Diário Liberdade – Mateus, no início deste ano ocorreu o Massacre do Pinheirinho, em São José dos Campos, no estado de São Paulo e, no final do ano passado, a Polícia Militar de Belo Horizonte, a mando da Prefeitura, iniciou o despejo da comunidade Zilah Spósito. Conte-nos um pouco sobre a história da ocupação Dandara e sobre a questão do despejo, que é vista como iminente pelas autoridades belo-horizontinas.
– A história da Dandara começa um pouco antes do dia da ocupação, quando movimentos sociais ligados à luta por moradia na cidade começam a procurar terrenos vazios para ocupar como uma forma de protesto contra o déficit habitacional no município e a falta de políticas efetivas para resolver o problema. Após avaliar as possibilidades, na madrugada do dia 9 de abril de 2009, vários movimentos sociais – MST, Brigadas Populares, Fórum de Moradia do Barreiro, Comissão Pastoral da Terra, entre outros – juntos a cerca de 150 famílias sem-teto, com renda de 0 a 3 salários mínimos, ocupam um terreno de 315 mil m² próximo à região da Pampulha, no bairro Céu Azul. A área pertencia à Construtora Modelo, que, na época, possuía uma dívida com a prefeitura de 2,2 milhões de reais de IPTU relativo ao terreno (hoje a dívida está sendo negociada na justiça e a empresa alega que não pode dar informações sobre essa quantia). Proprietária do local há cerca de 12 anos, a Modelo não havia construído nenhum empreendimento no terreno, onde existia apenas uma cerca e até algumas pessoas morando lá em meio a área preservada.
Com a invasão, houve todo o processo de tentativa de despejo, pressão policial, relatos de abuso de autoridades e, é claro, a disputa judicial. O fato é que, com a ação da polícia, que chegou até a pousar com helicóptero no terreno para intimidar as famílias sem-teto, a comunidade Dandara foi ficando conhecida na mídia e, junto com a alta demanda habitacional de Belo Horizonte, e mesmo de Minas Gerais, várias pessoas foram chegando lá. Enquanto os organizadores e as famílias que participaram do início da ocupação iam resistindo, com o apoio de advogados de movimentos populares que a todo momento conversavam com a polícia para evitar um despejo sem mandado judicial, o número de pessoas que chegavam à comunidade Dandara não parava de crescer.
Em uma semana eles chegaram a mil famílias, o que levou o movimento a ter que se desdobrar para, não apenas conseguir ficar no terreno, como também se organizar de modo a não virar mais uma favela no meio da cidade. Esse número de pessoas que foram atrás de seu pedaço de terra na Dandara é revelador de como nossas políticas habitacionais, nos âmbitos municipal, estadual e federal (houve gente de outros estados indo para lá também) são insuficientes para lidar com a maior parcela da população vítima do déficit habitacional, que são as famílias de 0 a 3 salários mínimos (correspondem a cerca de 90% do déficit habitacional do país, segundo pesquisa da Fundação João Pinheiro em 2008). Ao mesmo tempo que é revelador do fracasso das políticas habitacionais, esse grande "contingente" que acabou se instalando na Dandara foi essencial para sua resistência, pois tanto a polícia quanto o Governo de Minas e demais autoridades sabem que uma desocupação de tamanhas proporções tem um peso político muito forte, podendo trazer repercussões muito negativas, como o caso do Pinheirinho.
Diante disso, o fato é que, após anos tramitando na justiça, com várias sentenças a favor e contra a reintegração de posse sendo anuladas, o processo veio se desenrolando, até então, sem muitas perspectivas para a Comunidade, que perdeu a disputa em várias instâncias e não conseguiu chegar a nenhum acordo com a Construtora. Chegaram até a acontecer tentativas de negociação entre a Modelo e a Dandara mediadas pela Justiça, e a construtora cogitou, inclusive, construir apartamentos financiados pelo Programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) no terreno, junto com o condomínio que ela alegava estar planejando construir há 12 anos e que só não havia saído do papel (segundo ela) devido a dificuldades em conseguir licenciamento ambiental junto à prefeitura. Infelizmente, a negociação não deu certo, pois os apartamentos que a Modelo ofereceu não seriam suficientes para toda a população da Dandara, sem contar que, para iniciar as obras, tanto dos apartamentos do MCMV quanto do condomínio que ela pretendia fazer no local, a construtora queria que os moradores saíssem do terreno. Sugestão que eles não aceitaram, pois, mesmo com a construtora se comprometendo a conseguir um local para as famílias nesse período, os moradores da Dandara simplesmente não confiavam nela e tinham medo de perder o terreno caso saíssem de lá.
