Alguns especuladores chegaram até a fantasiar que o destino do dólar norte-americano estaria selado e que seria questão de meses, antes que o sistema de Bretton Woods viesse abaixo.
São elucubrações de pura fantasia, e quem tenha acompanhado a trajetória das relações russo-chinesas ao longo das últimas décadas sabe que há complexidades (e contradições) demais envolvidas nessas relações, e que em nenhum caso esses países simplesmente decidiriam, um belo dia, abraçar-se e tornar-se aliados.
Paradoxalmente, a estratégia dos EUA para Rússia e China está construída sobre a certeza virtual de que elas jamais possam formar um eixo no sistema internacional.
Claro que, em nome de fomentar as tendências ao "policentrismo" na política mundial, Rússia e China devem andar ombro a ombro. Mas, daí em diante, tal ideia permanecerá para sempre no domínio do wishful thinking ("pensamento desejante") – ou como delírio de fumaças cachimbadas.
A China é potência muitíssimo autocentrada e "pragmática", para pensar em alistar-se em alianças; e a Rússia, por sua vez, é ferozmente independente nas suas políticas externas, além de intensamente consciente e orgulhosa da própria história, e em nenhum caso se alistará como 'parceira júnior' de qualquer outro estado.
O presidente Vladimir Putin disse, há algumas semanas, na fala à Assembleia da Federação Russa, em Moscou, que a Rússia jamais se porá em posição de potência militar inferior a qualquer país. Falava simultaneamente à China e aos EUA.
Dois editoriais do jornal Global Times, voz do Partido Comunista Chinês, durante a semana, lançaram ainda mais luz sobre como a China vê a grave crise que a Rússia enfrenta, e qual deve ser a posição da China, na Guerra Fria da Rússia com os EUA. Como são editoriais, com certeza manifestam o pensamento chinês oficial.
Ponto interessante a ser observado aqui é que os dois editoriais apareceram imediatamente um antes, o outro depois da tradicional conferência anual do presidente Vladimir Putin da Rússia com a imprensa, no Kremlin, 5ª-feira, 18/12/2014.
Para ser exato, o primeiro editorial do Global Times apareceu dia 17/12/2014, 4ª-feira, e o segundo, dia 22/12/2014 (quatro dias depois do evento no Kremlin).
E – detalhe interessante –, houve uma leve 'correção de rota', pelo Global Times, entre os dois editoriais, da 4ª-feira passada e de hoje.
A conferência anual de Putin com a imprensa no Kremlin estava marcada há semanas, e esperava-se que as tensões entre Rússia e EUA dominariam as conversas na 5ª-feira. De fato, o timing do editorial do Global Times, naquela 4ª-feira, véspera da conferência de imprensa, é detalhe que também se tem de considerar.
O editorial do Global Times (17/12/2014) na 4ª-feira pintava quadro alarmante da economia russa, mostrando-a na iminência de uma crise sem precedentes, e avaliando o futuro da Rússia como "imprevisível".
A crise seria comparável ao colapso da extinta União Soviética. O editorial dizia que a crise impunha "novos desafios ao governo do presidente Vladimir Putin, obrigando-o a aplicar uma estratégia defensiva"; ao mesmo tempo, observava que também há preocupações sobre "[o presidente Putin] tornar-se mais agressivo".
Os comentaristas chineses tradicionalmente tratam Putin com luvas de veludo, como se fosse herói invencível; sugerir que ele pudesse executar movimento errático é diferença notável.
No geral, o editorial estima que a Rússia superará a crise no curto prazo e que "a ameaça de colapso ainda é distante". Mas prossegue, e diz que a China é fator significativo no envolvimento estratégico da Rússia e, portanto, a "opção mais realista" que Putin tem à frente é aceitar o apoio chinês.
Contudo, lê-se lá, a cooperação sino-russa "não é mais baseada em ideologia, mas movida por interesses comuns"; assim sendo, a China não deve ser "proativa", mas deve, isso sim, esperar que Moscou peça ajuda.
A linha de mais peso segue daí em diante, até o fim do editorial, quando o comentarista avalia que a Rússia provavelmente "recalibrará" suas estratégias nacionais para lidar com a crise, mas nada assegura que venha a aproximar-se mais da China; e do lado chinês, portanto, as relações com a Rússia têm de ser conduzidas com base na reciprocidade.
