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Xoan Lagares gzGaliza - Quilombo Noroeste - [Denis Vicente] Xoán Lagares (A Coruña 1971) é professor no Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense (UFF) de Niterói, onde faz parte do Núcleo de Estudos Galegos.


Doutor pela Universidade da Corunha (2000), foi professor-leitor de galego na Universidad de Salamanca (Espanha) e posteriormente professor de Linguística Histórica na Universidade de São Paulo (USP). As suas áreas de pesquisa vão desde a linguística histórica até a sociolinguística. Nos últimos anos tem contribuído também ao debate em torno ao papel do galego além das fronteiras da Galiza.

1. Como um pesquisador galego acaba dando aulas na USP e na UFF? A emigração galega ao Rio e ao Brasil começa já no século XIX, e as organizações de emigrantes do Estado espanhol estão lotadas de pessoas nativas da Galiza. É o Brasil um destino natural para as galegas e galegos?

O único que posso dizer é que a vida dá muitas voltas e que nunca sabemos o que pode acontecer… Vim ao Brasil por motivos pessoais, num momento em que eu era professor-bolsista de galego em Salamanca, com a tese já defendida, e com poucas chances naquele momento de emprego estável do outro lado do oceano. O concurso na Universidade de São Paulo foi o primeiro que aconteceu quando já estava com os meus diplomas revalidados no Brasil, tentei sorte, sem muita esperança, apenas para tomar conhecimento do ambiente acadêmico brasileiro, e acabei passando. Foram dois anos de muito aprendizado lá. Mas eu continuava indo e vindo cada semana entre Rio e São Paulo. Exatamente, quando a minha filha estava para nascer foi aberto o concurso na Universidade Federal Fluminense, e com ele a oportunidade de morar e trabalhar definitivamente no Rio. Estou aqui desde então. 

Sem dúvida, o Brasil é sempre uma opção para as galegas e galegos. Não sei como isso era visto pelos primeiros emigrantes no século XIX, mas a língua facilita claramente a integração. 

2. Você faz parte do Núcleo de Estudos Galegos e tem participado de iniciativas com outros centros de estudos galegos no Brasil. Qual é o objetivo destes centros para a sociedade brasileira, e que interesse pode ter o trabalho que aqui se faz para as galegas e galegos do país?

Cada centro tem a sua história e sobre os objetivos comuns haveria que perguntar à Secretaria Xeral de Política Linguística. Na realidade, eles surgem por iniciativa pessoal de pesquisadores brasileiros, que em algum momento desejam manter esse vínculo com a Galiza. Não há muito planejamento estratégico do outro lado, e isso é um problema. Eu no NUEG da UFF tento contribuir para manter um espaço permanente de presença da cultura galega na universidade, bem inserido no contexto acadêmico. Penso que essa deva ser a nossa contribuição. Para as galegas e galegos que moram aqui, os centros podem constituir um vínculo importante com o país que deixaram atrás. Os nossos cursos costumam ser frequentados por emigrantes e filhos de emigrantes, e também somos chamados para participar de atividades da comunidade galega em Niterói. E estamos sempre dispostos a colaborar com o que for necessário.

3. Há interesse na comunidade acadêmica brasileira pela cultura, literatura e língua da Galiza? Em que âmbitos se tem contribuído mais à pesquisa nos últimos anos?

A Galiza e o galego ainda são amplamente desconhecidos pela comunidade acadêmica brasileira em muitos sentidos. Temos contra nós o fato de sermos um país pequeno e de fazermos parte de um outro Estado-nação. E no Brasil, como penso que deva acontecer em todos os estados nacionais do “novo mundo”, as reivindicações nacionais dos povos sem estado da Europa não são entendidas facilmente. Por outro lado, não contamos até agora na Galiza com governos que tivessem uma política clara no sentido de promover esse conhecimento no Brasil ou em outros países lusófonos. As iniciativas são mais de tipo pessoal ou correspondem a departamentos universitários e associações culturais ou acadêmicas, com algumas poucas exceções institucionais, como o Consello da Cultura Galega. Mas há, sim, um interesse genuíno, e sem preconceitos, no Brasil por parte de quem conhece a cultura galega.

