As ocupações das escolas neste ano guardam muitas semelhanças (políticas, organizativas, estéticas) com a jornada de junho de 2013. Como analisar o movimento dos estudantes à luz da atual conjuntura do país?
Silvia Viana - Pode-se analisá-lo à luz de uma disjunção que, desde 2013, parece ter vindo para ficar. Trata-se do abismo que se abriu entre a contabilidade conjuntural e a política propriamente dita. O “propriamente dita” deve-se ao samba dos termos clássicos, que não mais prescindem de complementos. Tomemos, por exemplo, o famigerado áudio do encontro de quarenta dirigentes de ensino do estado de São Paulo, sob comando do chefe de gabinete da secretaria de Educação. Neste, “política” é xingamento e significa, por um lado, a “instrumentalização” do debate por opositores de partidos e movimentos sociais organizados, preocupados com votações e manobras afins; por outro, e por contraditório que possa parecer, uma “radicalização ideológica”. Da ótica da reunião vazada – e também, como não citar?, de uma “autoridade máxima” da Igreja Católica – a assim chamada “politização” pode, então, ser derrubada mediante seu oposto: a razão administrativa. Esta é capaz, ao mesmo tempo, de expor a “manipulação” – que é, segundo o chefe de gabinete, “estudada”, “tem método”, “tem estratégia” – e anular a irracionalidade. A “guerra” ali declarada, e repetida à exaustão, é a “guerra da informação”, e não tem como “público-alvo” aqueles que fazem “política”, e sim a maioria, os incautos, manipulados ou simplesmente deficitários de esclarecimento, que acabaram por aderir à causa. Nessa “guerra” caberia então mostrar que “a radicalização está do lado do movimento”, que deve ser “desqualificado” por ser “político”, “partidário”, voltado para “desviar o foco de Brasília” e que, por isso mesmo, “não tem nada a ver com educação”.
A análise crítica dessa conversa buscou invertê-la: percebamos como são eles que tentarão enganar a opinião pública, a começar pela mentira quanto ao papel dos estudantes na mobilização. De fato, movimentos sociais tradicionais, entidades representativas e partidos políticos vieram a reboque de um movimento autônomo e auto-organizado, o que não significa que os gestores da educação não tenham fé na inversão que apresentaram. E não apenas eles.
Se há uma palavra-chave a ser analisada nessa “guerra” talvez seja a que se apresentou, de ambos os lados, como seu oposto, o “diálogo”. Foi graças a esse mote que os estudantes conquistaram um amplo espectro de apoio às ocupações – por sinal, uma diferença crucial com relação a 2013, quando se logrou uma massificação à custa da hegemonia quanto à pauta. No fim de um, de outro modo, lamentável 2015, não foram poucos os moderados que chegaram a apoiar, e até mesmo ajudar os estudantes contra o autoritarismo brutal do governo. Até em revista de extrema-direita apareceram ecos a respeito da “forma equivocada” pela qual foi decidida a “reestruturação” (aspas aqui por se tratar de eufemismo). Mas não precisamos chafurdar ainda mais no lixo já que, na própria fala dos gestores, o mesmo diagnóstico foi apresentado: “faltou diálogo”. É claro que, na sala de reunião, a tal incompetência comunicacional foi terceirizada para alguns diretores, e compassivamente compreendida à luz do medo e ignorância de pais “conservadores”. Seja como for, o caso é que foi para esse bullseye, no qual a turma da planilha vislumbrou, com razão, a iminente derrota, que foram apontadas suas metralhadoras: “informação, informação, informação...”. Contudo, para além dos estúpidos folhetos explicativos, que sempre pressupõem a estupidez alheia, a “tática de guerrilha” incluiria reuniões com representação de pais e professores para a resolução de eventuais demandas pontuais e “justas”, tais como o medo de que os estudantes sejam obrigados a passar pela cracolândia a caminho da escola... Assim, para eles, é absolutamente razoável que a comunidade concernida participe: “ó, me apresente suas propostas, venha conversar”. Ao fim e ao cabo, trata-se de uma questão técnica, de otimização de recursos, nada que conversas seguidas de ajustes não possam resolver. Então o termo “dialogômetro” pode ser compreendido, para além da piada, em toda a sua precisão e justeza quantitativas.
