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Raquel Varela

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Ciência e Ideologia

Serão os povos da Europa capazes de resistir ao nacionalismo?

Raquel Varela - Publicado: Quinta, 30 Mai 2013 16:44

Introdução do livro Quem Paga o Estado Social em Portugal? (Bertrand, 2012)


Em junho de 2012 aterrei em Leipzig e dirigi-me à estação de comboios para ir do aeroporto ao centro. Na estação, uma única máquina de bilhetes, sem tradução, estava ao serviço de dezenas de passageiros visivelmente irritados sem terem a quem pedir ajuda. A única trabalhadora da Deutsche Bahn que passou por nós, uma alemã baixa e redondinha de uniforme impecável, respondeu que não havia alternativa e que se entrássemos nos comboios – já tínhamos perdido dois! –, pagaríamos multa. Como outros junto a mim – um casal de italianos, uma alemã a trabalhar em Itália e um grupo de franceses –, comentei a estranheza daquilo. A jovem alemã, simpática e em gestos de quem pedia desculpa, disse-nos numa voz sumida: «Até os alemães estão incomodados com isto…»

A resposta a esta crise foram medidas contracíclicas que visam triturar o capital excedente que fez cair a taxa de lucro, e a forma mais dramática dessa queima de excesso de capital é o desemprego em massa, o maior de que há memória em Portugal – cerca de 1 milhão e 300 mil, 23% da força de trabalho1 – e taxas elevadíssimos por todo o mundo: há, segundo a Organização Internacional do Trabalho, 197 milhões de pessoas desempregadas, das quais 75 milhões são jovens à procura de emprego2; 1/6 da humanidade passa fome e está desnutrido, segundo a FAO3. A segunda grande vítima terá sido porventura a ideia de uma Europa fraterna e unida. À boleia da Europa capitalista, com centros de poder não sujeitos ao escrutínio popular e com um banco central todo-poderoso, construiu-se a ideia de uma outra Europa. E que foi mais do que uma ideia porque convivemos nas últimas 3 décadas com tanta fraternidade que aprendemos até a contar anedotas uns dos outros com o respeito de quem sabe que as fragilidades dos outros são também as nossas e que por isso, unidos, seríamos mais justos e mais iguais do que desunidos por fronteiras, onde, num tempo que já se considera antigo, se passava horas em fiscalização esmiuçada.

Mas porque haveriam os Alemães de não ficar incomodados com uma fila interminável para comprar um bilhete? Não me passou pela cabeça que aquela desorganização na estação era um problema alemão. Mas a minha vizinha alemã da fila teve medo. Teve medo de que a reação dos outros na fila fosse a xenofobia. Que da máquina que não chegava para atender se passasse, num pulo, à Merkel pintada com bigodes de Hitler, aos panzers financeiros, por referência aos tanques nazis. Teve medo de que esta xenofobia que abre os telejornais desde 2008 – os «gregos», «os portugueses», os «alemães» – a levasse por arrasto, logo a ela que adora ser alemã e viver em Itália.

Subjacente a este livro está a vontade de reivindicar uma Europa dos povos, fraterna. Quem o escreveu sabe o suficiente da história, das contas públicas, dos regimes políticos, da política e da economia como política para saber que o Homem é artífice da sua própria história e que os telejornais abrem todos os dias com uma lenda xenófoba que se constrói com descuro pela ciência e desprezo pela verdade.

Os trabalhadores portugueses pagam para o Estado social o necessário para pagar a sua saúde, educação, bem-estar e infraestruturas. Esta não é uma afirmação ideológica, mas uma realidade, provada com detalhe no artigo “Quem paga o Estado social em Portugal?”, escrito por Renato Guedes, físico teórico, e Rui Viana Pereira, revisor científico, tradutor, humanista. Os autores analisam aqui tudo o que diz respeito às contas públicas: impostos, segurança social, dívida pública, entre outros setores. Se quer saber tudo o que o Estado andou a fazer com o seu dinheiro, deleite-se (e indigne-se) com estas páginas que, além do mais, têm a clareza necessária para os leigos poderem compreender com factos por que pagam mais do que recebem e ainda lhes acenam com uma dívida que não contraíram. Este é o estudo mais completo até hoje publicado entre nós sobre esta matéria desde que começou a crise de 2008. E isto tanto é verdade para trabalhadores portugueses como para os trabalhadores imigrantes, contribuintes líquidos para o Estado, como se pode ler no artigo da professora de serviço social Maria Augusta Tavares “Imigração e imigrantes em Portugal. O Estado de todos existe para cada um?” Num artigo sobre um dos pontos nevrálgicos do bem-estar, a saúde, Eugénio Rosa, economista, publica os dados, escandalosos, do financiamento da saúde privada com dinheiros públicos em “As contas reais do Serviço Nacional de Saúde e os efeitos do programa da UE”.

Este Estado social – que nasceu quer da derrota da revolução social de 1974-1975 quer da extensão da sua radicalidade, como se argumenta no meu artigo “Rutura e Pacto Social em Portugal: um olhar sobre as crises económicas, conflitos políticos e direitos sociais em Portugal (1973-1975, 1981-1986)” – está hoje em ruínas. O seu fim poderá acarretar uma crise do próprio regime democrático representativo. O modelo que serviu de base aos estudos da economia portuguesa deste livro foi criado pelo economista norte-americano Anwar Shaikh, que fez exatamente o mesmo estudo nos países da OCDE – aqui publicado no artigo “Quem paga o ‘bem-estar’ no Estado-providência? Um estudo sobre vários países” –, concluindo que, na OCDE, os trabalhadores pagam em média mais para o Estado do que obtêm dele sob a forma de bens ou serviços. Esta parte do livro termina com uma visão histórica da criação do Estado social na Europa, como nasceu, escrito pela professora universitária de serviço social Elaine Rossetti Behring, no artigo “O Estado social europeu tem futuro?”

