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sombras chinesas1Galiza - PGL - [Isabel Rei Samartim] Paris, 1913, Théâtre des Champs-Élysées. Um tumulto se eleva na plateia durante a primeira representação do balé A Sagração da Primavera.


Os autores e promotores da obra, Stravinski, Nijinski e Diaghilev, junto com músicos e bailarinos, são espancados pelo público. Algo tem levantado a ira da gente, algo que não é tangível mas que se pode cortar com faca. Durante bastante tempo lê-se este episódio como um rejeitamento social do novo estilo de composição, por ser Stravinski um representante da vanguarda musical da época. Meses antes na Viena, Arnold Schönberg e Anton Webern, outros vanguardistas, eram tumultuados pelo mesmo motivo com intervenção policial incluida. Hoje, alguns analistas situam a origem do escândalo da Sagração não tanto na música e mais na coregrafia do excelente bailarino russo Nijinski, na suspeita de o escândalo ter sido provocado realmente por um affaire amoroso entre o Nijinski e o empresário promotor Diaghilev.

Todas as representações artísticas, em quaisquer das suas variadas formas, guardam sempre uma tensão com a realidade que se vai diluindo a medida que essa realidade se transforma. Por isso é doado entender as que falam sobre o que nos acontece na vida quotidiana, como Rosalia nos Cantares. Diz Lispector que a arte, ou toca, ou não toca, e toca-nos mais quando de algum jeito nos reconhecemos nela. A realidade, essa ficção dominante em contínua transformação da qual tod@s em maior ou menor medida participamos, pode ser interferida pela ficção artística que sabe conectar com as necessidades sociais do seu tempo.

Esse é o grande sucesso do teatro e a chave que Shakespeare utiliza em Hamlet (1599-1601). Graças a uma representação teatral cujo argumento se parece muito com a realidade, ficamos a saber quem é o assassino do rei da Dinamarca. O assassino assiste à obra, ficando exposto a um argumento que lhe mostra o crime que ele mesmo cometeu. Por isso reage e da sua reação Hamlet deduz que ele é o assassino do seu pai. No âmbito do cinema, é o filme Noviembre(Achero Mañas, 2003) onde os protagonistas estudantes de teatro querem fazer um teatro da gente, do quotidiano, uma ficção artística que se parece muito com a realidade, que a toca com tanta intensidade que provoca as emoções mais chocantes. Na cena final o ator protagonista perde a vida no palco pelo disparo histérico dum policial que depois duma posta em cena delirante já não diferencia a realidade da ficção.

Os choques entre as ficções artísticas e a ficção dominante chamada realidade são constantes. Essa é a grandeza da arte, o que nos faz pensar, sonhar, criar, amar. E também o que nos pode condenar a ser espancadas, baleadas ou dar com os ossos numa prisão qualquer. Isto último aconteceu nestes dias de Entrudo em Madrid aos intérpretes duma obra de teatro de monicreques(*). Na hora da redação destas notas, por fortuna, os artistas já foram libertados só depois de cinco dias de cárcere sem fiança, com a acusação de fomentar o ódio, obrigação de se apresentar no julgado todos os dias e proibição de sair do país. Roubar à mão-cheia na Espanha sai mais barato.

Os cómicos despregavam, em plena celebração carnavalesca, uma história clássica no ramo do teatro de títeres e utilizavam os recursos clássicos do grémio como é dar e levar malheiras entre bonifrates de trapo. Longe de preferir um modelo mais pacífico para a relação entre marionetas, o que levantou as primeiras críticas foi que as pancadas fossem dirigidas aos bonecos representantes da ordem social tais como autoridades, juízes, freiras e polícia. Mas o cúmulo, que deu pé à aventura judiciária posterior, foi a exibição duma palavra proibida e aqui é imperativo esclarecer que na nossa ficção chamada realidade há palavras proibidas por lei.