Não contamos até agora na Galiza com governos que tivessem uma política clara no sentido de promover o conhecimento do galego no Brasil ou em outros países lusófonos.

A pesquisa sobre Galiza no Brasil desenvolveu-se mais, até agora, no âmbito da história da emigração e na literatura, sobretudo a medieval. A fundadora do nosso Núcleo de Estudos Galegos, na UFF, e do Centro de Estudos Galegos da UERJ, por exemplo, Maria do Amparo Tavares Maleval, é uma destacada medievalista brasileira, e muito tem contribuído para isso.

Sobre questões linguísticas a coisa é mais complicada. Uma grande conhecedora e divulgadora do galego no Brasil é Valéria Gil Condé, da USP, hoje coordenadora da Cátedra de Estudos Galegos dessa universidade. Mas a sensação de que lidar com língua na Galiza é como mexer num vespeiro, considerando as nossas liortas normativas, não facilita essa aproximação. De alguma maneira, é de conhecimento comum que quem falar qualquer coisa sobre o galego pode “apanhar” de algum dos lados em permanente disputa. É lógico que as pessoas não queiram “comprar uma briga” que não é propriamente delas. Agora em julho aconteceu a terceira edição de um congresso eminentemente brasileiro de linguística histórica em Santiago de Compostela, que considero uma espécie de divisor de águas nesse sentido, e a consagração simbólica do lugar do galego na historiografia da língua portuguesa.

Quem falar qualquer coisa sobre o galego pode “apanhar” de algum dos lados em permanente disputa. É lógico que as pessoas não queiram “comprar uma briga” [no Brasil] que não é propriamente delas

4. Coordenou no ano 2011, junto com Marcos Bagno, Políticas da norma e conflitos linguísticos, no que publicou também um artigo relacionando norma, poder e identidade. Como valora a construção do galego legítimo desde os anos 80 até hoje? Foi positiva para a normalização do galego na Galiza?

A institucionalização do galego foi complexa, como costumam ser todos esses processos. A construção de um “galego comum” é um processo histórico longo e conflituoso. No momento em que o galego adquire a categoria de oficial na Comunidade Autônoma da Galiza, a fixação normativa se torna uma necessidade. Acho que, independentemente das lutas de poder e dos conflitos de autoridade que estouraram naquele momento, e cujas consequências sofremos até hoje, é urgente pensarmos seriamente sobre o modelo de “planificação de corpus” que se aplicou e como esse modelo de “normalização”, seja qual for a perspectiva normativa adotada, autonomista ou reintegracionista, está condicionado pela língua “normal” que mais conhecemos os galegos, que é, sem dúvida, o espanhol. Coisas aparentemente banais, como a política de dublagem de filmes na televisão, a rigidez e a falta de flexibilidade dos critérios de correção, a obsessão delimitadora, que passou a ver a presença na Galiza das mais diversas formas de português como uma ameaça para a língua dos galegos, pouco contribuiram para criar dinâmicas positivas de reconhecimento e de valorização da língua. É como se fosse construído um espaço muito bem delimitado para o galego brincar de língua grande, mas sem sair do confinamento, numa espécie de parquinho para crianças. Penso que houve também, e ainda há, por parte de todos os agentes (embora só alguns tenham tido, obviamente, responsabilidade institucional nesse processo), uma evidente confusão entre língua e norma, ou pior, entre língua e ortografia. As provas de galego nos concursos públicos, em muitas ocasiões totalmente focadas em questões normativas destinadas a purgar recém inventados “dialetalismos” ou “lusismos”, é o mais claro exemplo dessa obsessão normativa que identificamos, no imaginario, com a “normalidade linguística”.

