As imagens sobre o massacre de 34 mineiros por policiais fortemente armados suscitaram uma forte reação em todos aqueles que conservam na memória uma das lutas mais justas do século XX, que foi a batalha de décadas dos trabalhadores e da maioria negra da África do Sul contra o apartheid.
Todos aqueles que têm alguma vivência no movimento dos trabalhadores, mesmo sem ter pleno conhecimento das reivindicações e do desenrolar concreto da luta, naturalmente fica imediatamente do lado dos mineiros, brutalizados por uma polícia que veio ajudar a companhia mineradora a quebrar sua greve. Mas o estranho em tudo isso é que o principal sindicato mineiro, mesmo sem dirigir a luta, não denunciou os perpetradores desse bárbaro crime, dedicou-se a atacar o sindicato rival que deu apoio à luta e não se colocou inteiramente solidário a uma luta que, no momento de escrever esta nota, ainda persiste e envolve cerca de 3 mil mineiros, com a participação ativa das comunidades em que moram.
O apartheid econômico se mantém
Forçoso é verificarmos o contexto em que se dá essa greve e os fatos que a envolveram. O marco é dado pela transição negociada por Mandela e o Conselho Nacional Africano (CNA), que permitiu que as estruturas básicas de poder econômico ficassem nas mãos das grandes empresas. Mais do que isso, nesses 18 anos desde o final do apartheid, o CNA aderiu entusiasticamente aos preceitos neoliberais e favoráveis ao mercado e liderou uma onda privatista que vendeu por preços rebaixados algumas das principais empresas do país, demitiu centenas de milhares de empregados públicos, autorizou as grandes empresas sul-africanas a transferirem suas matrizes deslocadas para Londres, ficando ao abrigo da lei do país.
Um programa de promoção dos negros do país (o BEE- Black Economic Empowerment) e que, entre outras coisas, exigia a participação de negros na direção das empresas, permitiu que uma pequena elite negra tivesse acesso para participar de algumas grandes empresas. No entanto, as condições em que a maioria negra vive continuam muito, mas muito distante mesmo da elite branca e seus poucos parceiros negros.
Os índices sociais do país demonstram que o apartheid permanece em sua essência e o país é um dos recordistas mundiais em termos de desigualdade social: 39% da população vive com menos de 432 rands por mês (8 rands equivalem a cerca de 1 dólar americano) e o desemprego chega a cerca de 35-40% , sendo maior entre mulheres e jovens. Outra medida importante é que 5% da população apropriam-se de 43% da renda do pais. Como era de se esperar em uma economia que segue nas mãos dos grandes grupos capitalistas brancos, a relação entre a renda de negros e brancos segue quase a mesma dos tempos do infame apartheid: se em 1993 os brancos tinham uma renda 8,5 vezes maior que a dos negros, em 2008 essa relação era de 7,68 vezes (ver em http://dx.doi.org/10.1080/0376835X.2012.645639, acessado em 29/08/12). O índice de Gini, um dos que mede a desigualdade aumentou de 0,66 para 0,70 no mesmo período. Mas talvez a melhor medida da permanência e agravamento da desigualdade na África do Sul pós-apartheid é que a parte correspondente aos lucros na economia passou de 40% para 45% entre 1993 e 2009.
Como se corrompe um sindicato
Um dos setores mais importantes na economia sul-africana sempre foi a mineração, tradicionalmente as minas de ouro e cada vez as minas de platina, utilizada para joias e para catalizadores de carros. As condições de vida sempre foram muito duras: se durante o apartheid os trabalhadores viviam em dormitórios comuns nas próprias minas, agora vivem em barracos miseráveis nas comunidades ao redor das minas, com suas famílias, sem condições de saneamento, e sempre sujeitos às doenças profissionais características da profissão: a tuberculose e a silicose que, aliadas aos acidentes, reduzem drasticamente a vida desses trabalhadores. Na época do apartheid havia uma diferença salarial grande entre trabalhadores negros e brancos. Com o final do regime, a desigualdade não deixou de existir e é estimulada principalmente por meio da subcontratação, a fim de diminuir os salários médios, utilizando trabalhadores das regiões mais pobres do país e incontáveis trabalhadores migrantes, perfazendo cerca de 1/3 da força de trabalho.
O sindicato mais importante que representa historicamente os mineiros, o NUM (National Union of Mineworkers) foi fundado em 1982 e foi peça central na luta contra o apartheid e para construir a principal central sindical do país, a COSATU. No entanto, com o final do regime do apartheid, a íntima relação do NUM com o governo do CNA e sua política determinou mudanças importantes no seu papel. São crescentes as críticas às suas relações com as empresas mineiras, não é de admirar que seu último congresso em 2012 tenha recusado a luta pela nacionalização das minas, bandeira histórica do movimento na África do Sul.
Por outro lado, sua estrutura tornou-se uma via de ascensão social para os delegados sindicais e dirigentes. Há um mecanismo para promover isso, o NUM criou uma empresa em 1995, a Mineworkers' Investment Trust, que em 2011 possuía ativos de 2,8 bilhões de rands (quatorze vezes mais do que o ingresso anual advindo dos seus sócios) e que possui investimentos inclusive nas empresas de mineração, como a Lonmin. Esse fenômeno estimulou o enriquecimento de seus dirigentes. O exemplo mais gritante, mas não o único, é Cyril Ramaphosa, ex-dirigente máximo do NUM, que se tornou um milionário e acionista minoritário da própria Lonmin.
