Cercados por um imenso contingente de policiais militares, sob a pressão de iminentes ordens judiciais de reintegração de posse, e caluniados pela criminalização dos grandes veículos de comunicação, os estudantes mobilizados contra o projeto de reorganização das escolas de São Paulo responderam: “Não tem arrego!”.
Uma resistência que, como em junho de 2013, ergueu-se e venceu o governo estadual sem contar com partidos políticos, carros de som, lideranças ou representação de organizações institucionais. Assim, por mais de dois meses, jovens de cerca de 230 escolas da capital, litoral e interior, de regiões periféricas ou centrais, derrotaram a imposição de um projeto que teve como centro o fechamento de 93 escolas para a redução de investimento na educação. Surdo à participação popular, o governador do estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, propôs um diálogo cuja linguagem expressou seus argumentos de convencimento por meio da extrema violência policial e anúncios publicitários da reforma proposta. Ao poder público, o movimento de estudantes se fez ouvir depois de uma sequência de atos que se esgotaram pela falta de diálogo e foram substituídos por outros cada vez mais radicais e mais solidários.
Num primeiro momento, organizaram passeatas, depois audiências públicas, ocupações, aulas de formação política e, por fim, o fechamento diário de ruas em dois períodos, de manhã e ao final da tarde. Como se pudessem ser invisíveis e, ao mesmo, capazes de registrar com seus celulares o total descontrole dos aparatos repressivos, os estudantes surgiam, chamavam atenção e desapareciam, para depois ressurgir com mais força. Táticas de uma guerrilha desarmada no enfrentamento de um exército regular paquidérmico.
Formação na luta
A primeira ocupação ocorreu numa quinta-feira, 5 de novembro, quando, em assembleia, os secundaristas da Escola Estadual (E. E.) Diadema decidiram impedir a rematrícula que os transferiria em definitivo da escola onde muitos compartilharam com seus melhores amigos boa parte da vida. “Nós chegamos a fazer um abaixo-assinado com mais de 10 mil assinaturas contra o fechamento do ensino médio na nossa escola. O documento foi assinado por todos os vereadores da cidade, mas isso não adiantou nada. Em um grupo de WhatsApp que agrupava as escolas mobilizadas, cogitava-se a possibilidade de uma ocupação para barrar o fechamento. Como nossa rematrícula estava marcada para segunda-feira, dia 9, não tínhamos alternativa senão ocupar”, narra Fernanda Freitas, de 17 anos, estudante do 2º ano do ensino médio na E. E. Diadema.
A inspiração veio do manual “Como ocupar um colégio?”, disponível no perfil “O Mal Educado”, uma das páginas de apoio à luta dos estudantes no Facebook. Baseado nas experiências do movimento chileno conhecido como a Revolta dos Pinguins, que em 2011 ocupou mais de setecentas escolas do país, o guia explica passo a passo os planos de ação e organização da tomada do espaço de ensino. No fim de semana seguinte, os alunos de Diadema constituíram comissões de segurança, alimentação, comunicação, limpeza, porta-voz e elétrica. Na segunda-feira, dia 9, eles informaram a decisão de só sair quando tivessem a garantia de que seriam atendidos. A direção chamou policiais para retirar os adolescentes da escola. No entanto, eles já haviam providenciado um termo de responsabilidade assinado pelos pais autorizando que seus filhos ficassem na instituição, prevenindo-se de qualquer ação do Conselho Tutelar. Ao todo, eles permaneceram 42 dias no local.
Um dia após a ocupação de Diadema, o rastro de pólvora acendido na região do ABC seguiu para a região central da capital, e a E. E. Fernão Dias, em Pinheiros, também foi ocupada. Em duas semanas, 52 cidades do estado tinham unidades sob posse dos estudantes.
Os vídeos com mensagens, músicas e atividades realizadas dentro de inúmeras ocupações espalharam-se pelas redes sociais. As imagens mostravam os espaços de ensino, autoritários e decadentes, convertendo-se em lugares de autogestão e livre expressão, laboratórios de experiências autônomas radicalmente democráticas. Receberam o cuidado dos ocupantes como nunca havia ocorrido: atividades culturais, aulas alternativas, limpeza, pinturas, grafite...
O escritor, educador e ativista do movimento de saraus de poetas da periferia, Allan da Rosa, esteve em escolas ocupadas na Zona Sul da capital dando apoio e ministrando aulas. “A rapaziada ocupou surpreendentemente as escolas que tanto lhe machucaram e subestimaram, muitas vezes em prédios caindo aos pedaços, que foram reformados, capinados e ajardinados pelos próprios estudantes, que angariavam verba ou encontravam materiais ocultos em galpões e quartinhos trancados por diretores. O movimento dos secundaristas é uma lufada de esperança em hora de nojento atoleiro político. É real ventania cheia de pólen adentrando um cenário e contexto desoladores”, avalia. O escritor realça as intersecções do movimento, chamando atenção para o protagonismo das mulheres e dos jovens negros, “os mesmos que integram o grupo dos mais estereotipados e assassinados no país do genocídio da juventude negra”.
