sr. Bagno?!
Quando virmos aumentar o número de mulheres pedintes ou carentes em função dos acordos espúrios firmados pelo governo Temer/Rousseff, iremos aliviar o peso de sua existência dizendo que são, de fato, pedintas ou carentas?
Salvamos a vida de uma mulher rebatizando-a de indigenta? As mulheres, em geral, vão ter de algum modo sua dignidade incrementada caso se diga que elas são importantas?
Devo dizer que as mulheres são inteligentas, se quero expressar a obviedade de que seres humanos do sexo feminino são perfeitamente capazes de executar operações intelectuais complexas, sofisticadas e, mesmo, em numerosos casos, fascinantes?
Não!
Desde o abandono das grandes questões há algumas décadas pela esmagadora maioria daqueles que se diziam humanistas, progressistas, libertários nas letras, nas artes e na política, em função de uma derrota que em termos históricos não pode ser vista como mais que pontual (o chamado colapso do comunismo, que de fato não foi mais que o malogro de uma versão canhestra de projetos que ainda gozam de pleno vigor, o qual deve servir de elemento para o incremento desses mesmos projetos e não como desculpa para seu abandono), temos que ler como radicais as queixas superficiais e embirradas de pretensos críticos.
Se seguirmos essa linha de "combate", deveremos então propalar aos quatro ventos: por mais que submeta todos que a elegeram à sanha do capital internacional e doméstico (usualmente em conluios condenáveis), sepultando as parcas esperanças que despertou em seus discursos de campanha, a presidenta Dilma deve ser louvada por seu inquebrantável afã por uma reforma profunda... das palavras.