Comecemos pelas atormentadas negociações no Eurogrupo em Bruxelas sobre a dívida grega.
Funcionários gregos juram que jamais receberam rascunho de um possível acordo vazado por burocratas do Eurogrupo para o Financial Times. Esse rascunho referia-se a um acordo que "emendava e estendia e concluía com sucesso" o atual "resgate-arrocho-austeridade".
O Ministro das Finanças alemão Wolfgang Schaeuble cortou "emendava". Esse é o rascunho que foi vazado. Mas então o Ministro das Finanças grego, Yanis Varoufakis, chamou o Primeiro-Ministro Tsipras – e o documento, ainda não assinado, foi rejeitado. Foi alta decisão do próprio Tsipras.
Tsipras não podia, não, de modo algum, vacilar – não depois de ter subido as apostas –, quando prometeu aumentar o salário mínimo grego e pôr fim às privatizações. Continua apostando a casa, em que a Troika não permitirá que se consuma a saída da Grécia – um Grexit da Zona do Euro. Mesmo assim, pode estar enganado; a possibilidade de um Grexit'oscila em torno de 35-40%, e será muito mais alta se não houver acordo algum na crucial próxima reunião, na segunda-feira (16).
Tsipras e o presidente do Eurogroupo, Jeroen Dijsselbloem, concordam pelo menos que os funcionários gregos e da Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e FMI) devem começar por discutir "num nível técnico". Tradução: compararão o atual pesadelo da "austeridade" [de fato, é "arrocho" (NTs)] com novas propostas gregas.
Atenas só tem, essencialmente, duas opções. Ou a Troika aceita fazer algum tipo de "rejeição" da dívida – real ou como golpe de prestidigitação (é a proposta da coligação Syriza – um arranjo que promove o crescimento); ou segue-se o Grexit, com Atenas criando seu próprio banco central e sua própria moeda como nação independente. Não há terceira escolha: dívida equivalente a 175% do PIB grego é dívida totalmente impagável.
Por mais que a Troika e seus derivativos institucionais divulguem que o Grexit não seria grande coisa, fato é que um calote da dívida grega pode ter efeito mais devastador que o caso do banco Lehman Brothers. Não foram os fundamentos, no caso de Lehman, que geraram pânico generalizado quando o banco quebrou; mas o medo de que a quebradeira dos derivativos pusesse abaixo todo o sistema.
E observando por através do noticiário e da boataria, o que permanece, essencialmente, é o que o Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, disse ao Fígaro há alguns dias: está fora de questão qualquer supressão de dívida grega e, sobretudo, "contra os tratados europeus, nenhuma saída é democrática". Claro como cristal: as instituições europeias trabalham contra a democracia.
O Plano B ainda é clara possibilidade. Moscou já convidou Tsipras para encontro com Putin. E Pequim convidou Tsipras para reunir-se com o Primeiro-Ministro Li Keqiang. São o "R" e o "C" de "Brics", em ação.
Vale a pena lembrar o Ministro grego da Defesa, Panos Kammenos, quando articulou, se não uma posição majoritária, pelo menos uma percepção já visível na opinião pública grega:
Todos queremos um acordo. Mas se não há acordo e se virmos que a Alemanha permanece rígida e quer detonar em pedaços a Europa, nesse caso teremos de recorrer ao Plano B (...) Temos outros meios para conseguir dinheiro. Podem ser os EUA, para começar, pode ser a Rússia, a China ou outros países.
Alea jacta est. Troika ou República Chinesa?
E tudo tem a ver com a Otan
Há também Minsk. O que foi obtido depois de quase 17 horas de uma terrível maratona de discussões não é exatamente, nas palavras do presidente francês François Hollande, acordo "global" e "cessar-fogo global" na Ucrânia.
Há alta probabilidade de que o cessar-fogo seja reduzido a zero apenas uns poucos minutos depois de implementado, à meia-noite desse sábado – ironia das ironias, quando estiver acabando o Dia dos Namorados [orig. Valentine's Day]. Significativamente, o documento final não leva nenhuma assinatura realmente importante: nem de Putin, nem de Angela, nem de Hollande, nem de Porochenko.