A oficialização da língua aconteceu em condições bastante adversas, com um governo sustentado por um partido que, no início, era contrário à própria Autonomia política, mas que nela medrou e que acabou fagocitando as suas instituições. A política linguística caracterizou-se nestes anos pela verticalidade, como indica Xaime Subiela, e pela baixa intensidade, como denunciava Anxo Lorenzo até não faz muito tempo, aliadas a um conflito normativo que manteve à margem da oficialidade agentes muito ativos e dinâmicos. Até o acordo de 2003, a norma considerada oficial pelo governo não contava com o apoio de uma grande parte dos professores de língua galega do ensino médio, e isso dá uma ideia de como essa verticalidade não fez bem à “normalização” linguística. 

A falta de flexibilidade dos critérios de correção, a obsessão delimitadora, que passou a ver a presença na Galiza das mais diversas formas de português como uma ameaça para a língua dos galegos, pouco contribuiram para criar dinâmicas positivas de reconhecimento e de valorização da língua. É como se fosse construído um espaço muito bem delimitado para o galego brincar de língua grande, mas sem sair do confinamento, numa espécie de parquinho para crianças.

5. Galego como língua autônoma ou como variante na Galiza do portugalego ou galego-português, língua internacional?

Tudo depende do que entendermos por “língua”. Após séculos de desenvolvimento autônomo, em condições históricas adversas, com o espanhol sobreposto durante boa parte desse tempo, não há como negar a “autonomia” da língua que falamos os galegos em relação às outras realidades do grupo portugalego. Cada uma delas também com sua própria história. Considerando que a norma linguística vai muito além da simples ortografia, também é óbvio para mim que existem, de fato, muitas normas sociais diferentes de uso da língua nesse grande e variado grupo linguístico. O mais razoável seria que o padrão não violasse a competência linguística que os falantes possuem em relação a elementos fundamentais da estrutura da língua, esses que ninguém espera até ir à escola para aprender e usar. Por exemplo, as crianças utilizam um sistema pronominal complexo antes de serem alfabetizadas. É absurdo que nesse momento alguém lhes diga que o que elas sabem não serve, que devem esquecê-lo e interiorizar para uso geral um sistema pronominal diferente. 

Por outro lado, não existe, nunca existiu e nada indica que vá existir uma língua internacional denominada portugalego ou galego-português. Também não existe uma norma-padrão internacional no âmbito lusófono, mas uma tradição padronizadora (“autoral”, porque não conta com a autoridade de nenhuma instituição) que tenta segurar as pontas da uniformidade normativa. No Brasil é uma tarefa malsucedida e polêmica porque essa tradição se afasta bastante da forma como as pessoas efetivamente falam e escrevem.

Para mim, a questão da “unidade” não passa necessariamente pela norma. É possível ter várias normas-padrão, construidas partindo do respeito ao conhecimento que os falantes possuem sobre a sua própria língua, e manter mesmo assim certa noção de unidade linguística que permita a intercompreensão e o diálogo com falantes de outras variedades. A ideia de unidade, que não deve ser confundida com “uniformidade”, constroi-se pela interação e não por meio da imposição de um único padrão, como um mesmo corset que deva oprimir todos os corpos (uns mais do que outros, como é óbvio, porque não todos os corpos são iguais).

Não existe, nunca existiu e nada indica que vá existir uma língua internacional denominada portugalego ou galego-português. Também não existe uma norma-padrão internacional no âmbito lusófono, mas uma tradição padronizadora.

6. Os discursos de aproveitamento do espaço internacional da língua habitualmente reclamam uma mudança ortográfica para o galego se aproximar à ortografia oficial do português no mundo. Acha que a sociedade galega está preparada para uma mudança deste tipo ou poderia gerar reações negativas e um aumento importante da insegurança linguística nas pessoas que estudaram o galego oficial nos últimos 30 anos? É possível um melhor aproveitamento do galego no âmbito internacional sem uma reforma normativa?