Outro ponto muito importante também, é que os organizadores da Dandara trabalham a todo momento junto às famílias a questão da importância dos direitos deles, sobretudo no que diz respeito à moradia adequada. Por isso, muitos moradores ali simplesmente não aceitavam trocar o pedaço de terra que haviam "conquistado" (pois a rigor eles ainda não têm a posse legal do terreno) por "apertamentos", como algumas pessoas de lá se referem aos apartamentos do Minha Casa Minha Vida, por entender que eles têm o direito a uma moradia mais digna e confortável do que os cubículos oferecidos pelo programa do Governo. Os moradores chegaram também a propor outros tipos de apartamentos para que eles ficassem no terreno e dessem a possibilidade de a empresa construir seu empreendimento no local, o que, é claro, a construtora rejeitou. Com a negociação sem resultados, foi expedido o mandado de reintegração de posse no final do ano passado.
Mas, no começo deste ano, ainda ocorreram mais tentativas de negociação, pois, graças aos defensores públicos que assumiram a defesa judicial da Dandara, a decisão do juiz que decidiu por expedir o mandado foi anulada e o caso foi remetido à 6ª Vara da Fazenda Estadual. Infelizmente, como eu concluí o livro no final do ano passado, não tive mais tempo de acompanhar de perto o decorrer do processo, mas sei que foi marcada uma audiência de conciliação no último dia 3 de abril, na qual a Modelo não se apresentou, e agora falta apenas a decisão do juiz que, até onde eu havia acompanhado o caso, não dispõe de muitas alternativas para evitar o despejo. Vamos torcer para que um episódio como o do Pinheirinho não se repita, até porque o perfil do governador Antonio Anastasia, mesmo sendo do mesmo partido, é diferente do Geraldo Alckmin, e acredito que ele não será tão inconsequente.
Diário Liberdade – O que te levou ao convívio com a ocupação e quais as consequências disto em sua vida?
– Meu interesse pela comunidade Dandara veio principalmente da minha trajetória na universidade, onde pude conhecer e até me envolver, em certa medida, com movimentos estudantis e sociais. Além disso, participei de diferentes projetos de extensão no âmbito da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG – que me deram a possibilidade de ter contato com a população carente de diferentes formas. Participei, por exemplo, do programa Polo Jequitinhonha, pelo qual viajei durante uma semana pelo Vale do Jequitinhonha para produzir reportagens que acabaram me colocando em contato com uma população ao mesmo tempo carente materialmente e rica em termos de cultura local. Aliado a isso, tive também a experiência de trabalhar por um ano no Projeto Manuelzão, produzindo uma revista que trata de questões ambientais, sem deixar de lado os problemas sociais que permeiam a problemática ambiental. Essa perspectiva que, inclusive, foi muito importante para eu perceber como que, diante dos muitos discursos "verdes" que se tem por aí, existe muitas vezes um processo de criminalização e mesmo de abandono das populações mais pobres, justamente as mais afetadas pelos problemas ambientais. Então, esses dois projetos, principalmente, me deram um importante embasamento, e mesmo amadurecimento, pois entrei em contato com diferentes realidades sociais sempre praticando e aprendendo como lidar com isso jornalisticamente.
