"Neste comunicado gostaríamos de informar nossa saída da Organização Anarquista Socialismo Libertário (Oasl). Foram inúmeros os motivos que nos levaram à saída, que aconteceu principalmente por discordarmos profundamente das ações que os militantes desta organização vem pondo em prática ao longo deste último período. Estas ações, contudo, não se restringem a este momento, tendo em vista que os problemas parecem ter se repetido com outras e outros militantes, embora o silêncio tenha vigorado até então. O encobrimento das violências realizadas por parte do quadro da militância foi o principal ponto de ruptura das relações internas, abalando os principais alicerces de uma organização anarquista, a confiança nas companheiras e companheiros e o cumprimento dos nossos acordos orgânicos.
Saímos da Oasl para permanecermos anarquistas especifistas.
Nós acreditamos na necessidade da organização política. Acreditamos em um anarquismo que foi e ainda é forjado no calor da luta vivida cotidianamente pela classe trabalhadora e oprimida, que não tem dono, nem se deixa limitar por nenhum direito autoral ou outra forma de propriedade privada.
Acreditamos que é nosso dever afirmar na prática cotidiana uma metodologia de trabalho político que reúna a ação direta, a solidariedade e o protagonismo popular. Isso significa jamais desvincular as táticas organizadas para as lutas que construímos no dia a dia de nossa estratégia de médio e longo prazo. Aqui não cabem pragmatismos eleitoreiros, não cabe uma vida privada enraizada na exploração de outras companheiras e companheiros, não cabe racismo nem machismo, não cabe hierarquização de "militantes de primeira, segunda ou terceira linha". Entendemos, por isso, que a retomada do debate sobre a relação entre a tática e a estratégia é fundamental para compreender os motivos que nos levaram à saída. Como também torna possível nossa defesa da estratégia do anarquismo especificamente organizado, que foi e é construída no interior da luta de classes, especialmente no Uruguai e no Brasil.
Quando retomamos o debate sobre a tática e a estratégia da organização anarquista (que de uma forma ou de outra estão em contato direto com as produções teóricas e ideológicas da federação Anarquista uruguaia), não o fazemos com o objetivo de "solucionar" certos desvios que possam ter ocorrido no interior do debate dentro da Oasl, até porque este debate não fazia parte da vida cotidiana da organização, mas se restringia ao círculo que se criou internamente entre os "militantes de primeira linha". Deste modo, a produção de um linha estratégica já vinha pronta e sistematizada por estes indivíduos, cabendo ao resto referendá-la.
Nosso objetivo consiste em (re)lembrar a forma e o conteúdo do debate, que, desde a década de 1970, vem sendo levado a cabo pela federação Anarquista uruguaia (fAu), a fim de que possa ficar claro como na sua ação cotidiana e na suas opções estratégicas, a Oasl nega na prática o que diz ser em "teoria". As ideias (práticas, valores, motivações, aspirações) que circulam dentro da organização produzem práticas que em nada se parecem com aquelas que devem apontar para nossos objetivos de médio e longo prazo.
Portanto, gostaríamos de deixar claro que este comunicado de saída não é um debate teórico, terreno "fértil" para que as pessoas deixem a militância no nível social para "se dedicarem ao político". Mas é, sobretudo, uma forma de elaborar politicamente as diversas patifarias que ocorreram na prática cotidiana da organização, e assim conseguir avançar na construção de uma outra organização que possa ter "outro enfoque, outra perspectiva, outra lógica, outras práticas, outros mecanismos. Outro ponto de partida"[1]. Daqui Partimos!
Segundo alguns materiais da fAu, este outro ponto de partida não é nada original, pois "essa é a nova civilização que buscaram os velhos socialistas. Este processo deve descansar e atrelar-se em uma férrea independência das classes oprimidas"[2]. E foi com o objetivo de romper com o caráter de conciliação de classes que vigora dentro da Oasl – em suas inúmeras formas – que primeiro tentamos construir esta mudança por dentro, e depois este processo nos levou à saída da organização. A saída ocorreu por entendermos que não era mais possível atuar no mesmo espaço em que o silêncio foi coletivamente imposto frente às diversas violações que companheiras e companheiros sofreram no interior da organização, realizadas por alguns militantes.
