Não vou escrever este artigo.
Tudo o que vou escrever não terá sentido.
Nunca detestei tanto escrever assim. Já não há palavras, já não há nem sequer raiva. Sinto-me morta, cheirei tanta morte enquanto estive escondida atrás da tela do computador que agora me sinto morta também.
Nunca senti que escrever pode ser um ato assim tão fútil, nunca detestei a minha fuga nas palavras, tão feio o som de teclado: bom bom bom! Prefiro mil vezes ouvir o som das bombas a cair nas nossas cabeças, todos nós somos culpados neste massacre e em muitos outros que já aconteceram.
A minha solidariedade com o meu povo palestino em Gaza não tem sentido, tão fútil parece esta palavra "solidariedade" perante as vidas humanas que deixaram de ser vidas. Estamos aqui nesta parte do mundo, partilhamos uma foto ou duas no Facebook de crianças aterrorizadas e pedaços de corpos estilhaçados de mulheres que foram um dia muito lindas, largamos uma lágrima ou duas, desligamos o computador e depois vamos à praia, no máximo participamos numa manifestação de "solidariedade" com Palestina, jantamos, bebemos um copo de vinho, vimos televisão e fazemos amor.
Também em Gaza havia amor, mas já morreu. Foi atingido por uma bomba israelita e ficou completamente em pedaços, estilhaçado e completamente queimado, o amor tornou-se cinza e foi pisado por tantas pessoas enquanto fugiam da morte.
"Também nós amamos a vida quando podemos." disse o poeta palestino Mahmoud Darwish. Mas já não podemos. Já não há vida. Já não há amor. Em Gaza tudo foi morto, assassinada, massacrado.
Não consigo escrever este texto. Este texto não deve ser escrito, não faz sentido. Desde o momento em que comecei a escrever até agora já mudou tantas vezes o número das mortes que caiem como as flores numa tempestade de chuva de fogo. Queria partilhar histórias de amor em Gaza, de coragem, de resistência e de luta para a liberdade. Mas já não há. Tudo morreu em Gaza. Todas as palavras morreram em mim.
Não deveria ser eu a escrever o artigo. Quem deveria escrever este artigo já morreu.
*Shahd Wadi é palestina residente em Portugal e dedica-se à pesquisa do feminismo sob ocupação. Defendeu a tese intiulada "Feminismos dos corpos ocupados: As mulheres palestinas entre duas resistências", na Universidade de Coimbra.
Fonte: A Comuna