Pode-se quase dizer que esse editorial é estarrecedor, pelo que "adivinha". Dia seguinte, Putin disse com absoluta clareza, na conferência com a imprensa, que a Rússia planeja apertar os cintos e sobreviver com seus próprios meios por cerca de um ano, até que a economia mundial volte a crescer; e que, nesse período, a Rússia propõe-se a levar a efeito uma muito necessária reforma estrutural, com vistas a reduzir a dependência da renda do petróleo.
Putin também desmentiu o noticiário de propaganda do ocidente, sobre a economia russa. Explicou a posição confortável das reservas em moeda estrangeira e destacou que não haverá cortes nem no setor social nem nos gastos com a Defesa.
No que tenha a ver com a China, Putin não mostrou qualquer sinal de que Moscou cogite pedir ajuda aos chineses ou, mesmo, que haja qualquer reflexão sobre a Rússia vir a "depender" da China.
Significativamente, Putin deu mais uma volta no parafuso do recente meganegócio de gás com a China, ao mesmo tempo em que negou claramente qualquer movimento de "pivô" em direção à China, na estratégia russa de exportação de energia, como alguma espécie de efeito do esfriamento nas relações com a Europa. O que Putin disse foi:
Quanto à energia, a demanda por recursos segue curso de saltos e rebotes na China, na Índia, como também no Japão e na Coreia do Sul. Tudo está em desenvolvimento mais rápido aí, que em outros pontos. Deveríamos por acaso deixar passar nossa oportunidade? Os projetos nos quais estamos trabalhando foram projetados e planejados há muito tempo, muito antes de começarem os problemas que temos hoje na economia global ou na economia da Rússia. Estamos simplesmente implementando planos que já estavam em andamento há muito tempo.
Jornalistas e comentaristas ocidentais distribuíram a "versão" segundo a qual a Rússia teria feito "concessões" à China, como se estivesse em posição de fraqueza. Mas Putin disse coisa completamente diferente:
Sobre o contrato chinês – não é projeto para perder. Há vantagens para os dois lados, os dois lados, repito. A China ofereceu alguns benefícios – não são benefícios extraordinários, nada disso. O governo chinês simplesmente decidiu oferecer algum suporte aos que participam do projeto. Nós, também, aceitamos fazer o mesmo. Assim o projeto tornou-se definitivamente lucrativo. Definitivamente.
Além disso, acertamos também uma fórmula para fazer preços, que não é muito diferente, se houver alguma diferença, da que se aplica nos nossos contratos com a Europa, exceto pelos específicos coeficientes para o mercado regional. É prática regular.
Também, ajudará a Rússia, que receberá e acumulará recursos gigantescos no estágio inicial do projeto, para começar a conectar nossas regiões do Oriente Extremo às grades de distribuição de gás, não só para exportar gás pelo gasoduto. Assim teremos condições para dar o passo seguinte – muito importante. Poderemos conectar um ao outro os sistemas ocidental e oriental de gás, e rapidamente recanalizar recursos numa direção, ou noutra, conforme o mercado internacional. Isso é muito importante. Sem isso, nunca conseguiríamos conectar o leste e o extremo leste da Sibéria ao sistema de distribuição de gás.
Vê-se portanto que o projeto carrega muitas vantagens mútuas. Para nem falar de que se trata de gigantesco canteiro de obras, que criará novos empregos e renda em todos os níveis e fará reviver o Extremo Leste da Rússia e toda a região.
O que se vê é que Putin insistiu em chamar a atenção para o fato de que a cooperação Rússia-China no campo da energia foi determinada exclusivamente por considerações econômicas e de interesse para os dois lados, com mútuos benefícios. De modo bem sutil, deixou bem sinalizado que Moscou não está, de modo algum, diluindo os laços "energéticos" que a ligam à Europa; que está, de fato, criando um elo entre seus sistemas ocidental e oriental de gasodutos, pelos quais poderá "rapidamente recanalizar recursos numa direção, ou noutra, conforme o mercado internacional".
Em termos políticos, Putin disse também ao correspondente da rede Xinhua, na conferência de imprensa, que a cooperação com a China no Conselho de Segurança da ONU é "elemento importante para estabilizar a situação internacional", e que há "muitos interesses comuns no cenário internacional, como a estabilidade internacional". Ponto. Parágrafo.
O que não foi dito foi que a última coisa na cabeça de Putin, durante as três horas que durou aquela conferência de imprensa, seria pedir que a China "resgatasse" a Rússia. Claro que, sem dizê-lo nas linhas, mas operando nas entrelinhas, Putin também reduziu a lixo a interpretação chinesa alarmista da "crise" russa.