No momento eu defendo um bi(ou tri)-normativismo flexível, por dizê-lo de alguma maneira. Tendo como objetivo a socialização do acesso a diversas formas de português, podem ser feitas coisas sem mexer agora na norma: a introdução do português (qualquer um) no ensino, como disciplina, e a integração da diversidade lusófona no próprio ensino do galego. Penso que o poder público devia tomar medidas, em todas as instâncias, para fazer normal a presença de bens culturais em português na Galiza, no cinema, no teatro, na televisião, nas rádios, etc. O argumento do medo à dissolução ou à perda de identidade do galego por causa do contato com a diversidade portugalega é absurdo, do meu ponto de vista, porque só temos a ganhar com esse contato e porque a ideia de uma língua incontaminada não passa de ser um delírio purista. Por outro lado, já temos isso tudo, e em doses de cavalo, em espanhol, que é claramente uma língua diferente (embora próxima), e aqui estamos, ainda falando (do) galego. A presença do português poderia ser um contrapeso fundamental. O desenvolvimento da lei Valentim Paz Andrade é um passo importante nesse sentido.

O argumento do medo à dissolução ou à perda de identidade do galego por causa do contato com a diversidade portugalega é absurdo porque só temos a ganhar com esse contato e porque a ideia de uma língua incontaminada não passa de ser um delírio purista

7. Nas últimas décadas a perda de falantes do galego não parou. Que acha que se está fazendo mal na política linguística galega? Que propostas faria para que a situação pudesse mudar?

As dinâmicas sociais são complexas e nem todos os fatores são diretamente controláveis pelo poder político. Mas penso que as coisas mudariam muito com um governo que realmente acreditasse nas potencialidades deste país e da sua língua, trocando a baixa intensidade pela alta intensidade da política linguística, e a verticalidade pela horizontalidade, apoiando as iniciativas que surgem na sociedade, sem exclusões. O efeito social do uso normal do galego, e não apenas ritual, por parte dos representantes públicos também seria notável. E, mais concretamente, acho urgente voltar ao processo de desenvolvimento do Plano de Normalização Linguística aprovado pelo Parlamento, com a restauração imediata do Decreto do galego no ensino que foi derrogado pelo governo de Feijóo.

Acho urgente voltar ao processo de desenvolvimento do Plano de Normalização Linguística aprovado pelo Parlamento, com a restauração imediata do Decreto do galego no ensino que foi derrogado pelo governo de Feijóo

8. A Marea Atlántica de Xulio Ferreiro ganhou neste ano as eleições locais na Corunha, a sua cidade natal. Como sabe, é talvez a cidade galega onde a presença pública do galego é mais reduzida, além das já históricas polêmicas sobre o topónimo da cidade ou os topônimos deturpados nos rueiros. Há espaço para uma política linguística diferente no âmbito local? Que medidas aplicaria se tivesse a oportunidade?

Há espaço, sim, para uma política linguística diferente. Lembro perfeitamente que quando foi restaurado o teatro Rosalia de Castro, em tempos de Paco Vázquez, aproveitaram para retirar a placa que fazia referência às Irmandades da Fala. Essa era a tônica da política local em relação à memoria galeguista da cidade. Un concelho pode cumprir um papel importante e necessário elaborando planos locais de normalização linguística, com avaliações periódicas. Mas penso que o simples uso normal do galego pelo Concelho e seus representantes institucionais já é uma intervenção relevante, junto com a recuperação de nomes de ruas e bairros em galego. 

Agora brevemente…

O melhor e o pior do Rio e do Brasil: O melhor: a alegria do povo. O pior: a demofobia das elites. 

Um lugar no Rio de Janeiro: Difícil. Vão dois: Santa Teresa e a praia de Ipanema.

Uma palavra do galego-português: ‘atrapalhar’ e seus derivados. 

Uma autora ou autor galego e uma autora ou autor brasileiro:Rosalia de Castro e Clarice Lispector 

Un desejo para o futuro: Justiça social.


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