A segunda parte deste livro é sobre economia política, e inicia-se com um artigo do economista Paulo Nakatani, “O papel e o significado da dívida pública”, sobre aquele que é hoje um tema de fundo da sociedade portuguesa, a dívida pública, que aqui se sustenta, em estudos detalhados, não ser uma dívida mas uma forma privada de acumulação de capital.

Segue-se um artigo do historiador Osvaldo Coggiola sobre “A crise de 1929 e a Grande Depressão da década de 30”. Trata-se da empolgante história da crise de 1929 – e também da resistência revolucionária que, derrotada, terminou tendo como resultado a II Guerra Mundial. Argumenta-se que as medidas contracíclicas de Roosevelt tiveram um impacto muito reduzido, incluindo nas taxas de emprego, e que a resposta no quadro da economia capitalista a essa incapacidade de recuperar as taxas de acumulação foi a economia de guerra, ou seja, transformar desempregados em soldados, forças produtivas em fábricas de máquinas de destruição. Segue-se o artigo “Observações em torno do movimento real dos ciclos e das crises económicas”, do economista José Martins, onde este questiona a teoria dos ciclos longos e da existência da queda da taxa de lucro desde a década de 1970, defendendo, contra a teoria dominante de inspiração wallersteiniana, que os EUA não estão em decadência mas são hoje a maior superpotência de sempre. O economista Reinaldo Carcanholo analisa justamente as principais interpretações sobre a crise económicas em “Interpretações sobre o capitalismo atual e a crise económica” e trá-las aqui num artigo extenso sobre as polémicas que envolvem as interpretações liberais, keynesianas e entre autores marxistas.

Os artigos que se seguem prosseguem a discussão sobre a dívida pública. Cláudio Katz, também economista, lembra sobre este tema a experiência argentina em “Lições da Argentina para a Grécia”. Uma entrevista sobre a Europa e a crise da dívida ao economista Éric Toussaint, do Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo, “No cerne do ciclone: a crise da dívida na União Europeia”, termina esta secção, completada por um quadro geral das medidas contracíclicas, “Os planos de austeridade na Europa”, de Virginie de Romanet.

Não é possível separar a economia da política. Por isso, quem mais pensou e mais longe foi no estudo do capitalismo, dos seu limites, da sua transformação, Karl Marx, fê-lo sob o signo da economia política. Assim, este livro termina com um conjunto de artigos dedicados a pensar a relação entre economia e política. “A vertigem da decadência e os desafios do futuro: crises económicas, regressão histórica e conflitos sociais”, é um artigo escrito pelo historiador Valério Arcary sobre a relação ente os novos movimento sociais – com a sua força e as suas fragilidades – e esta crise económica. Os dois últimos artigos voltam a Atenas, um dos berços da civilização. O primeiro, “A Grécia e o declínio da Europa”, de Savas Michael-Matsas, médico e filósofo, coloca em cheque a sobrevivência da União Europeia pela força da resistência dos trabalhadores e classe médias empobrecidas à austeridade. O último artigo, da autoria dos historiadores Felipe Demier e Gilberto Calil, “Crise económica e democracia representativa no Sul da Europa”, coloca em destaque que é no quadro do regime democrático represenattivo que as medidas de austeridade estão a ser postas em prática e não no quadro de regimes fascistas, cuja ameaça real neste momento quase não existe.

De repente, num passo de mágica deixaram de existir trabalhadores alemães e trabalhadores portugueses, banqueiros alemães e banqueiros portugueses, e passou a existir só a Alemanha, Portugal, a Grécia, a Espanha. O problema não é semântico. Longe disso: nesta abordagem nacionalista fica para segundo plano que os trabalhadores alemães perderam em quase uma década valor no salário real e que o ritmo das exportações da Alemanha é feito com o custo da precarização do trabalho destes; fica também olvidado que os governos português e grego foram tão ou mais longe nas medidas de austeridade do que a troika, fiéis aos programas liberais dos partidos que representam.

Em Leipzig, 23 anos antes da minha curta viagem, no mês de outubro de 1989, o povo dirigiu-se à sede da polícia política Stasi, gritando “Wir sind das Folk”, nós somos o povo, questionando a ditadura burocrática da RDA. Uma semana depois, dirigidos por setores liberais, gritavam, com a mesma coragem e determinação, “Wir Sind ein Volk”, nós somos um povo, abrindo caminho a uma saída nacionalista (e capitalista) para as revoluções que derrubaram as ditaduras pró-soviéticas.

Na história todos os caminhos são possíveis: do heroísmo dos brigadistas na Espanha de 1936-39 ao terror nazi, a coragem e a barbárie convivem lado a lado, e uma sociedade igualitária é hoje tão possível quando uma regressão social histórica. Serão os povos da Europa capazes de resistir ao nacionalismo e, mais cultos, mais escolarizados, mais urbanizados, mais globais do que no passado, encontrar uma saída igualitária para este impasse?

1 Número de acordo com a contabilidade do desemprego real, que inclui os dados do INE para o subemprego visível e os inativos disponíveis, e difere da contabilidade oficial apresentada pelo Governo.

3 http://www.fao.org/news/story/en/item/20568/icode/ Consultado a 4 de julho de 2012.

 


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