Com tudo isso, acabei me interessando, cada vez mais, pelo jornalismo mais engajado socialmente e, como a UFMG abre a possibilidade para os alunos de Comunicação produzirem trabalhos "técnicos", como um livro-reportagem, para o Projeto de Conclusão de Curso, busquei alinhar as duas coisas, só me faltava encontrar um tema para explorar tudo isso. E foi graças a minha vivência com movimentos estudantis que fiquei sabendo das ocupações Dandara, Camilo Torres e Irmã Dorothy, realizadas no meio urbano para lutar pelo direito à moradia. Vi naquela situação, que na época eu mal conhecia senão pelo que alguns amigos me contavam, a oportunidade de fazer um importante e engajado trabalho jornalístico para dar voz àquela população excluída. Não posso deixar de citar também como a temática do desalojamento de famílias e os problemas urbanos veio ganhando mais destaque no jornalismo devido às obras para a Copa do Mundo e as Olimpíadas no Brasil. Mais do que aproveitar o momento em que essas discussões vêm à tona, procurei abordar o tema das ocupações tendo em vista os problemas sociais que elas representam por elas e que, mesmo sendo agravados com os megaeventos, merecem um esforço de compreensão específico, pois já existiam antes e vão continuar existindo depois da Copa e das Olimpíadas.
A partir daí, fiquei praticamente todo o ano de 2010 pesquisando sobre a Dandara e outras ocupações urbanas em Belo Horizonte (a proposta era trabalhar com as três, mas devido a um episódio de ameaça de morte às lideranças Camilo Torres e Irmã Dorothy acabei me limitando à Dandara). E, como era um trabalho acadêmico, também tive a oportunidade de estudar um pouco sobre a questão do déficit habitacional no Brasil e a lógica de segregação espacial, sobretudo nas grandes metrópoles do país. Tudo isso já foi, de certa forma, afetando muito meu entendimento acerca das ocupações e mesmo do direito à propriedade, tão importante para a nossa sociedade. Mas foi com o começo de minhas idas às ocupações, em meados do ano passado, que pude perceber o que é, de fato, pisar no chão de terra daquelas comunidades. É até difícil colocar em palavras como toda essa vivência foi me afetando, desde me dar conta do quanto nossa "democracia" tem pontos extremamente falhos em todos os níveis dos poderes que deveriam nos representar, até perceber o quanto nossas cidades são moldadas por uma lógica perversa da propriedade privada. Confesso que por muitas vezes fiquei incomodado ao andar pela cidade e ver todos aqueles edifícios portentosos que, no final das contas, eram apenas mais um reflexo de uma lógica segregadora. Até mesmo quando chegava em casa, eu por vezes sentia como os metros quadrados do lugar que eu vivo significavam um espaço tão precioso e tão intangível para tantas pessoas que, num país onde definitivamente não falta terra, têm que arriscar suas vidas por alguns metros quadrados.
Mas, se fosse para falar da maneira que toda aquela experiência me afetou, acho que eu poderia resumir em uma palavra: humildade. Isso é, em como é necessário saber o nosso lugar na hora de lidar com o outro, em como é necessário perceber a si mesmo, com todos seus próprios valores, para entender e poder se abrir a uma realidade tão diferente e desafiadora, principalmente para alguém que veio da classe média e nunca soube, de fato, o que é passar pelo medo de simplesmente não ter um teto onde morar. E isso me afetou não apenas pessoalmente, como também profissionalmente, pois, certamente posso dizer que aprendi sobre jornalismo naquele ano tanto quanto, ou até mais, do que nos outros anos de curso superior. Chega a ser assustador você pensar no tamanho da responsabilidade de um jornalista, que está sempre retratando o outro, e como, muitas vezes, se vê no jornalismo cotidiano uma série de preconceitos e tipificações das pessoas e das situações como se o jornalista fosse uma "autoridade da verdade", se esquecendo de uma condição básica para a alteridade que é a humildade.
Diário Liberdade – Quais as maiores carências dos moradores da ocupação?