Interessante: o segundo editorial de Global Times, publicado hoje (22/12/2014), quatro dias depois da conferência de imprensa de Putin, já não apresenta a Rússia em tom e termos apocalípticos. Avalia que, ao contrário, se sanções jamais funcionaram contra Cuba e Irã, por que e como seriam "a palha que quebraria o lombo do camelo" no caso da Rússia?
E destaca:
O poder de Vladimir Putin não poderá ser derrubado simplesmente pela inflação atual. A Rússia já conheceu muitos altos e baixos, e tem a tenacidade necessária para sobreviver a riscos e perigos.
O comentarista também deixa de lado o tom "superior autoritário" do primeiro editorial, para admitir que:
A Rússia não quer ser vassalo da economia chinesa, e a China deve compreender claramente essa linha vermelha (...) A China deve manter atitude positiva para ajudar a Rússia a vencer essa crise. (...) Mas o que façamos para ajudar será limitado por o que a Rússia nos solicite.
A impressão absolutamente inevitável é que os editorialistas chineses do PCC caíram, de início, na armadilha das previsões ocidentais catastrofistas para a Rússia. Mas depois, tendo lido os pensamentos de Putin durante a conferência de imprensa da 5ª-feira (18/12/2014), conseguiram reagir e rapidamente escaparam da armadilha.
Por outro lado, o comentário do Global Times do dia 22/12/2014, também busca delimitar um território intermediário entre EUA e Rússia. Lá se lê que
(...) a China deve atuar como mediador ativo entre Rússia e EUA, ou terá de encarar inevitáveis riscos geopolíticos, se o conflito entre aqueles países escapar de controle.
Fato é que jamais passaria pela cabeça de Moscou convidar a China para mediar suas diferenças com os EUA. Moscou sabe muito bem que China e EUA acabam de assinar em Chicago negócio monstro de comércio e investimento, que equilibra maior acesso para empresas norte-americanas, com movimento recíproco, de Washington, que está eliminando restrições a exportações de alta tecnologia para a China. (China Daily).
O vice-premier chinês Wang Yang disse aos seus anfitriões nas negociações em Chicago que China e EUA "Têm muito mais interesses comuns, que diferenças", e que a cooperação econômica e comercial entre os países prosperará, se os dois países "buscarem terreno comum, enquanto vão superando as diferenças" em espírito de respeito mútuo, compreensão mútua e mútua acomodação. (China Daily).
Por falar disso, a divergência entre as perspectivas russa e chinesa sobre políticas dos EUA é, de fato, bem clara. Putin repetiu na conferência de imprensa, que os EUA alimentaram a insurgência na Chechênia, instigaram os rebeldes e seguiram política pouco amistosa para com a Rússia, com o objetivo de cercar, sitiar e enfraquecê-la. Nas palavras de Putin;
Não foram eles que nos disseram, depois do fim do Muro de Berlin, que a OTAN não avançaria para leste? Fato é que a expansão começou imediatamente. Houve duas ondas de expansão. Já não há muro? É verdade. Agora é muro virtual, mas o avanço prossegue. E o sistema de defesa antimísseis sobre nossas fronteiras? Não é um muro?
Vejam... o avanço contra as fronteiras russas nunca parou. Essa é a principal questão hoje, das relações internacionais. Nossos parceiros não pararam de avançar. Decidiram que teriam sido vencedores, que seriam império, e que o resto do mundo ficava como vassalos deles, e que tinham de mantê-los sob cerco.
É claro que a China não comunga dessa fúria existencial. Dito em outros termos, os EUA com os quais Putin tem de negociar e conversar não é o mesmo país com o qual o presidente Xi Jinping da China sonha com construir novo tipo de relacionamento.
Não surpreendentemente, Putin convidou o líder da República Popular Democrática da Coreia (RPDC) Kim Jong Un para visitar Moscou em maio próximo (2015) e participar das cerimônias do 70º aniversário da derrota da Alemanha nazista, pelo Exército Vermelho soviético.
O convite surge no momento em que as relações entre China e a RPDC atingem um pico muito negativo. Xi ainda não visitou a RPDC e ainda não se encontrou com Kim como presidentes; de fato, em julho/2014, Xi visitou a Coreia do Sul e não foi a Pionguiangue.
MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Oriente Médio, Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de geopolítica, de energia e de segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu e Ásia Times Online, Al Jazeera, Counterpunch, Information Clearing House, e muita outras. Anima o blog Indian Punchline no sítio Rediff BLOGS.
Tradução de Vila Vudu.