Latuff, que recentemente esteve em Foz do Iguaçu, aproveitou para atravessar a Ponte da Amizade e conhecer a realidade de assentamentos sem-terra no Paraguai. "A realidade aqui do lado é muito séria, o latifundiário que já é uma praga no Brasil, agora está virando uma praga no Paraguai".
A afirmação do carioca espelha a atual realidade do campo no Paraguai, país de maior concentração de terras do mundo, que vive um processo de expansão do agronegócio por meio da "sojificação" de seus territórios, processo que tem aumentado a disputa de assentamentos e deixado os movimentos sociais do país em estado de alerta.
Paralelo ao crescimento vertiginoso da soja nos campos paraguaios diminui o índice de população que ainda vive no meio rural, tendo como vítimas principais os camponeses e indígenas. Esse processo de chegada da soja teve início durante a ditadura e se acentuou com a crescente chegada de empresas brasileiras nas últimas décadas.
"O latifundiário brasileiro vai para o Paraguai para deter alqueires e alqueires de soja, para plantar monocultura, encher o solo de agrotóxicos, enquanto isso os paraguaios, gente da terra, que fala guarani, luta por terrenos de dois a dez hectares e ainda são chamados de invasores dentro de seu próprio país", aponta Latuff.
Essa realidade dos conflitos agrários e os processos de lutas na América Latina estiveram em pauta na segunda parte da 'prosa' do Sítio Coletivo com Latuff, assim como sua experiência em assentamentos no distrito de Migua Guazú, no departamento de Alto Paraná (PY).
[Sítio] Esquerda na América Latina
[Latuff] Acho que o Brasil está passando à margem desse processo. Se formos comparar o [ex-presidente] Lula com o Evo Morales [Bolívia] ou Hugo Chávez [Venezuela] passa à margem, em que pese nem o Evo ou o Chávez sejam os "Che Guevaras da Bolívia e Venezuela", mas eles ainda foram governos mais radicais que o Lula no Brasil. Eu vejo com bons olhos o que está acontecendo, a América Latina passou muito tempo nas mãos de ditaduras fascistas bancadas por Washington, mas acho que o Brasil está à margem desse contexto, não consigo ver aqui a relação que o Chávez construiu lá. Por exemplo, a mídia por aqui demoniza o Chávez 24 horas por dia, porque será? Nem a mídia da Venezuela faz isso por lá, então porque será que o Chávez é o escolhido? Porque o Chávez fez algo que o Lula jamais teria coragem de fazer, ele mexeu com as concessões dos meios de comunicação, quando venceu a concessão da RCTV, ele não renovou e a "grita" maior foi no Brasil, dizendo que era "censura" (sic). Chávez abriu espaço para discussões importantes que aqui não consigo ver. O Evo da mesma forma, os dois abriram espaço para uma radicalização dos movimentos sociais e aqui foi uma conciliação, o movimento social foi engessado. O movimento que estava se radicalizando depois dos dois mandatos do FHC [Fernando Henrique Cardoso] acabou se apaziguando pelo regime do governo Lula.
Papel do Brasil
O Brasil, enfim, parece que está deixando de virar as costas para a América Latina - é ótimo ver a participação de tantos países do continente aqui [Encontro de Blogueiros] - o Brasil nunca se enxergou como tal, nosso referencial são os Estados Unidos e Europa, não é a América Latina. Quando o brasileiro fala do boliviano, do paraguaio, do equatoriano, ele torce o nariz, nossa referência sempre foi o norte. Um exemplo que fica claro, é como os países que sofreram ditaduras enxergaram a anistia aos militares no continente, na Argentina por exemplo, agora também no Uruguai. Enquanto isso no Brasil está sendo um custo para sair uma "comissão da meia-verdade", foi um custo para sair isso. Quando se fala em fazer justiça às vítimas da ditadura, a imprensa e os militares falam de revanchismo, falam em apurar crimes dos dois lados e a mídia alimenta esse discurso cretino de revanchismo, que tem que apurar os dois lados. Como se pegar em armas para libertar seu país de uma ditadura implantada por Washington fosse crime. Infelizmente estamos passando à margem dessas transformações que estão acontecendo na América Latina.