– É muito difícil falar das maiores carências ali, pois é uma comunidade tão grande e diversa que daria para elencar as dificuldades em categorias distintas. Mas, de forma geral, a carência mais assustadora que se vê lá é a condição de abandono daquelas pessoas, ignoradas ou, no mínimo, inferiorizadas por grande parte da sociedade e das administrações municipal, estadual e até federal. Estas três esferas de poder fazem muito pouco além de uma retórica vazia de que já existem políticas habitacionais (extremamente insuficientes ou, no caso do Governo Federal, limitadas já que ele alega ter os recursos do MCMV para ajudar, mas depende das administrações municipal e estadual para desapropriar o terreno) ou mesmo de que defendem uma saída negociada sem, de fato, assumirem a responsabilidade por aquela situação que decorre, antes de tudo, da falta de políticas habitacionais eficientes e que visem a promoção de cidades democráticas.
Então, a partir dessa condição é que surgem todas as carências que envolvem a falta de serviços básicos de saneamento, abastecimento de energia além do acesso à saúde e à educação (que eles conseguiram com muita dificuldade e mesmo relutância do poder público, chegando ao cúmulo de uma moradora falecer após ligar para o SAMU e não ser atendida, pois eles não "sabiam" como chegar lá). Para não falar também das próprias condições de muitas "casas" que existem lá, verdadeiros barracos montados com os mais diferentes materiais e que te fazem sentir em um cenário extremamente desolador e, no mínimo, absurdo em pleno século XXI.
Diário Liberdade – As ocupações em geral enfrentam diretamente a problemática da propriedade privada. Como você vê a luta de Dandara a partir desta perspectiva?
– A luta da Dandara e de tantas outras ocupações existentes pelo país afora é, antes de tudo, uma forma de denunciar a contradição gritante da lógica urbana brasileira, que simplesmente possui mais espaços vazios (propícios para habitação) do que pessoas necessitando de moradia, conforme mostram os estudos da Fundação João Pinheiro. Então, mais do que a questão da carência e da pobreza dessas famílias, trata-se de uma forma de denunciar e buscar fazer valer um princípio fundamental da nossa Constituição que é o da função social da propriedade. Basicamente, esse princípio postula que toda propriedade, rural ou urbana, móvel ou imóvel, tem que ter alguma função para a sociedade, seja de gerar renda, emprego, ou servir para moradia, de modo que o interesse privado daquele proprietário não prevaleça sobre ou mesmo prejudique os interesses coletivos. Logo, quando se fala de especulação imobiliária, está se falando exatamente de uma afronta a esse princípio constitucional, já que a especulação não necessariamente precisa de ter alguém residindo, ou produzindo qualquer coisa, no terreno para esperar ele valorizar. Essa mesma lógica, inclusive, ajuda a explicar os números da Fundação João Pinheiro de que "sobram" terrenos vagos em relação às famílias sem-teto ou, em outras palavras, prevalece o interesse privado do proprietário de valorizar o terreno em detrimento de uma causa coletiva tão essencial a qualquer democracia que se preze que é o direito à moradia.
Inclusive, um dos momentos mais marcantes na produção do livro foi exatamente quando eu me encontrei, por engano, com um tenente do Batalhão de Choque da PM de Minas Gerais que atuava justamente nos casos de reintegração de posse. Ele também ficou surpreso em saber que existem mais terrenos ociosos do que pessoas precisando de moradia e eu fiquei imaginando o quanto deve ter sido estranho pra ele pensar que, todo aquele trabalho que ele tinha de ficar viajando pelo estado para realizar ações de despejo poderia simplesmente ser evitado se tivéssemos políticas urbanas eficientes. Enfim, quando se fala em problemática da propriedade privada, como você colocou, acho que o maior aprendizado que tive nesse sentido foi de me dar conta do quanto existe uma lógica perversa e extremamente contraditória em um país que é o quinto do mundo em dimensão territorial, o sexto economicamente, e ainda tem milhares, senão, milhões, de pessoas sem moradia. Então, para se falar de um projeto de sociedade melhor, "país sem miséria", "Metas do Milênio" ou qualquer outro discurso que vá nessa direção de garantias dos direitos humanos é essencial termos experiências como a de Dandara, que deixam um grito, uma verdadeira marca no território para nos lembrarmos da importância dessa discussão. Com todas as dificuldades e entraves (Dandara, como tantas outras ocupações, certamente tem seus problemas e dificuldades para se organizar, se estabelecer, lidar com a violência e com aproveitadores que acabam surgindo nestes locais) essa luta se faz necessária para despertamos nossa consciência acerca da cidade que queremos e podemos construir.