José Paulo Guedes Pinto, professor de Relações Internacionais e Ciências Econômicas da Universidade Federal do ABC, também esteve em escolas, oferecendo aulas e apoio logístico, e se declarou impressionado com os debates entre os estudantes: “É um processo de formação forte, poderoso, crítico, positivo, progressista. Uma formação política rápida, de muita qualidade, que pode superar essa dicotomia partido-sindicato. Eles estão retomando essa perspectiva mais de base da luta crítica”.
Apesar de a maioria das escolas não contar com grêmios estudantis ou de estes terem pouca representatividade, o movimento de ocupações conquistou apoio popular ao expor seus objetivos com clareza e força política. A estudante Joana Noffs, de 16 anos, que cursa o 2º ano do ensino médio na E. E. Professor Antônio Alves Cruz, também em Pinheiros, explica que um dos principais pilares do movimento está na intensa convivência comunitária experimentada no cotidiano das ocupações. “Construímos uma coisa de comunidade, os alunos não se conheciam. Agora a gente passou a trabalhar junto, a gente cozinha junto, almoça junto, limpa a escola junto, e criamos uma relação que nunca teríamos criado. E isso não só dentro da escola, mas com os alunos de outras escolas, com unidade, força e solidariedade, com o envolvimento dos pais e de moradores do bairro.”
Junho de 2013, novembro de 2015
As semelhanças entre os protestos contra o aumento da tarifa em junho de 2013 e uma das maiores mobilizações estudantis da história não são mera coincidência. Doutora em Letras e educadora da Escola Nacional Florestan Fernandes, Silvia Adoue, que participou de vigílias em apoio à E. E. Lysanias de Oliveira Camargo, em Araraquara (interior de São Paulo), entende o novo movimento estudantil como parte desse ciclo da luta de classes inaugurado com as mobilizações puxadas pelo Movimento Passe Livre em 2013. “Essa nova ascensão das lutas não encontra representação nas velhas organizações”, avalia.
Nesse sentido, a professora de Sociologia da FGV-SP Silvia Viana, que acompanhou as mobilizações de 2013 e 2015, avalia que o movimento contra o fechamento das escolas pode ser analisado “à luz de uma disjunção que, desde 2013, parece ter vindo para ficar: trata-se do abismo que se abriu entre a contabilidade conjuntural e a política propriamente dita. O ‘propriamente dita’ deve-se ao samba dos termos clássicos, que não mais prescindem de complementos”.
No abismo entre a representação política e as demandas dos jovens, a doutora em Ciências Sociais e professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo, Esther Solano, aponta para uma surdez autoritária. “A população está manifestando que não quer mais uma política autoritária e surda, que não dialogue com os cidadãos. Os jovens de junho de 2013 e os das escolas querem participar da política e ser protagonistas das decisões. Por outro lado, a resposta do poder público, neste caso o governo do estado de São Paulo, também tem um paralelo enorme com junho. É uma resposta negativa ao diálogo; de polícia, e não de política, em que tem se buscado reprimir os protestos, e não dialogar com eles. Como em junho, a tática policialesca inflama ainda mais os protestos.”
Esther avalia o movimento como “um aprendizado democrático, de autogestão e definição de demandas que não está isento de conflitos internos, mas isso também forma parte do aprendizado. Algo importante é que nossa educação é do século XIX. Os jovens estão demandando uma educação nova, crítica, dentro e fora das salas de aula, que fale de feminismo, de movimentos populares. Temos de rever as velhas estruturas educativas, políticas, até as velhas estruturas de reivindicação popular, porque os modelos atuais não dão conta, são rígidos e muitas vezes excludentes”.
O professor de Sociologia da USP Ruy Braga, que realiza pesquisa comparativa entre a formação de jovem precariado pós-fordista predominantemente urbano na África do Sul, Brasil e Portugal, destaca o protagonismo político de uma nova juventude. “São jovens em condições precárias de vida, nas periferias das grandes metrópoles, que são as principais vítimas da regulação do conflito urbano via repressão policial. São as principais vítimas dos assassinatos da polícia militar e encontram-se também diante de uma realidade muito pouco alvissareira do ponto de vista da inserção no mercado de trabalho. Ou seja, é a mesma base, o mesmo sujeito coletivo que, inexperiente politicamente, numa situação de agudização das contradições e da polarização social como a gente vive hoje no país, tende a politizar-se muito rapidamente”, comenta Braga.