Já de início, assumimos aqui a responsabilidade de nomear o agressor machista Michel Navarro, pois sabemos que o silêncio opera socialmente de maneira a perpetuar as situações de violência. O que os movimentos feministas entenderam e, ao menos uma parte deles, buscou solucionar através da prática do escracho (com suas potências e limites) é que convivemos com uma série de mecanismos de silenciamento social das violências de gênero, os quais protegem os agressores ao empurrar as agressões para o âmbito da "vida privada" das mulheres. Assim como fazem os movimentos feministas, não vamos expor aqui as situações de violência que ocorreram, porque entendemos que contar o que aconteceu significaria tornar públicas informações que levam diretamente à exposição das mulheres agredidas. Optamos com tranquilidade pela exposição exclusiva do agressor.
Contudo, é fundamental dizer que tais mecanismos de silenciamento foram mobilizados pela Oasl para conter as denúncias internas contra o militante. Houve tentativas diretas de silenciamento de companheir@s, como também tentativas de descaracterização da violência de gênero, com sua redução a um mero traço de "personalidade explosiva" do militante. E mais grave do que isso: parte da militância da Oasl sabia de pelo menos mais um caso de agressão bastante sério praticado por Michel, mas optaram por não leva-lo às instâncias da organização – o que abriu espaço para novas agressões. A Oasl abrigou Michel por 5 anos e muitos dos que lá estão o consideravam um militante de "primeira linha", o que permitiu que a organização passasse um pano para ele por tanto tempo. O "receio" de expôr uma figura "importante" para a organização permitiu que outras mulheres acreditassem que um militante anarquista de uma organização política deveria ser uma pessoa de confiança.
A violência de gênero foi um dos graves problemas que encontramos na organização e o centro de nossa decisão de que chegara a hora de nossa saída. Mas também houve outros elementos, que buscaremos desenvolver agora por meio de um balanço político das práticas da Oasl, que nos permitiu concluir que suas escolhas táticas e práticas negam a própria estratégia do anarquismo especificamente organizado.
Como a tática da Oasl nega a estratégia do anarquismo especificamente organizado
"A estratégia proporciona somente linhas gerais para um período (...) é a tática que a encarna na realidade concreta, atual, que a traduz em fatos".
[De aqui partimos. Cartas de fAu, 1970]
A partir de alguns documentos publicados pela fAu, podemos notar que, desde a década de 1970, o debate acerca da tática e da estratégia vincula-se diretamente com a vida orgânica da organização e com seu "accionar" nos diversos níveis (político, social, ideológico). Por isso que as/os militantes da fAu constantemente lembram que a estratégia deve poder ser "vista" ou "lida" na ação da organização e de seus militantes, não sendo assim um "objeto" puramente teórico, desvinculado da prática política cotidiana.
Com isso podemos falar (se entendemos bem) que há dois sentidos possíveis para a noção de estratégia: o primeiro consiste na estratégia geral ou finalista, que pode ser entendida como uma "teoria dos aspectos mais gerais e de mudança lenta do sistema e uma política de ruptura dirigida até suas estruturas fundamentais". Já o segundo sentido pode ser entendido como a "atividade de uma organização política [que] supõe uma previsão do devir possível dos acontecimentos durante um lapso mais ou menos prolongado, previsão que inclui a linha de ação a adotar pela organização frente a esses acontecimentos de maneira a influir sobre eles no sentido mais eficaz e adequado"[3].