Diário Liberdade – Ao contrário das tradicionais favelas brasileiras, a comunidade Dandara é uma ocupação com mais planejamento. Em que esta ocupação difere das favelas?
– Uma marca que Dandara tem desde seu início é que ela foi acompanhada por um arquiteto chamado Tiago Castelo Branco, que na época ainda era estudante de Arquitetura na PUC Minas, e aproveitou que o terreno onde viria a ser a Dandara era estudado por uma disciplina de seu curso para exercícios práticos e acabou se aproximando dos movimentos sociais envolvidos com a ocupação. Então, desde o início, ele, com o apoio de professores da Arquitetura da UFMG e da PUC Minas, buscou estudar o terreno e desenvolver uma proposta de habitação junto às famílias da Dandara. Foi um trabalho fantástico. Inclusive, ele chegou a me mostrar alguns de seus milhares de registros e os planos de traçar uma ocupação que não depredasse os recursos naturais do terreno, que possui dois cursos d´água no seu entorno. E é até curioso, pois, no início, ele propôs uma ocupação com habitações coletivas em lotes maiores e a população acabou preferindo lotes privados mesmo. Foi, então, que o Tiago teve que mudar toda sua proposta para adequá-la às necessidades que eles colocavam ali. Ou seja, foi uma experiência de planejamento da produção de moradias levando em conta as demandas daquela população para aquele espaço, o que inclui áreas destinadas para parques, centro ecumênico, creche, horta comunitária, entre várias outras demandas que ele buscou atender em sua proposta e que, definitivamente, nunca estariam em uma proposta como a dos "apertamentos" do MCMV, por exemplo. Tiago acabou desenvolvendo este trabalho como um Projeto de Conclusão de curso, e sua proposta de fazer ali uma ocupação sustentável foi até mesmo apresentada na Bienal de Arquitetura de São Paulo. E não é preciso ser arquiteto para perceber alguns elementos muito interessantes do planejamento de Dandara, como o lançamento "viário" (as ruas são todas de terra) e a rigorosa divisão dos lotes (todos iguais com 128 m²) quando se vai lá. Infelizmente, por diversos fatores (organização, dinheiro, desnutre outros), nem tudo que foi proposto no projeto do Tiago conseguiu ser estabelecido ainda, como as áreas divididas para serem espaço de lazer, a hora comunitária, entre outros.
Outro ponto interessante é que esse trabalho do Tiago acabou incentivando outras iniciativas no âmbito da própria UFMG e da PUC Minas, com o intuito de contribuir para a organização e o planejamento do terreno da Dandara. Muitos alunos de Arquitetura fazem visitas à comunidade e desenvolvem trabalhos para dar continuidade à proposta de Tiago e, no caso da UFMG, chegaram até a ser criadas disciplinas específicas sobre ocupações urbanas. Então, qualquer um que passar por lá e observar a Dandara, sem preconceitos, vai ver que existe ali algo diferente, mais planejado que os aglomerados que brotam nas grandes cidades brasileiras, e que tenta consolidar naquele terreno uma moradia digna e que leve em conta a construção coletiva daquele espaço, algo que não se vê, de fato, em nenhum projeto de habitação popular proposto pelos programas habitacionais do Governo Federal e de Minas Gerais.
Diário Liberdade – Como se dá a organização da comunidade? Sabe-se que há uma coordenação composta por 18 lideranças, entre elas as Brigadas Populares e a Comissão Pastoral. Qual o papel destas lideranças?
