Desta vez pelas declarações golpistas do PSDB, preocupado que o prazo para que a interrupção leve a uma nova eleição está para se esgotar. Como das outras vezes, intensificam-se os ataques ao governo, convocam-se novas manifestações e os meios de comunicações atacam com novas e requentadas denúncias.
Continuamos acreditando que a opção principal da direita, no sentido mais preciso dos interesses de classe ligados ao grande capital monopolista, caminha em outro sentido, qual seja, de produzir uma transição sob um governo fraco e sob cerco, enquanto se gesta uma alternativa para substituí-lo nas eleições de 2018. Alertávamos, no entanto, em outra oportunidade, que um dos mecanismos desta operação, a constante ameaça de impedimento antecipado da presidente, poderia ganhar uma dinâmica própria e se viabilizar como alternativa e, desta maneira, não estaria por princípio descartada como possibilidade pelo bloco dominante.
O cenário atual comprova a persistência deste quadro. Intensificam-se os ataques, enquanto a base de sustentação do governo no Congresso é corroída e os meios de comunicação hegemônicos, por meio de um eficiente manejo do anti-petismo, trabalham para configurar um clima de descontrole total nas hostes governistas. Ao mesmo tempo o governo reage intensificando suas concessões ao bloco dominante: implanta o ajuste e as políticas de austeridade, intensifica os ataques aos trabalhadores (como nas medidas provisórias 664 e 665, no veto às superficiais mudanças na previdência, etc.), opera cortes na educação e na saúde, e impõe arrocho sobre o funcionalismo público federal. Tudo isso sem deixar de abrir seus cofres em generosas contribuições ao agronegócio e financiar a manutenção de empregos com redução de salários e benefícios para as grandes empresas.
Há uma relação entre estes dois vetores da conjuntura que nem sempre fica tão visível. O desgaste inevitável que as concessões ao grande capital monopolista produzem gera uma igualmente inevitável depressão nos setores sociais que sustentaram a atual presidente na expectativa de uma mudança de orientação. A esquerda petista, isolada e minoritária no interior do PT, está rouca de tanta tentar alertar que o caminho escolhido contribui com a estratégia da direita de ir sangrando o governo e dilapidando sua base social para derrotá-lo eleitoralmente na próxima eleição nacional. Propõem um “cavalo de pau”, rompendo com a aliança com o PMDB e retomando o caminho de um projeto democrático popular.
Neste ponto a situação ganha uma complexidade que está longe de ser simples de ser compreendida. A analogia do “cavalo de pau” serve como imagem da urgente necessidade de uma mudança radical de rumos, mas é absolutamente inapropriada para o momento. O ato de puxar o freio de mão e produzir uma mudança abrupta de direção, inclusive valendo-se da derrapagem lateral do veículo, costuma funcionar, não sem riscos de capotagens, quando se trata de veículos leves. Mas no caso de um grande navio, há restrições de movimento por conta de suas dimensões e do tamanho de seu calado. Quando se aproxima do porto, por exemplo, uma embarcação como essa não pode nem sequer sair fora do rumo do canal, e mesmo com suas máquinas desligadas chega a percorrer milhas antes de parar. Por essas condições estruturais, ele está impossibilitado de dar o que se chamaria de um “cavalo de pau”. O governo petista está mais para um grande navio do que para um carro esporte.
No entanto, cabe nos perguntar: por que motivo o governo opera num aparente paradoxo que contribui para a estratégia daqueles que querem derrotá-lo? Podemos falar o que quisermos deste governo (muito temos falado de como ele operou uma estratégica que desarmou a classe trabalhadora conduzindo-a ao pântano da conciliação de classes), mas não que ele é ingênuo ou que lhe falta habilidade política. Aqui a analogia com o navio é ainda mais útil, pois não adianta olharmos para a superfície do mar ou para as hipnóticas luzes de bordo, pois a resposta está no canal em que navega.