Esta atividade de previsão é o que poderíamos chamar de estratégia no sentido mais estrito do termo, ou melhor, a "linha estratégica" a seguir por um período determinado de tempo, pois esta "linha" deve valer para o período em que perdura a situação concreta. Claro que para este sentido mais estrito, a situação concreta pode experimentar mudanças abruptas que "obriguem" a organização a reformular sua forma de agir, caso queira atuar com eficácia capaz de "dar conta" do giro ocorrido na situação concreta (por exemplo, a imposição das ditaduras militares no Cone Sul). Isso significa dizer que, com as mudanças históricas, "não muda só a tática, mas também determinados aspectos, ou zonas da estratégia. A estratégia está concebida em articulação e interação constante com a tática". Embora "isto não implica modificar os objetivos perseguidos, os fins, nem os princípios ideológicos[4]".
Se, por um lado, a estratégia proporciona as linhas gerais para a ação num determinado período, "é a tática que a encarna na realidade concreta, atual, que a traduz em fatos". Podemos ver o forte vínculo que a estratégia tem com a tática: se esta última é o modo de colocar em prática as linhas gerais, objetivos, que estabelecemos para um período, a estratégia deve "ganhar vida no dia a dia e para isso é necessário uma tática adequada"[5]. Entendemos por "ganhar vida", no seu sentido mais comum da palavra, que a estratégia deve ser encarnada na prática, ou seja, inCORPOrada, tornar-se corpo das nossas ações (hábitos), para que possa ser vista (ou escrita) no nosso "accionar". É tornar presente (prática cotidiana), mediante as táticas adequadas, aquilo que deve ser a linha geral em um período para a nossa ação: a estratégia.
Nós temos aqui o núcleo central dos problemas que vivemos neste último período: determinadas escolhas táticas tem o efeito de transformar a estratégia, desviando-a dos objetivos que dão corpo e sentido ao anarquismo especificamente organizado. É neste marco que entendemos a construção de relações hierárquicas internas, o pragmatismo nas decisões políticas, os mecanismos de produção do perfil dos militantes que devem ingressar na organização, o silêncio e a conivência frente as diversas violações contra companheiras e companheiros que ocorreram dentro da Oasl.
Sabemos que remover o que há de velho e de sistêmico em nossas organizações precisa ser uma tarefa diária, que ao mesmo tempo possa apontar para o futuro que queremos. "Somos parte da constituição de uma conjuntura e seu aproveitamento depende do que tenhamos feito antes"[6]. Se em uma organização anarquista as dinâmicas de afinidade pessoal e de hierarquização das relações solapam sua estrutura federativa, impedindo seu funcionamento orgânico e favorecendo a manutenção de práticas machistas e de dirigismo, torna-se impossível a construção de uma inserção social que tenha como base os princípios que norteiam a ação anarquista organizada.
A ação de recriar dentro da Oasl, e, em nossa inserção social, a "diferenciação artificial, absurda e contraproducente entre 'quadros' de decisão e 'massas' de execução" significa manter uma prática profundamente enraizada por uma ideologia "que a burguesia tem se preocupado meticulosamente em injetar na classe trabalhadora", a mesma que sustenta "o embrutecimento, a indiferença, a passividade, o sentimento de inferioridade, o fatalismo e a obediência cega que o capitalismo administra com mentalidade empresarial"[7]. A adoção de tais práticas só podem gerar mais do mesmo.
Também se fazia presente na Oasl o raciocínio "estratégico" de buscar "escolher o inimigo de classe" que deveria ser enfrentado. Esta lógica orientava os debates internos e a ação de seus militantes a partir do pressuposto de que seria melhor (ou menos pior) combater o PT no governo do que o PSDB[8]. Assim, contrariando as deliberações construídas coletivamente no interior da Coordenação Anarquista Brasileira, a organização encarava como questão individual de cada militante se este deveria votar ou não, adotando um pragmatismo eleitoral que conduziu à "opção" do "voto crítico" em Dilma nas duas últimas eleições, chegando neste ano ao cúmulo de um dos seus militantes mais antigos fazer propaganda diária para a candidata do PT no seu perfil do "facebook".