Visita ao Paraguai
Tirei um dia para visitar assentamentos dos sem-terra paraguaios, já tinha ouvido falar da situação agrária do Paraguai e queria ver de perto. Tenho um amigo que é militante do movimento em Foz e fomos junto com outro militante do PC [Partido Comunista] do Paraguai. Atravessamos a fronteira e fomos para o interior num lugar chamado Mingua Guazú, lá tem dois assentamentos, o 'Los Comunales' e 'Primavera'. A realidade lá, como vocês devem bem saber, desse território, dessas terras, elas foram todas entregues aos latifundiários de bandeja pelo regime da ditadura de [Alfredo] Stroessner, para seus amigos, deixando os ricos mais ricos. Quando caiu a ditadura veio o regime controlado pelo pastorado, que ficou um tempão e também não resolveu porr@ nenhuma, nem tocou na questão agrária. Com o atual governo foi possível que esses movimentos se organizassem e o que eles estão fazendo agora é um processo de retomada das terras que foram ilegitimamente doadas, um resgate. Você vê um brasileiro latifundiário indo para o Paraguai para deter alqueires e alqueires de soja, para plantar monocultura, encher o solo de agrotóxicos, enquanto esses paraguaios que são gente da terra, que falam guarani, lutam por um terreno de dois a dez hectares e ainda são chamados de invasores dentro de seu próprio país. Então eu tive a oportunidade de conhecer essa realidade.
Latifúndio
A situação é muito séria e é aqui do lado. Os sem-terra brasileiros e paraguaios têm o mesmo problema: o latifundiário que já é uma praga no Brasil agora está virando praga no Paraguai. É por essas coisas que o paraguaio detesta o brasileiro, ele tem todo motivo para isso. Fomos "achacados" pela polícia lá, deixei "vintão" para um policial chamado Escobar na estrada, passou de carro e a placa é do Brasil, eles param para tomar dinheiro e eu não posso culpar os caras. Sempre fomos inimigos do Paraguai... [Sítio: Desde de Duque de Caxias...] Isso, a gente já fodeu o Paraguai na guerra e agora com os latifundiários. O que a gente cometeu no Paraguai foi genocídio e hoje continuamos explorando esse pessoal, continua uma política imperialista para com o Paraguai. Em que pese o Brasil compra a energia três vezes mais do que o valor e é uma forma de compensação, mas isso é o mínimo. A economia e a política do Paraguai estão quebradas em função dessa influência maligna que o Brasil exerce sobre o Paraguai. Por isso citei aqui na minha fala no evento que era importante que os blogueiros brasileiros pudessem atravessar a fronteira e conhecer essa realidade, denunciar sobre essa realidade, porque a grande imprensa não vai fazer, o blogueiro tem que servir como imprensa alternativa.
Blogosfera
O forte do blogueiro é a independência, temos que lutar todo santo dia para manter isso, para não acabarmos se tornando correia de transmissão de políticas de governos, do senso comum. Os blogues têm que ser justamente o contrário, promover a visão que não é a dos meios de comunicação tradicionais. Blogueiro bom é blogueiro independente. Veja por exemplo o evento aqui em Foz, em que pese que a organização do evento tenha sido bacana, toda a organização se preocupou em prover de conforto os participantes, mas eu não sei por que um evento desse precisa ser patrocinado pela Itaipu, sou contrário a essa presença grande governamental. Mas voltando ao papel da blogosfera, ela é importante, mas precisamos entender que revolução não se faz no twitter, quem faz transformação são as pessoas.
Relação com as autoridades
Já passei por delegacias três vezes por causa de charges que eu assino contra a violência e corrupção policial. Sempre lembro que o tráfico, a criminalidade, o chamado crime organizado só consegue existir graças a sua relação com o Estado, graças à corrupção. Agora devido aos Jogos Olímpicos e a Copa do Mundo no Brasil, a polícia deve me visitar pela quarta vez, já que vou obviamente desenhar sobre esses temas. E aí obviamente a repressão virá, como já está vindo em relação às favelas que estão sendo removidas no Rio de Janeiro por conta de obras para a Copa e as Olimpíadas.