É apenas dessa perspectiva que podemos entender a crença inabalável dos gestores quanto à sua capacidade de convencimento. Sua razão é a razão do mundo, diante da qual a grita da “política”, cedo ou tarde, terá que ceder. O campo da disputa é traçado por números que, independente da conta, são irrefutáveis: a diminuição da demanda, a crise econômica, os indicadores de aprendizagem etc. – um etc. infinito, e que nos vai aporrinhar nos próximos meses com novos estudos, estatísticas, rankings, avaliações, todos a comprovar o que já sabemos, ou deveríamos saber: o sistema deve ser eficiente. Fora desse campo está o delírio. Daí a afirmação de uma das dirigentes de ensino presente na reunião vazada, segundo a qual as propostas apresentadas por pais, alunos e professores serão debatidas “dentro do decreto da reorganização” – seus limites são os limites da realidade. A verdade social desse espaço, o único no qual a comunicação é possível, apareceu em outro “diálogo”, esse travado em ruas atravancadas por cadeiras. Disse o governador: “A polícia dialoga, a polícia conversa, a polícia pede para as pessoas saírem, a polícia dá tempo para as pessoas saírem. Agora, não pode prejudicar quem precisa trabalhar. Então, é preciso ter o mínimo de bom senso”. Não se trata de uma analogia fortuita: polícia e decreto são coisas feitas da mesma substância, do inapelável. Pois nenhum deles obedece a princípios, tais como educação ou dignidade humana, por exemplo, ambos respondem às urgências. Em ambos os casos, cabe responder à urgência produtiva. Voltemos à sala da reunião, na qual outra dirigente pode vir em nosso auxílio: “não é o decreto que vai garantir a demanda, é a demanda que vai garantir o decreto”. O autoritarismo da medida não se deve, portanto, à figura do governador, e sim à natureza do dispositivo – não obstante ser Alckmin uma de suas encarnações mais bem acabadas e, talvez por isso, mais bem sucedidas: o homem que “faz o que deve ser feito, doa a quem doer”. Impedir o fluxo de ativos, que vulgarmente chamamos rua, equivale a impedir a adequação entre custo e benefício nas escolas, ambos admitem o “diálogo democrático”, contanto que em seus próprios termos.
Não foi outro o espaço ofertado aos manifestantes de Junho de 2013 – e, diga-se de passagem, com as mesmas palavras: “apresente sua proposta”, “vamos dialogar”, contanto que dentro do orçamento... Também da perspectiva da administração municipal, os manifestantes não estavam sendo “razoáveis” e, provavelmente, serviam aos interesses inconfessos da instrumentalização partidária e eleitoral, ou, novamente, da maldita “política”, então a serviço do outro, esse mesmo que agora entende tudo exatamente do mesmo modo. Apesar de, na luta contra a “reestruturação”, o embate parecer mais claro – afinal a crítica está voltada ao governo do estado, o que contempla os recipientes mentais binários, mas está a quilômetros de abarcar os verdadeiros antagonismos –, assistimos à mesma paranoia, mesmo que com outra roupagem moral: em 2013, o fantasma era ingrato, agora, é só burro mesmo. No embate atual, o fato de que são os partidos e entidades representativas os que correm atrás do rastilho aceso por moleques, é algo que, da perspectiva dos eficientes, não apresenta chave explicativa. Por isso, e não graças a uma compulsão por manipulação, a explosão de estudantes, que simplesmente estão de saco cheíssimo de serem objeto de manejo, ocorre, sob suas fuças, irrelevante, para não dizer impossível. A única explicação aventada é aquela que organiza seu próprio mundo, pois organiza também o mundo de sua oposição: trata-se de um cálculo. E o que, a seus olhos, não passam de espasmos ideológico-irracionais são, portanto, para uns e outros, um logro ou um “resto” não assimilável, política e epistemologicamente.