Além de desconstruir as deliberações forjadas coletivamente na CAB, o pragmatismo eleitoral vai de encontro com um tema muito caro aos anarquistas, uma vez que o jogo eleitoral "cumpre com fins tendentes à legitimação do sistema", ao mesmo tempo em que opera como uma "ficção de participação popular, que simultaneamente cumpre com o papel de expropriação da soberania popular". Contudo, sabemos que esta fantasia que oculta os lugares de poder "não é ingênua, mas exigente. Para entrar nela é necessário se despir, tendo em vista que só cabem os que entram com roupas menores"[9]. Aqui está mais um exemplo de como a escolha das táticas tem o poder de rebaixar e alterar a estratégia do anarquismo especificamente organizado.
Num dos fragmentos dos materiais produzidos pela fAu e pela FAG (Federação Anarquista Gaúcha), pode-se ler que "toda organização que atue politicamente chega a uma concepção estratégico-tática a partir de certos pressupostos (implícitos ou explícitos) que são ideológicos, teóricos. Não pode existir uma estratégia apolítica, neutra ideologicamente"[10]. Neste sentido, não se trata de dizer que a Oasl "corrompe" as linhas gerais e determinadas que servem de guia para a ação das organizações anarquistas específicas e de seus militantes. Ao contrário, é na sua prática política que se elaborou uma determinada "concepção estratégico-tática", a partir de outros pressupostos ideológicos e teóricos. Tais linhas gerais e determinadas mais se parecem com a corrente marxista ou socialdemocrata do que com as linhas de ação das organizações anarquistas específicas.
Se não existe neutralidade no terreno da política (como também não existe no conhecimento supostamente "objetivo") não devemos suprimir a dimensão ideológica encarnada na análise social e na ação social, pois isso significa cair em "concepções emanadas do mero 'sentido comum', penetrado sempre de maneira inevitável pelas 'comuns' ideias e crenças difundidas pelos grupos sociais dominantes". Podemos ver estas "comuns ideias e crenças" dos grupos sociais dominantes sendo introjetadas, ou melhor, escritas no corpo da Oasl através dos valores, ideias e formulações que as/os militantes vem pondo em prática ao longo deste período.
Assim, contra um sistema social que produz em nós uma série de práticas afinadas à dominação e à exploração capitalista "é que atualmente a luta ideológica ganha dimensões estratégicas para a produção de um novo sujeito histórico, capaz de confrontar tais concepções dominantes com base na ação direta. A partir da ideologia, do poder das ideias, é que se pode mobilizar os corações e as razões, articulando-as coletivamente em uma expressão de resistência e de avanço na medida em que convoca distintos sujeitos sociais e os converte em agentes capazes de reescrever a história e conceber um novo mundo"[11].
A produção de um [novo] sujeito revolucionário
"Outro caminho, outra produção exige o socialismo"
[FAU]
Para nós anarquistas, o sujeito revolucionário não se restringe àquele tipo de trabalhador que, segundo a designação de muitas correntes da esquerda, ocuparia o centro da classe, ou seja o trabalhador proletário, produtor direto de mais-valia etc. Desde Copérnico sabemos que a Terra não é o centro do universo, da mesma forma que, mesmo que os iluministas, hegelianos e marxistas digam o contrário, a história não tem um centro[12]. Este pretenso "centro" da história não é senão o "centro" do desconhecimento ideológico. Para nós a ideologia não é uma imagem invertida da realidade (uma falsa consciência), mas "tem a ver com a própria constituição histórica dos sujeitos sociais".
Da mesma forma, para nós o trabalho político não parte de uma concepção de que nossa tarefa seja despertar ou revelar ao trabalhador uma consciência da exploração em que vive e que, a partir disso, este mesmo trabalhador empodere uma direção ou um partido, único agente "capaz" de pensar o processo revolucionário para além das necessidades imediatas e de curto prazo. "Assim, a ideologia tem a ver diretamente com a constituição histórica dos sujeitos sociais e com a forma como eles se expressam na sociedade. É algo bem distinto da noção de que a ideologia seja a falsificação da realidade, justo porque ela é um dos componentes fundamentais de qualquer realidade social"[13].