O Ministro alemão de Relações Exteriores foi cuidadoso, alertando que Minsk 2.0 não é exatamente solução para tudo, mas, pelo menos, faz desescalarem as tensões. Angela preferiu divulgar que Putin teve de pressionar os federalistas anti-Kiev das Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, para que aceitassem o cessar-fogo.
Como se podia prever, regular como relógio, já mesmo antes do cessar-fogo, o FMI – obedecendo ordens de Washington – repentinamente anunciou que continuará a estuprar, digo, a resgatar o falido, quebrado, estado-falido da Ucrânia, com uma parcela de US$ 17,5 bilhões, parte de um pacote maior de estupro, digo, de "resgate", de quatro anos, de US$ 40 bilhões. Tradução: os bandidos da gangue de Kiev já têm dinheiro novo para jogar numa guerra que eles não querem que acabe.
O próprio Porochenko não perdeu tempo para se pôr a torpedear o cessar-fogo: espalhou que ninguém garantiu qualquer autonomia às áreas sob controle dos federalistas anti-Kiev, e recusou-se a confirmar o que Putin dissera, que Kiev aceitara pôr fim ao perverso bloqueio econômico contra o Donbass.
O preciso contorno da zona desmilitarizada – que acompanhava o território controlado pelos federalistas em setembro, que já é completamente diferente hoje, cinco meses depois – permanece um mistério. E Washington imediatamente converteu em piada a cláusula sobre "retirada de forças estrangeiras". O Pentágono já anunciou que, mês que vem, começará a treinar a Guarda Nacional da Ucrânia.
Minsk 2.0 não chega a ser, sequer, um band-aid. A Ucrânia é insalvável. Só ressurgirá do mundo dos mortos se um tsunami de dinheiro – quase o equivalente ao que custou a reunificação da Alemanha – fosse lançado lá. Desnecessário acrescentar que ninguém na Europa quer saber de pôr nisso nem um punhadinho de desvalorizados euros.
A coisa era, é e continuará a ser, essencialmente, questão da expansão da Otan. Washington e as marionetes de Kiev jamais permitirão qualquer reforma constitucional que permita que o Donbass bloqueie a ação da Otan incorporada na Ucrânia. Assim sendo, em resumo, o Império do Caos não deixará de usar a Ucrânia para molestar a Rússia. O Império do Caos não está, precisamente, no negócio de construir nações (é exatamente o contrário disso).
Atravessar a ponte alemã
E isso nos leva até o papel crucial que cabe à Alemanha – com a França no assento ao lado.
A Chanceler Angela Merkel teve de ir a Moscou para negociar com Putin, porque viu de que lado soprava o vento – sempre mais e mais sanções, sempre contraproducentes; a economia da Ucrânia em queda livre; os bandidos de Kiev vencidos em guerra. Aí estava tanto um imperativo quando uma crucial demarcação para bem longe da obsessão imperial com expandir a Otan.
Como Immanuel Wallerstein observou:
Moscou está avançando numa política cautelosa. Sem controlar completamente os autonomistas de Donetsk-Lugansk, a Rússia mesmo assim cuida de que os autonomistas não possam ser eliminados militarmente. O preço que os russos demarcaram para qualquer verdadeira paz é a Otan comprometer-se, à vera, a não incorporar a Ucrânia como membro.
Assim sendo, Angela pode ter conseguido brecar a fúria do governo Obama - que quer armar Kiev – mas só o conseguiu por enquanto. Não há qualquer sinal, pelo menos até agora, de que o governo Obama e seus neoconservadores incorporados tenham aceitado que as Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk (DPR e LPR, como se autoproclamaram) estejam essencialmente "perdidas" para a influência de Kiev.