– Basicamente, existem essas 18 lideranças escolhidas pela própria comunidade, representando as 18 áreas divididas pelo planejamento habitacional proposto por Tiago, e todas elas se mantêm em contato com os apoiadores de fora que formam a chamada "Rede de Solidariedade" à Dandara. Como você citou, os principais apoiadores são a Comissão Pastoral da Terra, as Brigadas Populares e a Rede de Educação Cidadã (o MST esteve presente no início também, mas acabou tendo que sair da comunidade devido a questões internas do próprio movimento) que realizam assembleias e reuniões semanais. Na reunião, realizada todos os sábados, eles se encontram com as lideranças, no próprio Centro Comunitário, para discutir as necessidades da Dandara, o andamento da luta, e mesmo questões relativas ao convívio lá dentro (como eventos, pessoas que precisam de ajuda judiciária, problemas de convivência etc.). É muito interessante, pois eles debatem vários assuntos e tentam manter o convívio bem articulado e, nesse sentido, o apoio da Rede de Solidariedade é essencial, pois eles trabalham a todo momento com a educação popular. Essa educação consiste basicamente na formação daqueles moradores baseada na metodologia de Paulo Freire, para que eles possam se tornar atores sociais que reivindicam seus direitos e constroem sua própria proposta para a comunidade. Ou seja, esses apoiadores de fora da comunidade não tentam impor nem definir nada para os moradores, mas sim construir junto com eles o que é o melhor para a comunidade, levantando as demandas daquela população tanto em termos de luta quanto em termos de organização do espaço onde vivem.
Diário Liberdade – A ocupação tem recebido hoje apoios de bandas musicais, entidades de direitos humanos e ativistas belo-horizontinos em geral. Qual a importância dessa solidariedade?
– A Dandara, principalmente pela sua dimensão e a repercussão que ela conseguiu nas mídias sociais, sobretudo com estudantes universitários e os movimentos sociais de Belo Horizonte, tem recebido muito apoio e isso é essencial, pois mostra que a população, de diferentes maneiras, sabe da importância da luta daquelas famílias e não engole as desculpas do poder público, e mesmo da justiça, que não trazem uma solução, de fato, para a questão. Outro fator que também pesou muito foi o despejo do Pinheirinho, que sensibilizou a opinião pública e mostrou para os políticos que ações como aquela podem trazer sérias consequências, mesmo com os esforços das autoridades de tentar legitimar a iniciativa tratando-a como o "cumprimento da justiça".
Então, toda essa repercussão da Dandara ajuda a legitimar a luta da comunidade junto à população e mostra um lado muito positivo da nossa sociedade, que é essa mobilização social abrangendo diferentes setores da população. Se pensarmos nisso em uma dimensão mais ampla, é uma prova de como nossa população está se esforçando para construir uma sociedade mais democrática, e isso, certamente, deve trazer resultados positivos ainda que não imediatamente.
Diário Liberdade – Há algum apoio político institucional, por parte de deputados, vereadores, partidos, etc?
– Esse ponto é extremamente delicado, pois, durante a produção do livro, com as visitas que eu fazia à comunidade, não vi nenhuma iniciativa "oficial" neste sentido, o que me chamou a atenção, pois não era ano eleitoral e nenhum político, a rigor, pisou lá no período da minha apuração. O único político que percebi ser mais envolvido e ligado à Dandara é o vereador Adriano Ventura, do PT, que esteve na negociação com a Modelo, realizou audiências públicas para discutir os problemas no atendimento à saúde e à educação da comunidade e até propôs um projeto de Lei para tornar aquele terreno de interesse público. Mas, além desse caso do Adriano, que é ligado a setores da igreja que lidam com estes movimentos sociais (claro que ele me garantiu não ter interesses políticos com seu apoio à comunidade) é muito difícil falar de algum político que apoie, de fato, a Dandara.
Um episódio que me marcou, já no final da produção do livro, foi quando o PT de Belo Horizonte, diante das incertezas da manutenção da aliança com o PSB para a eleição deste ano, declarou apoio "oficial" à ocupação. Ou seja, o partido que por quatro anos apoiou o prefeito que sempre se negou a negociar ou mesmo receber representantes da Dandara, em vésperas de ano eleitoral decide "apoiar" a causa da Dandara. Então, não é difícil imaginar quais são os interesses de políticos que dão seu apoio à comunidade nessas situações, inclusive, durante a eleição de 2010 foram inúmeros os candidatos e representantes políticos que apareceram lá na Dandara mas que, depois, nunca mais voltaram... Até porque, não podemos deixar de pensar que a luta travada pelas ocupações urbanas representam um embate ao status quo e mesmo a alguns aspectos do sistema legal de nossa sociedade, ainda muito marcado por uma herança patrimonialista, e isso certamente não traz votos nem popularidade para os políticos tão preocupados em conseguir seus patrocínios para campanhas eleitorais, por exemplo.
