Foto: Presidente egípcio recebe Teodoro II, papa da Igreja Ortodoxa Copta, em solidariedade pela morte de 21 cristãos egípcios pelo EI.
A Líbia está em crise permanente desde 2011. Nestes quatro anos, o país não teve nenhum líder que tenha exercido o cargo tanto de fato quanto de direito. A guerra civil que derrubou Muamar Kadafi do poder arrefeceu após a morte do ex-ditador, mas a violência nunca cessou. Após diversas tentativas de instaurar governos provisórios, uma guerra civil de ampla escala foi retomada em 2014. Os dois principais blocos antagônicos são o Parlamento líbio, que possui o apoio das Forças Armadas regulares e parte das tribos do sul do país, e o Novo Congresso Geral Nacional. Ambos os grupos enxergam-se como legítimos vencedores das eleições de junho de 2014 e sucessores do Congresso que buscava estabelecer um novo governo, em 2012.
Nessa disputa fraticida pela Líbia e o consequente vácuo de poder, surge o terceiro grupo, os jihadistas, formados por diversos grupos radicais, como o Ansar al Sharia — proveniente da região de Benghazi, berço das revoltas contra Kadafi — e a célula local do próprio Estado Islâmico. Hoje, estes grupos já dominam regiões dentro da Líbia, inclusive as duas cidades alvo de ataques egípcios. Derna, antes da guerra civil de 2011, tinha uma população de cerca de 100 mil pessoas. Ambas são cidades portuárias, dispondo de razoável infraestrutura. Foi em Sirte que os pescadores egípcios foram capturados, embora a cidade seja no Golfo de Sidra, mais afastada da fronteira com o Egito do que Derna.
Proximidade geográfica e bloco árabe
O primeiro aspecto dos ataques egípcios seria, então, além das execuções, a proximidade geográfica. O maior vizinho do Egito vive uma situação de falta de controle institucional, uma crise generalizada que já dura quatro anos. É de interesse da segurança egípcia impedir que esse vácuo de poder crie as mesmas condições, como na Síria e no noroeste do Iraque, de fortalecimento dos jihadistas. Além disso, o Egito fez pressões no Conselho de Segurança das Nações Unidas, tanto para permitir ações maiores quanto para levantar o embargo que a Líbia sofre, o que permitiria que o governo líbio, mesmo não totalmente constituído, pudesse comprar armamento para "combater o terrorismo".
O Egito, ao tomar a iniciativa de atacar o EI e tentar coordenar ações internacionais contra essa nova célula jihadista, não age isolado. O que leva ao segundo aspecto, a coordenação entre os países árabes. Talvez por acharem que o modelo de intervenção ocidental esteja desgastado, talvez por pressão de governos ocidentais, que cobram posições mais firmes dos países árabes, Egito, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos estão iniciando ações em concerto para lidar com movimentos identificados como extremistas. A articulação dentro da Liga Árabe é, certamente, o caminho mais duradouro para a estabilidade regional, independente de ações de outras potências. Ainda na geopolítica internacional, forma-se um bloco que contém o rival regional, o Irã.
Demonstração desta nova articulação foi a assinatura de um contrato de fornecimento bélico entre Egito e França, no valor de cerca de US$ 6 bilhões. A economia egípcia ainda está em crise, o país sofre com déficit público e queda de investimentos estrangeiros. A transação foi financiada em parte pela própria França e metade por injeção de crédito saudita e dos Emirados Árabes Unidos, via a empresa francesa Coface. Uma triangulação parecida foi feita entre França e Arábia Saudita para armar o Líbano. Se, naquela situação existem razões de política interna saudita que explicam as ações internacionais, o mesmo acontece no caso egípcio, o terceiro aspecto desta análise.
Autoafirmação interna
O Egito, ao atacar o EI na Líbia, não apenas assegura suas fronteiras, faz uma demonstração de força e demonstra articulação entre países da Liga Árabe. Ele interfere na guerra civil líbia, de três maneiras. A primeira, mais óbvia, é enfraquecer uma das facções em luta, a dos jihadistas, que é composta por outros grupos além do EI, como o citado Ansar al Sharia. A segunda é fortalecer o parlamento líbio, visto pelo Egito como o governo legítimo do país vizinho. Isto é feito tanto pelo fornecimento de apoio aéreo como pelo apoio político, que confere prestígio e legitimidade. O ápice disso foi solicitar que esse governo, essa facção, pode se armar, pelas vias internacionais legítimas, sob a justificativa de combater o extremismo.
O fortalecimento do parlamento líbio, entretanto, também significa uma maior capacidade de combater o Novo Congresso Geral Nacional. E essa é a grande intenção egípcia ao contribuir politicamente com o parlamento da Líbia. Isso se explica pela política interna egípcia. No Egito, a ideologia vigente desde a fundação moderna do país, em 1952, é uma ideologia de Estado. Praticamente todos os líderes egípcios foram militares, incluso o atual, general Abdel Fattah al Sisi. Não existe, no Egito, uma mentalidade de pluralidade política ou de incorporação da religião na política. A ideologia vigente foi muito fortalecida pelas concepções pan-árabes nacionalistas de Gamal Abdel Nasser, que governou o país por 14 anos. Há o estabelecimento de uma perspectiva que classifica as Forças Armadas egípcias como "guardiãs" do Estado egípcio.
O único líder egípcio que não era militar foi também o único eleito em pleito universal e democrático, Mohamed Mursi, deposto em julho de 2013. Mursi era do partido da Irmandade Muçulmana, entidade política presente em diversos países, fundada no Egito em 1928. O grupo foi declarado ilegal após uma tentativa de assassinato de Nasser e é pioneira do pan-arabismo, mas não um pan-arabismo nacionalista. A organização é vista como "inimiga" pelo Exército egípcio; consequentemente, pelo Estado egípcio. Após a deposição de Mursi, em dezembro de 2013, a Irmandade Muçulmana foi declarada "terrorista" pelo governo egípcio; cerca de 2 mil pessoas foram mortas, com 16 mil prisões políticas por parte do governo militar de al Sisi.
A Irmandade Muçulmana está presente em mais de dez países, e é o principal partido e a principal força política do Novo Congresso Geral Nacional na Líbia. O Egito não quer armar as forças do parlamento líbio apenas como uma maneira de combater jihadistas. O governo militar egípcio quer buscar uma forma de combater a Irmandade Muçulmana em seu vizinho, seja por ações próprias, seja apoiando outra facção da luta. O fortalecimento da Irmandade Muçulmana na Líbia poderia significar tanto um fluxo de voluntários egípcios para o vizinho como, num cenário ainda pior aos olhos de al Sisi, um vizinho governado pelo inimigo que apoiasse o retorno do partido na política egípcia. O único partido que governou o país após uma eleição democrática. O governo egípcio não quer apenas combater o extremismo, quer articular sua própria posição.
Filipe Figueiredo é redator do Xadrez Verbal.