O caminho escolhido pelo PT como via de desenvolvimento de sua estratégia acabou por considerar virtuosa uma configuração que segundo seu juízo constituía uma imprudência da burguesia e um cenário favorável aos desenvolvimento de “reformas” gradualistas que beneficiariam aos trabalhadores. Este equívoco se fundamenta na incompreensão de um dos elementos do Estado burguês na sua configuração contemporânea.
A FORMA DEMOCRÁTICA DA REPÚBLICA BURGUESA
Talvez possa parecer, a um olhar superficial, que a forma democrática da república burguesa e a prevalência das eleições como um meio de composição de seus governos, fosse um equívoco das classes dominantes (ou ainda, em outro registro, uma concessão que só se explica pela pressão dos trabalhadores). Afinal, sendo as eleições um jogo numérico e a classe trabalhadora inegavelmente mais numerosa que as classes dominantes, a tendência seria a formação gradual maiorias que pouco a pouco poderiam ir construindo a vontade geral como expressão dos interesses dos trabalhadores, reduzindo o poder político da burguesia à proporcionalidade de sua expressão quantitativa.
O que os atuais reformistas (a bem da verdade estes senhores acabaram ficando muito aquém do reformismo, a ponto de ter de ficar a cargo da esquerda petista a defesa da retomada do rumo das reformas), de fato desconhecem é que a burguesia já equacionou há muito tempo este problema. Podemos comprovar isso resgatando o pensamento de James Madison (1751-1836), que foi um dos destacados redatores de O Federalista (uma serie de ensaios, publicada 1788, defendendo a federação contra a forma confederada), no contexto da luta pela independência dos EUA e consolidação de sua forma política republicana.
O problema dos revolucionários norte-americanos, resumidamente, era determinar qual seria a forma de governo da jovem nação que poderia responder simultaneamente a duas exigências cruciais: manter a necessária unidade política, economia e militar das ex-colônias, e garantir a liberdade das partes aderissem à nação, evitando o risco da tirania.
Diante disso se enfrentam com o problema das facções, entendidas, nos termos de Madison, como grupos de cidadãos, maiorias ou minorias, que unidos por sentimentos e interesses comuns se opõem a outras facções, cidadãos ou mesmo interesses coletivos de uma comunidade. Parecia a Madison que as duas possibilidades apresentadas – atacar as causas das facções ou tentar controlar seus efeitos – se apresentavam impraticáveis. Isso porque as causas estariam ligadas à natureza humana, sendo portanto, incontornáveis. Quanto ao controle dos efeitos, a impraticabilidade derivaria do fato de que teria que ser operada pelos próprios seres humanos que colocariam suas vontades e paixões como critério de tal controle. A solução encontrada seria, segundo Madison, colocar tanto a natureza como seus efeitos a serviço de uma forma que possibilitasse a República. A chave para tal feito seria expressa na formula: “ambição será incentivada para enfrentar a ambição” (O Federalista, n.51).
Antes de ver como isso se materializa em uma forma política, é importante fazer uma ressalva. Apesar de localizar na natureza humana o comportamento de facção, o revolucionário norte-americano sabe que a base material da disputa dos diversos interesses que compõem uma sociedade não é a mera predisposição dos seres humanos como criaturas “ambiciosas, vingativas e rapaces”. Por isso poderá concluir, sem abandonar aquela premissa, que “a fonte mais comum e duradoura das facções tem sido a distribuição variada e desigual da propriedade”, de tal forma que “aqueles que possuem e os não-proprietários invariavelmente corporificam distintos interesses na sociedade”.
Todos são juízes de suas próprias causas. Uma vez que prevaleça o poder de uma facão ou conjunto de facções associadas, seria natural supor que esta maioria tente impor seus interesses sobre as demais, impondo os interesses dos manufatureiros sobre os donos de terra, ou o inverso, “não havendo em nenhum dos casos consideração para com a justiça ou o interesse público”. A confiança de que “estadistas esclarecidos” poderiam funcionar em prol do equilíbrio e da prevalência do bem público é descartada pelo autor com requintes de pragmatismo: “nem sempre os estadistas esclarecidos estarão no leme”.