Diário Liberdade – Em outubro os belo-horizontinos irão às urnas eleger seus vereadores e o candidato à Prefeitura. Márcio Lacerda, do PSB, é o provável candidato do PT e do PSDB. Quais as consequências para a ocupação caso ocorra a reeleição do atual prefeito, que é aliado dos tucanos e petistas?
– Como eu mencionei anteriormente, o processo ainda corre na justiça e depende da decisão do juiz, mas, certamente a reeleição do Márcio Lacerda não deve contribuir de maneira alguma para a luta da Dandara. Além de ter acabado com a já insuficiente política habitacional de Belo Horizonte, que, com o Orçamento Participativo da Habitação, propunha o financiamento de moradias populares de acordo com as demandas dos movimentos organizados nos chamados núcleos de moradia, Márcio Lacerda simplesmente tentou a todo momento criminalizar e até excluir os membros das ocupações de qualquer programa habitacional do município.
Só para se ter uma ideia, a proposta do OPH na época de sua criação, em 1993, era construir 6.668 unidades habitacionais e, até o ano passado, foram entregues 4.585 moradias, número que nem chega perto das 13 mil famílias na fila de espera do OPH e passam mais longe ainda do déficit habitacional de BH, que é de mais de 50 mil moradias. Então, é claro que o programa habitacional já tinha seus problemas antes de Márcio, mas com ele a situação chegou a um novo (e pior) patamar, e os próprios núcleos de moradia já não aguentam mais as "promessas" da prefeitura de recursos que nunca chegam. Isso sem citar os casos de membros dos núcleos que são cooptados pela prefeitura (muitos têm emprego no poder público municipal), desde antes do governo do Lacerda inclusive. E quando você olha as alegações da prefeitura de que essas ocupações desrespeitam a "fila" do programa habitacional do município, isso soa, no mínimo, ridículo. Os números estão aí pra mostrar que a "fila", a rigor, mal sai do lugar (se é que a população ainda acredita que vai conseguir as moradias) e que não é isonômica, pois todos sabem que existem casos de cooptação de lideranças dos núcleos, por isso as tentativas da prefeitura de criminalizar os movimentos que tentam, na base da luta, conseguir seu pedaço de terra, acaba se revelando uma forma de não admitir o fracasso das políticas habitacionais.
Então, as perspectivas quanto ao problema habitacional e as lutas das ocupações de BH não são nada promissoras com a eleição de Márcio Lacerda, e isso não sou só eu que estou falando, mas todos os especialistas e envolvidos, de fora da prefeitura, com a política habitacional do município com os quais eu pude conversar estavam pessimistas com o panorama. Contudo, como eu já mencionei antes, a luta dessas ocupações exige um engajamento e até um questionamento de um certo status quo da sociedade que não interessa muito aos políticos se envolverem para além daquela retórica populista de prometer ajuda em época de eleições e até de doar alimentos e outras coisas para essa população mais carente em período eleitoral. Por isso, acredito que, infelizmente, nenhum dos candidatos deve oferecer uma contribuição concreta para a luta de Dandara. Se com Márcio Lacerda as perspectivas não estão boas, as outras opções também não são nem um pouco promissoras em se tratando das lutas das ocupações.
Diário Liberdade – Você está escrevendo um livro-reportagem a partir de sua experiência com a ocupação. Conte-nos sobre ele. Está publicado?
– O livro foi produzido como trabalho de conclusão de curso para a UFMG que eu apresentei no final do ano passado e já até passou por algumas correções. No momento estou a procura de editoras para publicá-lo.