No Brasil, convivemos em um ambiente de moralismo justiceiro, com uma combinação de quatro fatores que são sinônimo de crise em qualquer conjuntura ou lugar: a) um Congresso conservador e capturado pelo poder econômico; b) um governo fraco; c) um Judiciário midiático; e d) uma imprensa tendenciosa.
Neste texto cuidarei apenas da pauta priorizada pelo Congresso Nacional, que pode ser classificado como conservador do ponto de vista social, liberal do ponto de vista econômico e atrasado do ponto de vista do meio ambiente e dos direitos humanos.
Antes de tratar especificamente da pauta patrocinada pelo Congresso, em especial pela Câmara dos Deputados, é importante resgatar o ambiente da eleição de 2014, que elegeu o Congresso mais conservador do período pós-redemocratização.
Uma das causas da eleição do atual Congresso foi a frustração com a (falta de) resposta das instituições às manifestações de junho de 2013, quando milhões de pessoas foram às ruas protestar em quatro das cinco dimensões da cidadania: a) eleitor; b) contribuinte; c) usuário de serviço público; e d) consumidor. A quinta dimensão é a de assalariado/trabalhador.
Como eleitor, o cidadão tinha e continua tendo razão de sobra para protestar. Ele é o titular do poder e, quando delega para que alguém em seu nome legisle, fiscalize, aloque recursos no orçamento ou administre um município, um estado ou a própria União, o faz com base em um programa, com exigência de prestação de contas e alternância no poder. E nenhum representante tem correspondido a essa expectativa, contribuindo para a descrença do eleitor nos agentes públicos e nos políticos de modo geral.
Na dimensão de contribuinte, o cidadão também protestou com razão. A cobrança de tributos no Brasil é injusta e regressiva, além de incidir basicamente sobre consumo e salários, quando deveria recair sobre renda, lucros e dividendos, patrimônio, grandes fortunas e herança, assim como sobre doações e remessas de lucros ao exterior. Além disso, especialmente na época dos protestos, havia denúncia de desvio de recursos públicos, favorecimento a empresários inescrupulosos, como Eike Batista, e a construção de obras da Copa, especialmente grandes estádios, a que o povo não teria acesso.
Como usuário de serviço público, que foi o estopim das manifestações, sobretudo no transporte público, o cidadão igualmente tinha e continua tendo razão. Apesar do esforço de seus servidores, os serviços públicos de saúde, educação, segurança e mobilidade urbana, além de insuficientes, continuam de má qualidade, tanto por problemas de gestão quanto por falta de recurso.
Na dimensão de consumidor, o cidadão também estava e continua insatisfeito com justo motivo. O governo perdeu a guerra com o mercado financeiro, e o Banco Central voltou a elevar a taxa de juros. Por pura especulação, num momento de sazonalidade de produtos hortifrutigranjeiros, principalmente batata e tomate, a inflação disparou, e o custo de vida ficou mais caro. A atualização das tarifas públicas ou dos preços administrados, como energia elétrica e combustíveis, também impactou o orçamento das famílias, contribuindo para o aumento da indignação do consumidor.
O cidadão, entretanto, não protestou, naquela oportunidade, na dimensão de assalariado/trabalhador porque o emprego e a renda cresciam. Se tivesse participado do processo, o resultado certamente teria sido outro, sobretudo pela capacidade de articulação.
As manifestações foram convocadas pelas redes sociais, sem a participação dos setores organizados – partidos, sindicatos, movimentos sociais etc. –, por isso não havia liderança clara e interlocução com capacidade e experiência na sistematização das reivindicações, sobretudo na negociação com os poderes responsáveis pela aplicação das respectivas políticas públicas reivindicadas. A efetividade, no regime representativo, requer institucionalidade.
Frustrados em suas expectativas, os eleitores ficaram indignados e passaram a se identificar com o primeiro populista, fundamentalista ou messiânico que se apresentasse “contra tudo que está aí”. Com isso elegeram, irrefletidamente, parlamentares conservadores e neoliberais que tinham o mesmo diagnóstico da situação, porém com propostas completamente opostas às esperadas pelos eleitores, que, afinal, pediam mais governo, mais Estado, mais políticas públicas.
O Congresso eleito nesse ambiente político foi esse que vemos, formado por bancadas como a ruralista, a evangélica, a da segurança/bala e a da bola, que, somadas, reúnem a maioria absoluta das cadeiras da Câmara dos Deputados. Essas bancadas, que representam o que há de mais atrasado na política nacional, têm atuado de modo articulado.
Para completar esse quadro sombrio, a Câmara elegeu como seu presidente o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que representa simultaneamente as bancadas conservadoras e os interesses empresariais. A pauta imposta à Câmara, que também depende de apreciação do Senado, é uma ameaça às conquistas políticas, econômicas e sociais, além de estar sendo utilizada como elemento de pressão sobre o governo, a quem o presidente da Câmara atribui responsabilidade por sua inclusão na investigação da Operação Lava Jato.
Entre as matérias pautadas para constranger o governo, além da chamada pauta-bomba, com proposições que aumentam despesas, podemos mencionar, por exemplo, as emendas constitucionais n. 88/2015, conhecida como PEC da Bengala, que aumenta a idade de 70 para 75 anos para a aposentadoria compulsória de magistrados, retirando da presidenta o direito de indicar ministros dos tribunais superiores, especialmente do STF, STJ, TST etc., e n. 86/2015, do orçamento impositivo, que força a liberação automática das emendas parlamentares.