O professor explica que, atualmente, há uma contradição entre um ciclo educacional mais qualificado e a negação dessas potencialidades pelo mercado de trabalho. “De um lado, você estimula que essa juventude se veja em uma situação empoderada, mais cultivada, em uma posição superior à geração anterior; por outro lado, isso se choca flagrantemente com as próprias condições da crise capitalista, da precarização das condições de trabalho, dos baixíssimos salários... Isso tudo é muito importante para a gente entender a especificidade do momento presente.”
Em um sentido geral, Silvia Adoue interpreta que as reivindicações estudantis tendem a esse sentido: demanda de democratização das decisões sobre os rumos da educação e resistência às medidas que preparam o sistema público de ensino para a “privatização fatiada”. No avanço das lutas, a educadora compara: “Muitos estudantes que levam adiante esse movimento eram crianças em 2013, ainda que alguns tenham participado. A passagem para a ação no controle do espaço da escola, anteriormente de alienação, amplia os horizontes do pensamento, a confiança na própria capacidade de dirigir, de serem protagonistas. Pode-se, sim, falar numa nova geração de militantes aprendendo a se articular. Eles parecem ter noção da necessidade de ações coordenadas sem perder o enraizamento. Há uma diferença com a outra geração de militantes: o protagonismo das mulheres. Isso dá às lutas uma radicalidade maior, porque às pautas do momento se agregam valores de emancipação antipatriarcal”.
Democracia versus repressão
A violência física para convencer os estudantes a abandonar sua luta não foi usada apenas por policiais. Em inúmeras escolas, professores e diretores foram denunciados por agredir adolescentes ou mobilizar vizinhos na tentativa de retomar as unidades de ensino. Em um dos casos mais extremos, o diretor da Escola Estadual Deputado João Dória, na Zona Leste de São Paulo, Ranieri Ribeiro Rabello, convocou um grupo de homens munidos com martelos, correntes e canos para retomar a escola. A ação foi filmada por um aluno de 17 anos que foi agredido no rosto com uma corrente por Rabello. O caso teve registro no 50º Distrito Policial e o diretor foi afastado de sua função pela Secretaria da Educação do Estado.
O educador Allan da Rosa resume o que considera como as necessidades mais profundas reivindicadas pelos estudantes: “Eles querem mais diálogo na condução da política pública de educação e na tomada de decisões internas de cada escola. Têm fome de didáticas e pedagogias que superem o tédio. Estudantes dizem não aguentar mais que toda aula seja o mesmo blá-blá-blá de um professor falando sozinho em frente à lousa sem mostrar o encanto da matéria e do conhecimento que trata. Estudantes desejam que, da cozinha ao pátio, dos banheiros aos jardins, a escola toda seja um espaço de ampliação e partilha de conhecimento, de criação e reflexão sobre sua vida e nosso cotidiano, história e sociedade. Nas periferias há uma efervescência cultural que tanto luta e anuncia temas indigestos aos poderosos quanto já apresenta também a contradição entre a posição de currais eleitorais e o extremo ceticismo com movimentos sociais, em geral esculhambados ou invisibilizados pela mídia graúda. Os estudantes de 2015 traçaram elos com lideranças comunitárias e pais e mães de alunos que encamparam a luta de seus filhos”.
Feminismo, aborto, drogas, racismo, gênero, violência policial, encarceramento. As aulas e atividades culturais dentro das ocupações trouxeram para muitos também o primeiro contato com debates que lhes dizem respeito e não são abordados por seus professores.
Cauê Silva Albuquerque, de 17 anos, que cursa o 2º ano do ensino médio na E. E. Diadema, entende os debates como importantes para “romper preconceitos na sociedade e entre os próprios alunos, que, muitas vezes, julgam uns aos outros pela roupa ou música que escutam”.
Com uma “mãe muito mente aberta”, Beatriz Gonçalves Ribeiro, de 15 anos, também estuda na E. E. Diadema e afirma já ter tido contato com a maioria dos debates apresentados: “Ela sempre me levou a protestos como a Marcha da Maconha e a debates sobre feminismo”.
Sobre as aulas alternativas ministradas nas ocupações, Beatriz avalia: “Eu achei muito massa. Já conhecia os argumentos que os expositores usavam, mas foi muito bom ver as pessoas à sua volta mudarem de opinião depois de ouvir os argumentos. Isso mostra que elas podem aprender e entender que estavam erradas”.
Um movimento de organização política horizontal exige para o futuro escolas com educação igualmente horizontal. “Barrar reorganização não é exatamente a luta, ela é um reflexo do modo como funciona nosso sistema de ensino, que ignora os estudantes e pensa as escolas como empresas que precisam cortar gastos. Enquanto estiver funcionando desse modo, nós vamos lutar. E agora que conseguimos essa união forte entre as escolas, acredito que esse foi só o começo para uma transformação muito maior”, promete sorrindo a jovem estudante Joana Noffs.
Cristiano Navarro e Luís Brasilino são editores do Le Monde Diplomatique Brasil