Quando falamos que o sujeito é uma produção histórica, dizemos também que produzir uma sociedade justa, com valores de cooperação, solidariedade, autonomia, ação direta, e liberdade passa necessariamente pela produção de novos sujeitos. É neste sentido que, junto com os materiais da fAu e da FAG, dizemos que o sujeito revolucionário não se encontra dado pela realidade, ou melhor, não é um dado da realidade.
Os dados da realidade, a exploração, a opressão, a humilhação que sofremos cotidianamente, os valores da classe dominante que são sistematicamente introjetados nas classes trabalhadoras e exploradas são produzidos pelos diversos aparelhos (ideológicos e repressivos) da classe dominante. Tais aparelhos produzem sujeição, obediência, hierarquia, mas também produzem revolta, raiva, dignidade pra dizer basta! E deste material que encontramos na realidade buscamos produzir um novo sujeito (revolucionário), com valores que possam se fazer carne, produzindo outras relações sociais entre nós, os de baixo.
Dessa forma, pode-se dizer que "outro sujeito histórico não virá do nada, não aparecerá como arte de magia, [mas] deve ser fruto de práticas que internalizem outras questões que entrem em choque com o dominante"[14]. Neste sentido, podemos compreender melhor por que aqui não há espaço para pragmatismo, para preconceitos ou relações de hierarquia e dominação. Vivemos na contradição de nosso tempo e das estruturas sociais que nos formaram. Agora é preciso agarrar com firmeza a tarefa diária de nos chocarmos contra aquilo que tenta produzir em nós, e dentro de nossas organizações, valores e práticas de dominação e exploração. Ser anarquista e ter uma mulher cuja função seja limpar seu banheiro e sua casa, seja ela assalariada ou simplesmente sua companheira, não pode ser uma opção para nós. Ser anarquista e viver da exploração de um companheiro trabalhador não pode ser uma opção para nós[15]. Ser anarquista e organizar um sistema de informações que auxilie o capital a encontrar melhores condições para sua realização, não pode ser uma opção para nós. Ser anarquista e permitir que a ambição e a vaidade norteiem nossas ações, não pode ser uma opção para nós.
A solidariedade, a modéstia, a autodisciplina entre os de baixo e a firmeza, a combatividade e a disposição contra os de cima precisam ser alguns dos valores encarnados na nossa prática cotidiana. Até que um dia não precisemos mais escrever sobre eles, pois eles deverão poder ser "lidos" a olhos vivos na ação política e social de nossas organizações e de nosso povo em luta.
Nos impressiona o histórico de ações ousadas realizadas pela fAu, como as ações armadas, expropriações, a ação direta em todos os níveis, o não-dogmatismo, a produção de uma organização política anarquista inspirada nas experiências históricas, mas também capaz de levar em conta o contexto particular da situação concreta da América Latina, reivindicando assim sua própria história de luta. A ousadia também pode ser vista na capacidade da fAu de elaborar teoricamente os mecanismos de produção que tornam possíveis a exploração e a sujeição nas sociedades capitalistas, mas que também produzem as formas de combatê-los.
A escola capitalista cumpre com uma função estratégica na produção dos mecanismos de sujeição e disciplinamento dos corpos, pelos quais se ensina a reconhecer e obedecer cegamente a autoridade instituída, seja ela o professor, a diretora, o patrão, o policial. A formação deste sujeito assujeitado nunca cessa, apenas se modifica a instituição responsável por inscrever a lei no seu corpo. Esta fábrica produz corpos assujeitados para o "mundo do trabalho" e, no caso dos incorrigíveis e desviantes, cadeias, colônias penais e mecanismos de controle psiquiátricos.