Hollande garantiu a perfeita cobertura de que Angela precisava. Quem defendeu publicamente a autonomia para as novas repúblicas – em termos de federação – foi Hollande. Ao mesmo tempo, ambos, Angela e Hollande sabem que Kiev jamais aceitará realmente qualquer "federação" (e mesmo parte substancial do Donbass só aceita a federalização como degrau de acesso para uma eventual secessão e união à Rússia).
Angela – pelo menos em termos da opinião pública alemã – alcançou o objetivo dela, emergindo como vitoriosa ("A chanceler global" – como escreveu o tabloide Bild), depois daquela maratona de horas voadas. Putin também emergiu como vencedor – dado que Angela só fez, essencialmente, reapresentar as propostas de Putin, de meses passados. Assim sendo, sim, e examine-se o evento por seja qual ângulo for, foi, sim, negócio Moscou-Berlin. Fácil ver quais os atores que acabaram completamente descartados e farão de tudo para bombardear o negócio: Washington, Kiev, Londres, Varsóvia e os estados histéricos "Rússia está invadindo", do Báltico.
Por fim, mas não menos importante, chamemos a atenção para o monumental elefante branco na sala. Minsk 2.0 foi conduzido ante a absoluta ausência do Império do Caos e dos (cada dia mais irrelevantes) aliados-vassalos britânicos da tal "relação especial".
Lentamente, mas com certeza absoluta, a opinião pública em toda a Europa – especialmente a opinião pública alemã – está vivenciando uma mudança tectônica. A obsessão do Império do Caos de armar e armar cada vez mais os neofascistas de Kiev horrorizou milhões de pessoas – e fez renascer o espectro de uma guerra na fronteira oriental da Europa. Não só na Alemanha, mas também na França, Itália, Espanha, cresce um consenso continental contra a Otan.
Mesmo no auge de uma campanha viciosa e pervertida de demonização da Rússia, lançada e mantida por praticamente toda a imprensa-empresa alemã, pesquisa feita pela Deutschland Trend revelou que a maioria dos alemães estão contra a permanência de tropas da Otan na Europa Oriental. E nada menos de 49% dos alemães preferem ver a Alemanha na posição de ponte entre o Oriente e o Ocidente. Em Pequim, o governo com certeza já anotou esses resultados.
Assim sendo, é tentador pular para dentro do trem da paz Angela/Hollande, com o coração da Europa, afinal, exercendo a própria soberania e desafiando frontalmente o Império do Caos. Talvez aí esteja o embrião de uma parceria germano-francesa para a paz na Europa e mesmo para além disso, do Oriente Médio à África.
Essa via antagoniza frontalmente o roteiro da Otan – que implica o Império do Caos mandando sem rival na Europa, no Oriente Médio e até na Eurásia, com as potências europeias, especialmente Alemanha, França e, sim, claro, a Rússia, empurradas para a periferia.
Mais cedo ou mais tarde, os políticos europeus terão de acordar e farejar de onde vem o cheiro do café: a noção de uma parceria germano-franco-russa pan-europeia, parceria comercial e de/para a paz, é muitíssimo mais popular entre os eleitores, do que pode(ria) supor quem só conheça opiniões e avaliações de uma imprensa-empresa já falida.
Agora, cabe a Alemanha limpar a sua participação na cena da Grécia. A escolha é bem clara. A União Europeia pode afundar-se num quarto mergulho na recessão, se o Banco Central Europeu destruir o que resta das classes médias europeias. Ou a Alemanha, refletindo o pensamento já vigente entre seus principais capitães de indústria, pode dizer à UE – Troika incluída – que a única saída à frente é mudar o foco estratégico, comercial e político, do Ocidente para o Oriente. Começa por mandar às favas o "Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento" [ing. TTIP], acordo protecionista, que só interessa às empresas norte-americanas protegidas – e que é a Otan-nos-negócios.
Afinal, esse será o século eurasiano – e o trem já partiu da estação.
Pepe Escobar é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política de blogs e sites como: Tom Dispatch, Information Clearing House, Red Voltaire, Counterpunch e outros; é correspondente/ articulista das redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera.
Traduzido pelo coletivo Vila Vudu.