Não há, praticamente, crítico de cinema nem jornalista de editoria internacional que não tenha escrito, ou ao menos não conheça o filme do italiano Gillo Pontecorvo, A Batalha de Argel (1966/Premio Leão de Veneza), um dos clássicos mais admirados do cinema político.
Do ponto de vista estrito, cinematográfico, o filme de Pontecorvo é obra prima de agilidade, ritmo, clareza e beleza plástica. É resultado da admirável fotografia rústica, preto-e-branco, utilizada propositadamente para sublinhar a natureza dos cine jornais da época, da trilha musical perfeita de Enio Morricone e do roteiro emocionante que equilibra diálogos esclarecedores para o leigo com as cenas e sequências memoráveis, das ações da Frente Nacional de Libertação da Argelia (a FLN) nas ruas, nos anos 50/60, e do povo árabe na luta para se libertar da opressão e da expropriação das suas terras. Uma colonização francesa que durou 130 anos.
Tão contundente, volta e meia a situação mostrada pelo filme é evocada como consequência do mundo Sykes-Picot*, o período histórico da década dos anos 30 do século vinte, no qual as grandes potências ocidentais, França e Inglaterra, decidiram, numa cruel e insolente ação entre amigos, dividir o Oriente árabe e a África entre si, ao bel prazer dos interesses econômicos das suas corporações.
Aí, a origem de todo tipo de terrorismo, seja de estado e das mais variadas formas de fundamentalismo, reconhecida, dez anos atrás, até por um ministro britânico reacionário, das Relações Exteriores, Jack Straw. Candidamente ele declarou: "Muitos dos problemas que estamos precisando resolver, hoje, são consequência do nosso passado colonial".
La Batagllia dei Argeli mostra o confronto entre os árabes e as forças militares francesas. Entre elas, oito mil paraquedistas, os pará, com experiência na Indochina e na resistência aos nazistas, na Normandia e na Itália, como se vê no relato. Desembarcaram em Argel em 1957.
"Entre eles, as brigadas dos temíveis 'leopardos' que lutariam para manter a 'França africana" – ou como diziam os generais enviados para lá: 'Para proteger as pessoas e a propriedade privada' – ou seja, as terras roubadas dos árabes – e para isolar e destruir a Frente Nacional de Libertação.
Mas a independência do país só ocorreu em 62. Apenas quatro anos depois, ainda sob o calor das lutas sangrentas, Pontecorvo fazia seu filme baseado no livro de Saadi Yacef, Lembranças da Argélia.
Robert Fisk, um dos mais respeitados jornalistas europeus, correspondente de experiência notável, que vive no Líbano e é um dos melhores conhecedores e analistas da história do mundo árabe, conta que quando ouviu as primeiras notícias sobre o massacre aos jornalistas do Charlie Hebdo, imediatamente murmurou para ele próprio: "Argélia..." Horas depois foram divulgadas as identidades dos assassinos: os irmãos Chérif e Said Kouachi eram de origem argelina.
E mais: a pensar na idade da dupla, na casa dos 30 anos, deveriam ser filhos de cidadãos que presenciaram ou participaram das ferozes lutas pela independência argelina relatadas no filme, quando o terrorismo de ambas as partes era usado como recurso de dissuasão. Os pais dos Chérife poderiam, talvez, ter imigrado para a França por volta dessa época. Pouco ou nada se conhece sobre a origem mais remota dos dois, exceto informações sobre a infância em um orfanato francês.
Parece, realmente, que uma ferida não fecha, 53 anos depois da independência do país do norte da África, entre a França e a Argélia, como aponta Fisk. Um fantasma ronda, relembrando o terror continuado das bombas carregadas em suas sacolas pelas mulheres árabes da Casbah de Argel e detonadas nos cafés franceses do bairro europeu - onde se dançava cumbias ao som das juke Box - e o terror de milícias e militares, até nas ruas de Paris não só contra argelinos, mas contra os árabes em geral.
Os alvos, às vezes, eram marroquinos, caso do célebre episódio em que o dirigente de esquerda Ben Barka foi sequestrado, anos depois, já em 65, defronte de um cinema, em pleno dia, no Boulevard Saint Germain. Depois, foi assassinado. O corpo nunca foi encontrado. O atentado é atribuído aos agentes secretos franceses com a colaboração do Mossad e da CIA.
