Reforma da Previdência, ajuste fiscal, lei antiterrorismo, acordo do pré-sal. Em nome de uma governabilidade não alcançada, a presidenta Dilma Rousseff deixa para trás o projeto que a elegeu e, cada vez mais, perde o apoio da esquerda, cética a respeito dos rumos do governo e da possibilidade de sair em sua defesa.
Em manifesto divulgado no último dia 7, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) endureceu o discurso contra Dilma e disse que o governo se tornou indefensável. Embora tenha sempre adotado uma postura crítica em relação à política social e econômica da petista, o MTST inicia o texto dizendo que 2016 “começou com sinais claros de agravamento da situação social do País”, com concessões ao mercado financeiro e à pauta conservadora.
“Por causa dessa guinada, o governo viu evaporar a sua base social. Ficou com o ônus e não recebeu o bônus. Perdeu a base, o rumo político e, ainda assim, ficou sem a dita governabilidade. Apesar de todas as concessões não encerrou o cerco político a seu governo por setores da direita tradicional, da mídia e do mercado”, diz o manifesto.
Como resposta, o MTST afirma que vai intensificar suas ações nos próximos meses, com ocupações urbanas e manifestações nas principais cidades do Brasil.
“Essa guinada mais forte do governo é que levou o movimento a elevar o tom. Se a Dilma quer, com essas políticas, levar o seu governo para o buraco, nós não vamos deixar que a esquerda vá junto”, afirma Guilherme Boulos, coordenador do MTST e uma das principais lideranças sociais do País.
A insatisfação, no entanto, não altera a decisão do MTST em se posicionar contra o impeachment. “O fato de a gente não ter expectativa com esse governo e ter críticas duras em relação à política desse governo não quer dizer que o MTST flerta com o impeachment", afirma Boulos. "O MTST tem clareza de que o impeachment é uma saída à direita, articulada pelos setores que mais atacaram o povo brasileiro, pela direita tradicional brasileira, assim como temos a clareza do que significa essa ofensiva da Lava Jato, seletiva e arbitrária contra o Lula”, diz Boulos.
Para o sociólogo José de Souza Martins, professor aposentado da USP e autor do livro Do PT das Lutas Sociais ao PT do Poder, a presidenta Dilma “ampliou seu entendimento com a direita”, mas essa aproximação foi inaugurada ainda no governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Em entrevista por e-mail, Martins afirma que o distanciamento entre PT e esquerda foi definido, sobretudo, em junho de 2002, com a “Carta ao Povo Brasileiro”. Escrita por Lula, então candidato à Presidência, a carta foi um aceno do PT ao mercado financeiro.
“Essa guinada foi possível porque a contraditória combinação de grupos de apoio, que foram os constituintes do PT, pendia mais para um governo moderadamente reformista do que para um governo corajosamente de esquerda”, diz. “Até porque os acordos de 2002 resultaram da convicção de que, para não ter o veto e a oposição do grande capital e dos militares, era preciso dar-lhes indicações concretas de que o PT, no fundo, era um partido inofensivo. Pessoalmente, acho que o PT recuou mais do que devia e do que carecia”, continua Martins.
Os recorrentes escândalos de corrupção a envolver o partido também elevam a sensação de frustração, visto que o PT se elegeu com a bandeira da ética. Não bastasse a decepção da esquerda, os desdobramentos da Operação Lava Jato dão munição a uma direita que, não raro, prega a extinção do PT.
É nesse clima de caos político que milhares de manifestantes devem ir às ruas neste domingo 13 para pedir o impeachment da presidente e a prisão de Lula.
Do lado oposto, manifestações estão marcadas para 18 de março, quando movimentos sociais e centrais sindicais sairão em defesa de Dilma, de Lula e do PT. Além do próprio partido, a mobilização é liderada pela Frente Brasil Popular, composta, entre outros, pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) e pela União Nacional dos Estudantes (UNE), entidades tradicionalmente simpáticas ao PT.
Outra manifestação contra o impeachment está marcada para o dia 31, em Brasília. Com uma pauta mais ampla, que inclui críticas à reforma da Previdência e ao ajuste fiscal, o ato contará com a participação do MTST e da frente Povo Sem Medo.
Lula 2018
Apesar da disposição em defender nas ruas o mandato de Dilma, o MST também faz duras críticas ao governo. Em entrevista à BBC Brasil, João Pedro Stedile, líder dos sem-terra, afirma que a presidenta conduz uma “política burra” e que insistir na agenda neoliberal pode levar a uma ruptura definitiva com a base social e até mesmo com o PT. Para ele, os erros de Dilma podem, ainda, prejudicar as chances de um eventual retorno de Lula à vida política.
“Sempre que o governo toma medidas antipopulares, os movimentos aumentam o tom. Eu acho que o enigma maior quem vai ter que resolver são o Lula e o PT. Esta política burra do governo Dilma com o transcorrer do tempo vai inviabilizar a candidatura do Lula em 2018”, diz Stedile. “O governo, com estas medidas, é indefensável. Em algum momento este matrimônio do PT com o governo Dilma irá para o divórcio", continua Stedile.
Lincoln Secco, professor de história na USP e autor do livro A História do PT, concorda que parte da solução está nas mãos de Lula, mas afirma que o ex-presidente também precisa retomar a pauta da esquerda. “Inicialmente, temos uma comoção por parte dos militantes mais próximos ao PT e ao Lula, mas a questão é saber a duração disso", diz. "Isso vai depender da capacidade de mobilização que o Lula ainda tem e do objetivo político que ele vai oferecer, porque, até agora, a única coisa que existe é a sua defesa pessoal."
Secco afirma que Lula deve usar sua influência para convencer Dilma a fazer um aceno aos movimentos sociais, mas avalia que a dificuldade reside tanto na falta de uma bandeira de esquerda quanto na resistência da presidenta, que parece mais preocupada em consolidar uma base mínima de apoio no Congresso para derrotar o impeachment e salvar o próprio mandato.
“Há, de fato, um afastamento entre o PT e as pautas da esquerda, e esse é um problema que o Lula vai ter de resolver", diz. "Ele precisa usar seu poder de influência para que o governo dê, de novo, algumas bandeiras que a esquerda possa agitar nas ruas. Os movimentos não vão continuar defendendo o Lula se ele defender o ajuste fiscal. E é isso que ele tem feito até agora”, conclui Secco.