Da mesma forma que há uma escola que produz sujeitos assujeitados, a organização política anarquista também pode ser vivida como uma "escola de vida", na medida em que se aspira "que a Organização propicie o surgimento de valores éticos, de relações pessoais que sejam portadoras de nossos ideais. A organização deve chegar a ser uma escola ética, de acordo com os valores que nos propomos"[16]. Deste modo, há determinados valores que precisam ser combatidos e outros que precisam ser estimulados, e a organização política anarquista precisa poder construir interna e externamente uma "quantidade de práticas cotidianas, agarradas desde dentro por uma ideologia, [em que] se priorize a formação do companheiro"[17].
Portanto, conceber a organização como uma "escola de vida" também significa que é preciso buscar tornar carne (e corpo) os valores que aspiramos para uma nova sociedade. Deste ponto de vista, a carta de princípios da fAu afirma que é preciso que "prevaleça um clima interno que assegure a liberdade e o respeito para opinar, discutir, colocar problemas, refletir e resolver, entre iguais, sem hierarquias institucionalizadas, sem privilégios, sem linhas de obediência a vozes de mando"[18]. Foi a constatação da impossibilidade de combater estes valores que circulam no interior da Oasl que nos levou à saída da organização. Como também nos deu certeza e convicção de que só podemos combatê-los caso possamos colocar em prática as estruturas de funcionamento das organizações especificamente anarquistas, e assim por meio do seu corpo (político, teórico, ideológico, prático), que é sempre coletivo, poder inscrever outras relações que sejam de solidariedade, de autonomia, horizontalidade, combatividade na luta contra os de cima.
A ideologia é sempre prática, e se constrói nos comportamentos que o povo vai produzindo nos processos de luta. Construir um Povo Forte "requer um trabalho social constante e uma organização política que se articule a esse trabalho"[19]. Não se trata de buscar dirigir estratégica e taticamente os sindicatos e movimentos sociais como fazem as vanguardas, mas de atuar como um fermento de maneira a fortalecer sua combatividade e acúmulo político, criando força social para os processos de transformação.
Precisamos lutar para produzir em nós, os de baixo, a força social necessária para romper as prisões do sistema e pôr em funcionamento práticas de libertação que vão se produzindo e organizando na luta, além de fortalecer aquelas que já estão funcionando. Estas práticas precisam estar amarradas fio a fio com nossos princípios de autonomia, solidariedade, horizontalidade entre todas e todos os/as de baixo e a ação direta em todos os níveis. Devem estar amarradas também com o futuro que projetamos a partir de nossa estratégia, de uma sociedade livre da dominação e da exploração. O sujeito da mudança precisa ser produzido em nós por nossas organizações, dos de baixo, no próprio processo cotidiano da luta.
É por estes motivos que nós saímos da Oasl. Saímos para continuar sendo anarquistas especificistas. Poderá demorar um, dois, três anos... o tempo que for. Mas iremos reconstruir uma organização política anarquista séria que possa ser o suporte do processo revolucionário de construção do Poder Popular.
Neste 13 de maio saudamos a memória de todas/os lutadoras/es do povo brasileiro, que lutaram e ainda lutam contra os diversos cativeiros de nossa história!
Ousemos Reconstruir Palmares!
Liberdade e saúde a Mumia Abu-Jamal!
Liberdade a Vicente! Não se intimidar, não desmobilizar!
"A preguiça é inimiga da vitória, o fraco não tem espaço e o covarde morre sem tentar".
Venceremos!
Mafê, Mano e Ramon.
Notas:
[1] "A estratégia do especifismo". Entrevista com Juan Carlos Mechoso, fAu.
[2]"A estratégia do especifismo". Entrevista com Juan Carlos Mechoso, fAu.
[3] Documento Wellington Gallarza e Malvina Tavares: material de trabalho para a formação teórica conjunta fAu-FAG, 2011, pág. 29.