Acontece que é esse “resto”, estranho e avesso às redundantes alocações de recursos, que faz o chão tremer, outrora, ao negar 20 centavos, e agora trancando o portão da escola e reabrindo ruas incógnitas. Outra das senhoras da reunião, apresentando atestado de sua abertura ao “diálogo” afirmou: “Eu pedi para eles me darem uma lista [de reivindicações]. Eles me mandaram: ‘sou contra isso, contra aquilo, contra aquilo...’, não tem reivindicação, só tem protesto!”. O chefe de gabinete, incumbido de declarar a guerra, complementou: “Eles usam o argumento do diálogo. Toda vez que você vai no TJ eles não querem o diálogo coisa nenhuma [...] Toda vez que alguém fala contra, eles berram e não querem”. O caso é que não querem mesmo, dada a natureza do “dialogômetro”, por eles meio intuída, meio sabida, certamente não aprendida em salas de aula/depósitos. Por isso, o abismo, semicerrado no período de hegemonia da luta, começa, em seu refluxo, a aparecer em sua dimensão transversal real. As organizações que, no auge do movimento, seguiam os estudantes, agora se esmeram como podem em tomar a dianteira, ensinando a eles, os inexperientes, que venceram. Também para a esquerda que governa, o recuo do governador foi a abertura do “diálogo”: haverá um ano de participação, ao longo do qual, nos termos de todos os que se bicam e se entendem, serão “criadas as agendas propositivas” (só para constar: essa citação não remete à declaração de alguma entidade apoiadora do movimento, mas à gangue da reunião) –, cabendo, evidentemente, os cuidados necessários ao se lidar com o outro manipulador. O “resto” incômodo, o verdadeiro outro da comédia institucional, no entanto, sabe que isso não significa nada; que o retorno à planilha é o retorno ao Grande Plano, para o qual não passam de lenha fresca para a reprodução social ou, em suas palavras, de “mão de obra barata para o capitalismo”.
Como está sendo o processo de formação política dos jovens que estão participando das ocupações? Pode-se falar em uma nova geração de militantes, no sentido de um novo tipo de militância?
Silvia Viana - Eles não foram formados politicamente, e aí reside seu segredo. Próxima dos temidos quarenta anos, já posso dizer que tenho um passado, não tanto porque estou ficando velha, muito mais porque aquilo o que me formou politicamente se tornou uma jaula de ferro. Sob o guarda-chuva do socialismo democrático, travávamos nossas disputas colegiais e universitárias com um projeto comum, nós ajudamos a forjá-lo, com a experimentação participativa em projetos sociais nos mais variados campos, como coletivos de diversos formatos, junto a vários movimentos sociais. Dizer que a conquista do poder degenerou tal projeto, ou pior, que fora traído, seria uma banalidade incapaz de ajudar na compreensão de seu ocaso. O fato é que, querendo ou não, construímos uma forma de governar, forma essa que já não faz o menor sentido para aqueles que não criaram o participacionismo, tampouco participaram, ou ainda, estão cansados de participar. Daí seu despudor quando simplesmente descartam o “porém” que nós compulsivamente anexamos à crítica a essa forma de governo. Eles não foram formados e, no entanto, são governados. Não é à toa que quebram a cabeça e, já tantas vezes, se quebram, em sua forma horizontal e autônoma de luta – seu ponto pacífico, embora não pacificado. Tampouco é birra a recusa persistente e aterradora ao chamamento razoável para a conversa, que eles, ao mesmo tempo, exigem. A proposição para a construção paulatina de uma sociedade mais justa parece lhes feder a mofo quando já não é possível futuro algum senão o da queima ritual em mercado. Se a esperança reformista – seja ela hard, seja racionada – já há algum tempo foi substituída por um “segurar as pontas”, porque diabos essas pessoas deveriam acatar a infindável prestação de contas em que se converteu a sociedade?
Trata-se de um descompasso de tempos históricos, mais que geracional: esse fenômeno que não tem nome, mas certamente não é uma “nova militância”, é compreensível, por exemplo, à luz do recente post, no Facebook, da presidenta: “transformamos milhões de pessoas que estavam excluídas em consumidores”. A celebração de uma “cidadania consumidora” como uma conquista preciosa talvez seja o horizonte social mais mesquinho que já se apresentou e, não obstante, trata-se do único. O estranho, portanto, não é que esses trancadores de rua tenham surgido agora, visto terem suas vidas trancafiadas. Estranha, pois radicalmente fora de seu tempo, é a qualidade que lhes foi imputada pela gestora educacional. Assustada ante o deslize sintático do chefe de gabinete, que afirmou: “se sair a reorganização”, ela retrucou: “se sair?”, e cobrou que o decreto fosse imposto imediatamente, pois “O problema é que eles têm esperança [inaudível]...”.