No campo dos direitos humanos, a questão mais simbólica foi a aprovação da PEC n. 171/1993, que reduz a maioridade penal. Mas não se limitou a ela: existe a PEC n. 18/2011 e as cinco anexas, que reduzem de 16 para 14 anos a idade para ingresso no mercado de trabalho; o PL n. 3.722/2012, que desmonta o Estatuto do Desarmamento; o PL n. 6.583/2013, sobre o Estatuto da Família, que nega o direito à união homoafetiva reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal; e o Projeto de Decreto Legislativo n. 1.358/2013, que susta a RN 15, que trata da definição de limites de tolerância para exposição ao calor ou para o exercício de atividade a céu aberto, entre outros.
Na área ambiental, dois exemplos ilustram bem a mentalidade dos ruralistas. Eles pretendem aprovar a PEC n. 215/2000, que transfere do Poder Executivo para o Poder Legislativo a aprovação de demarcações de terras indígenas, dos territórios quilombolas e das áreas de preservação ambiental, e já aprovaram na Câmara, por 320 votos a favor contra 135, o PL n. 4.148/2008, que acaba com a exigência do símbolo da transgenia no rótulo dos produtos com organismos geneticamente modificados (OGM), como óleo de soja, fubá e derivados do milho e da soja transgênica, entre outros.
No campo político, a Câmara aprovou a PEC n. 182/2007, que restabelece o financiamento empresarial de campanha, já declarado inconstitucional pelo STF, além da rejeição das proposições que indicavam a ampliação da participação nas decisões políticas e nos processos eleitorais.
Além disso, a minirreforma eleitoral, colocada em prática por intermédio da Lei n. 13.165/2015, ficou muito aquém das expectativas da sociedade. Ela promoveu mudanças nas leis n. 9.096/95 (partidos políticos), n. 9.504/97 (normas gerais para eleições) e n. 4.737/65 (Código Eleitoral), com as seguintes mudanças principais: a) redução do prazo de filiação partidária; b) redução do período de campanha e de propaganda eleitoral; c) modificação na forma de preenchimento das vagas pelos partidos ou coligações; e d) previsão de janela para mudança de partido sem perda de mandato, sempre no sétimo mês que antecede o término do mandato. O texto aprovado instituía o financiamento empresarial de campanha aos partidos, mas a presidenta Dilma vetou.
No aspecto econômico, destaca-se a tentativa de desmonte dos marcos regulatórios que protegem as empresas nacionais, o conteúdo local, o sistema de partilha na exploração do pré-sal, entre outras proposições, como o PLS n. 167/2015, que trata do estatuto jurídico das estatais e determina a privatização de empresas públicas, como os Correios, o BNDES e a Caixa Econômica Federal, entre outras.
Na área dos direitos sociais, especialmente na esfera dos trabalhistas, a investida é assustadora. Além da aprovação do PL n. 4.330/2004, que autoriza a terceirização e a pejotização em qualquer atividade da empresa, há a emenda à MP n. 680, aprovada na comissão mista, mas rejeitada no plenário da Câmara, que pretendia a adoção da prevalência do negociado sobre o legislado, o que representaria o fim do direito do trabalho e da própria CLT, na medida em que valeria a lei se acordo ou convenção coletiva não dispusesse em sentido diferente.
Também fazem parte da pauta trabalhista da bancada empresarial: o PL n. 450/2015, que institui o Simples trabalhista, ou seja, a redução de direitos trabalhistas dos empregados de pequenas e microempresas; e o PL n. 8.294/2014, que institui a livre estipulação das relações contratuais de trabalho diretamente entre empregados e empregadores, mais nocivo do que o PL n. 4.193/2012, que só aplica a lei se não houver acordo ou convenção com menos direitos. Além destes, existem dezenas de outros, como o PL n. 7.341/2014, que determina a prevalência da convenção coletiva sobre as instruções normativas do Ministério do Trabalho e Emprego.
Essa pauta só não avançou mais e foi toda incorporada ao ordenamento jurídico pela resistência dos movimentos sociais, das centrais sindicais e também pelo fato de ter sido tão retrógrada que até o Senado, que é uma casa conservadora por natureza, considerou exageradas as propostas da Câmara dos Deputados e resolveu debatê-las com mais cuidado, sem açodamento. O fato de o líder desse processo, o presidente da Câmara, estar sob investigação também arrefeceu os ânimos de seus aliados na aplicação dessa agenda atrasada e antinacional.
No Senado, que resiste à agenda retrógrada da Câmara, foi elaborada a tal Agenda Brasil, cujo conteúdo coincide com os interesses empresariais e do mercado. Apresentada como uma agenda positiva em contraponto à pauta da Câmara, ela também constitui ameaça a direitos e aos marcos regulatórios que protegem a economia e as empresas nacionais. Seu escopo é abrangente e está dividido em três eixos – Melhoria do Ambiente de Negócios, Equilíbrio Fiscal e Proteção Social.
Como se vê, as ameaças persistem, e os setores populares precisam organizar a resistência, nas ruas e no campo institucional, porque o governo, além de fragilizado e dividido em relação aos temas da agenda conservadora e neoliberal do Congresso, não dispõe de meios e recursos para conter a investida empresarial sobre os direitos nem das bancadas conservadoras, muitas delas lideradas por integrantes dos partidos da base governamental. A eventual queda do presidente da Casa, por si só, não será suficiente para barrar o ímpeto retrógrado da composição da Câmara dos Deputados. Todo cuidado e toda atenção serão pouco.
Antônio Augusto de Queiroz
Jornalista, analista político, diretor de documentação do Diap, colunista da revista Teoria e Debate e do portal eletrônico Congresso em Foco, e autor dos livros Por Dentro do processo decisório: Como se fazem as leis e Por Dentro do Governo: Como funciona a máquina pública.
Ilustração: Odyr