Notem que, como fica evidente, o objetivo destes senhores é evitar a tirania da maioria. A solução de uma “democracia pura”, como a denominavam, é recusada. Ela é definida como necessariamente própria de pequenas sociedades formadas por indivíduos virtuosos (definidos como aqueles que colocam o bem comum sobre o interesse particular) e cuja base é a frugalidade, nos termos de Montesquieu. Em outras palavras, essa forma política só funcionaria num contexto de pouca riqueza e uma vida simples e estaria descartada para grandes nações poderosas econômica e militarmente. Neste ponto, a afirmação de que as facções se formam pela distribuição desigual da propriedade ganha uma dimensão decisiva.
A forma da “democracia pura” em uma sociedade moderna seria palco de “distúrbios e controvérsias” e levaria necessariamente a um quadro de insegurança e incapacidade de garantir o direito de propriedade, tendo conseguentemente, segundo o juízo de Madison, uma vida curta e um fim violento. A solução, portanto, é a uma república em que se aplica o “esquema da representação”.
Entre as várias vantagens apresentadas por Madison para defender a república contra a democracia pura, estaria em primeiro lugar o fato de que por meio da representação os “pontos de vista da população são filtrados” pelo crivo de alguns cidadãos que irão representá-los. Como o povo escolheria os “melhores” nesse processo de seleção, os seria justo dizer que os eleitos saberão discernir os verdadeiros interesses do país, graças ao seu “patriotismo e amor pela justiça”, dificilmente sacrificando estes interesses por “considerações temporárias ou parciais”, nas palavras de James Madison que chegou a ser o quarto presidente dos EUA.
Evidentemente soa estranho esse grau de fé nas virtudes morais expressa na pena do fundador do Partido Republicano, um sujeito, como vimos, dotado justamente de uma posição marcada pelo pragmatismo. Sem dúvida, Madison tem plena consciência de que indivíduos de “temperamento faccioso e propósitos maldosos” podem por vários meios, inclusive a intriga e a corrupção, conseguir os votos necessários e “depois trair os interesses do povo”. No entanto, para ele, a solução estaria na própria dimensão da república moderna, no sentido quantitativo propriamente dito.
O argumento de Madison é de que a fragmentação de uma grande população em diversas facções e partidos, pulveriza a representação. Assim, com cada um buscando apenas seu próprio interesse, fica difícil formar maiorias, obriga-se que os governantes (ainda que sendo expressão de uma maioria eleitoral) negociem com um conjunto pulverizado de interesses para lograr estabilidade em seu governo. Diz Madison ao falar da república que defende:
“alargado este campo (o do número de cidadão de um Estado) teremos uma variedade maior de partidos e interesses, tornando menos provável a constituição de uma maioria no conjunto que, alegando uma motivação comum, usurpe os direitos de outros cidadãos”.
Desta maneira, conclui Madison, teríamos uma estrutura adequada, um “remédio republicano para as doenças mais incidentes sobre um governo republicano”.
Reparem: a vacina contra a possível “doença” de uma maioria chegar ao poder em algum ponto do Estado burguês está dada desde 1788. Não é demais relembrar que tal estrutura adequada se completa com um redesenho da solução clássica da divisão de poderes, muito além da simples divisão funcional na qual quem governa não redige as leis, e quem as redige não governa, da mesma forma que aquele que julga não redige a lei, nem governa.
O MENINO E O LOBO
Agora, depois da experiência norte-americana, aplica-se uma dinâmica de pesos e contrapesos. Isto é, a cada poder de uma esfera se apresenta um poder para que a outra o controle, como no dispositivo de veto do executivo a uma lei elaborada pelo legislativo e a possibilidade de derrubada do veto pelo segundo, assim como, se houver dúvidas os tribunais são acionados e se tudo der errado há forças armadas para “garantir” a constituição em defesa da propriedade (notem como estamos hoje muito longe da necessidade deste último expediente).
No contexto atual estas chamadas estruturas adequadas não estão menos, mas muito mais eficientes e sofisticadas. Em formações sociais como a nossa, na qual a contradição entre proprietários e não-proprietários é explosiva, o risco de uma tirania da maioria é enfrentado com rigor e profissionalismo.