[4] Idem, fAu-FAG, 2011.
[5] Idem, fAu-FAG, 2011.
[6]Idem, fAu-FAG, 2011.
[7] Carta de Princípios de fAu.
[8] Gostaríamos de lembrar que, enquanto escrevemos este comunicado, o companheiro Vicente segue encarcerado, podendo ser condenado a 1 ano e meio de prisão por suposta "depredação do patrimônio público", acusação que criminaliza as companheiras e companheiros que construíram o intenso ciclo de lutas pela redução da tarifa em Porto Alegre, em 2013. Toda a criminalização ocorreu durante a gestão de Tarso Genro (PT) e foi acompanhada pela invasão policial do Centro de Cultura Libertária, pela apreensão de livros anarquistas e outras medidas altamente repressivas.
[9] "Tempo de Elecciones". FAU. http://federacionanarquistauruguaya.com.uy/2011/04/24/tiempos-de-elecciones/
[10] Idem, fAu-FAG, 2011, pág. 30.
[11] Idem, fAu-FAG, 2011, pág.8.
[12] Muitas correntes da esquerda (marxista) insistem em recolocar a Razão (leia-se, Deus) pela porta dos fundos da história. O exemplo da "revolução copernicana" apenas ilustra a maneira pela qual a ideologia religiosa (o cristianismo) organizava a "visão de mundo" da época, em que a própria concepção cosmológica (geocêntrica) respondia à organização política e social da Igreja Católica. Assim a Terra (enquanto criação divina) era vista como centro do universo. Hoje muitas organizações de esquerda querem nos fazer acreditar que a história tem um "centro", ou seja, que há um sujeito revolucionário "dado" pela situação concreta do "desenvolvimento capitalista". No entanto, o que essa versão traz consigo é uma concepção teleológica da história, típica herança da 3ª Internacional (stalinista). Deste modo, a revolução (que assume a forma de um juízo final) se torna inevitável, bastando apenas esperar o amadurecimento das famosas "condições objetivas". Assim, o "centro da Classe" mais se parece com um povo "escolhido", que, justamente por ser escolhido, assume a forma do rebanho, que ao se identificar entre si (enquanto rebanho), também se identifica com seu pastor, ou melhor dizendo, como o dirigente "comunista". A verdade (ou se quiserem, a consciência de classe) pra muitos dos marxistas vem de "fora" da classe trabalhadora. Assim, a Vanguarda teria a função de "despertar" o povo de seu sonho dogmático, conduzindo o processo de maneira "científica" (ou seja, com base no materialismo histórico e dialético). Caso contrário, se as classes trabalhadoras e oprimidas não fossem dirigidas pelo Partido, se perderiam em reivindicações que não vão além da satisfação de seu estômago. É justamente a divisão social do trabalho (Pastor x rebanho, Vanguarda x massas) que continua operando nas novas formas que a ideologia da classe dominante vem introjetando nas classes trabalhadoras e exploradas, por meio de seus diversos aparelhos (nos quais os intelectuais jogam uma importante função)."
[13] Idem, fAu-FAG, 2011, pág. 8.
[14] Idem, fAu-FAG, 2011.
[15] É muito relevante que este ponto esteja expresso na Carta de Princípios de fAu. É um princípio da federação Anarquista uruguaia não viver da mão-de-obra assalariada de outro/a companheiro/a, como tampouco é permitido viver no luxo do consumismo enquanto seus "hijos, pareja, compañeros de idea, amigos o viejos a cargo padecen la miseria"(Discurso de 10 anos da fAu – Gerardo Gatti).
[16] Princípios de fAu.
[17] Juan Carlos Mechoso."Acción directa anarquista: Una historia de FAU", Tomo IV, p.211.
[18] http://www.nodo50.org/fau/documentos/docum_actuales/anarq_como_crit_prop_y_accion.htm
[19] Idem, fAu-FAG, 2011, pág. 39.