Não pode atribuir-se ao espectáculo uma falta de adequação às despertas mentes infantís que nada acharam de estranho; a existência duma arte “infantil” está ainda por demonstrar, sendo que numerosos autores não admitem a etiqueta salvo que as artistas sejam as próprias crianças. Tampouco pode aduzir-se excesso de violência, pois a violência em grau superlativo está presente em todas as programações infantis da televisão, vídeo-jogos, mesmo nos contos clássicos até ao ponto de se fazerem reinterpretações atualizadoras que confrontam violências como a machista. Ademais, podemos concluir que as crianças devem conhecer o mundo em que vivem. Devem entender que na judicatura, às vezes, há juízes que prevaricam, leis injustas e pessoas que defendem a liberdade de expressão. Que a repressão exercida pelo fundamentalismo religioso ou administrativo não é saudável e o interessante é saber detectá-la para defendermo-nos dela. É bom que as crianças aprendam o jogo malvado que o poder tece para manter a população sob controle. Que às vezes o que se apresenta como “independentismo”, “comunismo”, “acratismo” é uma bruxaria libertária, igualitária e digna. E o que se apresenta como “autoridade”, “polícia”, “igreja”, muitas vezes não passa de caciquismo, abuso e charlatanaria vestida de seda.

O conflito desemboca, igual que cem anos atrás em Paris e Viena, numa agressão aos artistas. Só que nesta ocasião, em vez de apupos e lançamento de ovos com detenção dos airados críticos, os detidos são os próprios autores. De novo, é devido esclarecer que nesta ficção dominante chamada estado democrático há uma lei que proibe exibições de cartazes a conterem palavras proibidas, que são todas as que possam ser ligadas duma ou doutra maneira com atividades terroristas reais e demonstráveis, ou irreais e indemonstráveis, exemplificando à perfeição como certas realidades são autênticas ficções políticas ad hoc. Dada esta situação legal, o juiz aplica a lei com toda dureza e declara a prisão imediata para os artistas porque quem está habituado a utilizar as instituições no seu proveito não tem inconveniente em justificar qualquer meio institucional para conseguir seu fim.

Mas qual era o fim? Impingir um castigo desproporcionado a dous desconhecidos titereteiros? Ou aproveitar a ocasião para bombardear os elementos políticos da atual Câmara madrilena? Ambas as cousas se deram. Não podemos saber com certeza como foi a sucessão de acontecimentos porque uma regra não escrita da nossa realidade diz que nunca devemos confiar na Falsimédia. Houve várias denúncias e alguma delas premeu a tecla da lei antiterrorista que ao ver vulnerada uma das suas normas começou a funcionar com o desfecho que já conhecemos. A ocasião faz o ladrão. A partir daí assistimos a um ataque político à nova Câmara Municipal madrilena em virtude da aplicação duma lei abusiva que castiga ideias e não factos delictivos. Essa lei, aprovada para perseguir as dissidências ideológicas na questão territorial e que por isso foi aplicada principalmente a galegos, bascos e catalães, tem no episódio dos artistas em Madrid uma repercussão até agora inédita, porque alarga o espaço de ação da lei até abranger a perseguição de quaisquer comportamentos dissidentes sem importar se ligam ou não a questões territoriais.

Poucas das reflexões que se podem ler nestes dias nos meios espanhóis atendem na justa medida a importância de existir uma lei tão abusiva num estado que se diz democrático. Porém, foi a existência dessa lei e sua aplicação por parte do juiz o que possibilitou o escândalo, as notícias e o dano feito aos artistas e à Câmara. Parece que de tanto ignorar a questão territorial em Madrid já não lembram que desde há anos temos pessoas no cárcere condenadas por atuações de juizes e interpretações de provas semelhantes às desta recente pantomima. Para o poder as dissidências são todas iguais sem distinção de procedência. Seria bom que este desgraçado episódio servisse para despertar a sensibilidade a respeito de todas as injustiças cometidas em nome dessa lei antidemocrática. E remato com um desejo: Que a solidariedade mutua faça nascer o dia em que pessoas como Antom Santos, Maria Osório ou Carlos Calvo não tenham que sofrer mais a injustiça duma condena de trapo, com argumento medieval, interpretada pelos fantoches do regime.


(*) Monicreques: Títeres, bonifrates, marionetas, fantoches.

Isabel Rei Samartim

Mulher, música guitarrista, galega. Pensa que a amizade é uma das cousas mais importantes da vida. Aprendeu a sobreviver sem o imprescindível. Aguarda, sem muita esperança, o retorno do amor. Entanto isso não acontece, toca e escrevinha sob a chuva compostelana.


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