Além de um eventual executivo que expresse uma certa maioria eleitoral ligeiramente comprometida com interesses populares ser obrigado a compor sua governabilidade com os partidos que compõem o poder legislativo, o filtro eleitoral garante que ali se represente o conjunto das facções das classes proprietárias, obstaculizando ao máximo a possibilidade da maioria real na sociedade se apresentar como maioria na chamada “representação”.
Uma das formas conhecidas, e não por acaso veementemente garantida na atual farsa da reforma política, é o financiamento privado de campanha em sua forma explícita. O poder econômico na sociedade capitalista sempre determina a disputa eleitoral, mesmo numa situação na qual se proíba o financiamento direto de empresários, seja por formas ilícitas e caminhos alternativos (que não deixam de agir mesmo na legalidade do financiamento privado) seja por seu poder indireto no controle de várias esferas da vida, da comunicação de massa, da cultura, do assedio que se funda no poder brutal que patrões têm sobre os trabalhadores nos locais de trabalho, etc.
Uma vez entrando neste canal e aceitando suas regras, que por um tempo favoreceram os governos petistas e sua continuidade, torna-se muito difícil sair, pelo menos sem rupturas consideráveis. Ocorre que é exatamente a dimensão da ruptura que foi abandonada no desenho da estratégia. Querer introduzi-la agora é uma artificialidade infantil, ingênua e, por uma motivo mais banal, impossível.
Nos termos atuais, para a burguesia inviabilizar o governo petista, basta o deslocamento do PMDB para um bloco de oposição.
Não tendo outra alternativa no horizonte imediato que não manter o rumo, a comandante tenta se manter firme no timão exercendo a arte de fazer de conta que não é com ela, enquanto caminha decididamente para a catástrofe. Para se manter cede aos interesses do capital e mergulha ainda mais na tentativa insana de manter a base aliada que se desfaz sob seus pés. Esta tática permite sobreviver no campo imediato, mas tudo indica que fortalece as condições da futura derrota eleitoral. Este é o paradoxo.
Não podendo mobilizar suas bases sociais que correm o risco de serem capturadas pela direita, pela ação em defesa de direitos, conquistas ou condições de vida (uma vez que o presente ajuste e a linha de governo praticada nos últimos doze anos caminharam no sentido contrário), resta a esperança de que, mais uma vez, a chantagem da necessidade do apoio a este governo contra a “direita” ou o “conservadorismo”.
Sabemos que a direita se move em várias frentes, é evidente a retomada de um conservadorismo sem máscaras e preocupante. Compreendemos que papel estes fatores ocupam na estratégia do desgaste visando uma futura derrota eleitoral do petismo, ou na possibilidade de antecipar este desfecho por uma interrupção do mandato da presidente. Mas a direita e a forma de manifestação do conservadorismo tem um papel, também, na estratégia governista. É o de desviar a atenção da brutalidade do ajuste e do real e evidente caráter do compromisso do governo com as condições necessárias à retomada da acumulação de capitais, criando uma cortina de fumaça que desvia a atenção para uma abstrata contraposição entre conservadorismo e progressismo.
Além de desviar a atenção do ataque operado contra os trabalhadores, a educação, a saúde púbica e tantas outras áreas, procurando desarmar a resistência que se ensaia nas greves e nas lutas sociais, há também a clara intenção de desvincular-se do governo que naufraga para, justificado pelo combate ao conservadorismo, manter a mesma estratégia e a continuidade do ciclo petista.
Não há solução para esta estratégia nos rumos escolhidos, ao mesmo tempo não há como buscar outros caminhos mantendo-se no essencial esta estratégia que ao nosso ver se esgotou.
No melhor cenário imaginado pela comandante agarrada ao timão é que o reajuste dê certo, a economia capitalista volte a crescer, o governo logre manter a aliança com o PMDB e tenha condições de disputar as eleições para renovar o mito. Vejam que o melhor cenário renova o caminho que os colocou no impasse em que se encontram.
É bom que lembremo-nos que, pelo menos na versão original da história, quando o lobo veio mesmo… ninguém acreditou no menino.
Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.