O vigor de A Batalha de Argel é tal que, através dele, as lembranças emergem.
O filme se inicia em 1954, primeiros tempos da organização da FLN entre os moradores da Casbah. Mostra como ela ocorreu. O uso do álcool e das drogas era usado livremente e estimulado pelos colonizadores para controlar melhor a população dos 400 mil cidadãos árabes da cidade. Mesma estratégia usada pelos ingleses com as populações chinesas e seus vizinhos durante a Guerra do Ópio.
Sete atentados por dia era o saldo da violência na capital argelina. Bombas explodiam as residências de prisioneiros com suas famílias dormindo dentro delas. Cercos policiais montados com check points faziam a vida miserável no bairro transformado em gueto. Começava a chamada Operação Champanha. Em resposta, os da FLN retaliavam, fuzilavam e esfaqueavam policiais. Muitos dos apanhados eram guilhotinados.
Pouco a pouco os árabes promovem uma limpeza entre habitantes da Casbah. Nesta segunda parte do filme, vemos como se formando forte e organizada resistência e consciência política.
Alguns aspectos, sempre oportunos, são sublinhados no filme de Pontecorvo:
- O voto da ONU pela não-intervenção de forças de paz na Argélia. A guerra se prolongava e se tornava uma chacina. Discutiu-se a questão argelina e votou-se a favor dos franceses.
- A importância do papel da imprensa de Paris escondendo ou deturpando fatos que não eram de interesse do governo francês divulgar. "Muito depende do que vocês escreverem", dizia o coronel Mathieu, o insolente comandante dos paraquedistas, nome fictício para o general Jacques Massu** (de triste memória), nas muitas entrevistas coletivas convocadas, se referindo à vitória. "Escrevam bem," ele exortava. No dia seguinte as manchetes dos jornais franceses diziam: "Tudo calmo no bairro muçulmano." Era mentira. Mathieu/Massu declarava: "A palavra tortura não consta das nossas ordens..."
- As técnicas sistematizadas de torturas de prisioneiros depois exportadas para os Estados Unidos, América do Sul e para o Brasil. Afogamentos, choques elétricos, queimaduras com maçaricos, pau-de-arara. Torturas promovidas nas residências dos árabes sob as vistas das famílias.
- E a sequência final de A Batalha de Argel com cenas antológicas de rebelião popular. Desde 11 de dezembro de 1960 até o dia 29 do mesmo mês a população árabe não deixou as ruas embora muitos tenham sido metralhados e esmagados pelos tanques. Milhares de bandeiras do país, com o símbolo da meia lua e da estrela foram feitas de retalhos, trapos, com qualquer pedaço de pano encontrado. "Tudo virou bandeira!" anunciavam os cine jornais e as emissões de rádio. Agitadas na brisa marinha do céu da Casbah e, depois, de toda a cidade, elas são uma visão emocionante no filme.
Em 1962, foi, enfim, dada a resposta à pergunta que Mathieu/Massu costumava fazer aos jornalistas nas arrogantes entrevistas em que negava praticar a tortura: "A FLN quer nos ver fora da Argélia e nós queremos ficar. E vocês?" Os franceses tiveram que sair.
Robert Fisk pode ter mesmo razão: há ainda contas a ajustar entre a França e a Argélia? Quanto permanece de ressentimento pelo passado violento para ambas as partes? Entre os pieds noirs,*** obrigados a devolver as terras que tinham sido confiscadas aos árabes e retornar à Europa, e os habitantes do interior, das montanhas argelinas, e os da Casbah de Argel que se viram obrigados a imigrar?
*Os diplomatas Mark Sykes e François Georges-Picot arquitetaram um 'novo' Oriente Médio, depois da I Guerra Mundial, desenhando linhas arbitrárias de fronteiras e criando vários países árabes que não existiam antes. Ver aventuras de T. E. Lawrence, o Lawrence da Arábia.
**Massu declarou ao Le Monde em 2000: " O mais duro de suportar foi o fato de meu nome ficar para sempre associado à tortura." Ficou.
***Descendentes de colonos europeus, em particular de franceses, que regressaram aos seus países depois das guerras de independência do norte da África.