Mas a própria estrutura sindical mudou: tornar-se um delegado sindical no NUM significa um aumento salarial importante, mesmo para os que não têm liberação sindical, auferindo um salário de 3 a 4 vezes do que recebia como mineiro. Fica registrado como empregado do setor de pessoal e quando deixa de ser delegado sindical não mais retorna para o subterrâneo. (fonte aqui , acessado em 29/08/12).
Seus máximos dirigentes ganham salários milionários pagos pelo sindicato O salário que o sindicato paga ao atual secretário-geral, Frans Baleni, é de105 mil rands, ou seja cerca de vinte e cinco vezes o que ganha um britador. É bastante óbvio que esses fatos determinam uma mudança na atividade e na representatividade do NUM, especialmente entre os setores mais mal pagos, os subcontratados(somente 10% de seus membros são subcontratados), mesmo que ainda seja o principal sindicato mineiro do país . Em 2001, alguns dirigentes expulsos do NUM em 1998, sem acusações claras, fundaram um novo sindicato, o AMCU (Association of Mineworkers and Construction Union), que passa a fazer parte do movimento sindical mineiro. Com a perda de prestígio do NUM, especialmente na região das minas de platina, por conta de seu papel nas greves dos últimos anos, o AMCU começa a se fortalecer e a conquistar o direito de representar os trabalhadores em algumas minas. Não é possível ainda predizer o caminho que adotará o AMCU, mas o fato é que é parte do panorama sindical dos mineiros e não um sindicato criado pelas companhias mineiras como alega o NUM. Aliás, seria uma péssima ideia das mineradoras a de criar um sindicato que agora apoia uma greve que paralisa já por 22 dias o complexo de 28 mil mineiros de Marikana...
O conflito de Marikana
Com a crise mundial a partir de 2008, diminuiu a procura por platina por parte das empresas automobilísticas e as companhias mineiras procuraram diminuir ainda mais seus custos salariais. Com isso, várias greves e ocupações se desenvolveram na região da mineração de platina, com milhares de demitidos e alguns mortos. A violência policial é uma constante na África do Sul pós-apartheid: a polícia mudou a cor de seus agentes, mas não as suas práticas, como pudemos acompanhar nos vídeos sobre o massacre e na justificativa posterior a este pelas autoridades policiais. A insegurança com relação ao emprego, os aumentos dados a um setor de trabalhadores em detrimento de outros, os aumentos conquistados por outras minas vizinhas, são o combustível que levou 3 mil mineiros, os britadores, que com o corpo parcialmente coberto pela água, com britadeiras de 25kg, sob o risco de desabamentos e esmagamento por rochas, ganham cerca de 4000 rands líquidos (ou seja, cerca de 500 dólares), a entrarem em greve (e permanecem ainda quando este artigo está sendo escrito). Não conseguindo resolver o conflito, a mineradora apela ao seu recurso tradicional: chama a polícia. A ação policial foi claramente a de “dar uma lição” nos mineiros. Entrou em campo com armamento pesado, helicópteros, encurralou os mineiros e os massacrou covardemente quando estavam em uma colina que não era propriedade da empresa. Como disse a relações públicas da polícia momentos horas antes do massacre, “infelizmente, hoje é o dia-D”. O NUM e a COSATU em nenhum momento expressaram sua solidariedade incondicional com os mineiros massacrados e com a sua luta (até hoje não apoiam a luta, pois esta é pretensamente ilegal segundo as leis do estado capitalista da África do Sul), cobrindo de vergonha a gloriosa tradição da classe trabalhadora sul-africana, que sempre se guiou pelo princípio de que “an injury to one is an injury to all” (no Brasil se usaria o dito, “o mineiro é meu amigo, mexeu com ele, mexeu comigo”). O mesmo fez o Partido Comunista da África do Sul, que é parte do governo do CNA (além de participar da chamada Aliança Tripartite que governa o país, formada pela COSATU, CNA e o próprio PC) e que tem o Ministro de Educação, que preferiu atacar o sindicato dissidente e não se dissociar do governo que enviou a polícia e muito menos prestar sua solidariedade aos mineiros em luta.
Pior, após o massacre dedicaram-se a atacar o sindicato rival, dizendo que os operários tinham sido enganados, que eram atrasados, que a greve era demagógica. Quanta distância do heroico sindicato mineiro que defendia os trabalhadores negros super-explorados durante o apartheid. E desconhecem que a onda de greves no setor mineiro segue um padrão em que os operários se organizam, começam uma luta e pedem aos sindicatos que os apoiem. Por isso, vimos como o líder do AMCU foi ao local conflito no dia do massacre e pediu que desocupassem a colina e se retirou após a negativa. E a greve continuou após o massacre, organizada nas comunidades do entorno da mina e se estendeu a outras minas. Após o massacre foi como se todo um enredo ainda um pouco obscuro se fizesse evidente no país: a polícia é a mesma, as mineradoras são as mesmas, o sistema econômico essencialmente o mesmo, com a pequena adição de uma elite negra. O governo tenta dissimular sua responsabilidade indicando uma comissão por ele controlado para investigar os eventos, ao mesmo tempo em que o aparato judicial-policial parece uma cópia dos tempos apartheid: 259 mineiros grevistas foram presos pela polícia, espancados e torturados, e agora foram acusados de assassinato dos seus colegas mortos!
Em vez de prender e acusar os policiais implicados na operação e incriminar o Ministro responsável e o presidente Zuma como mandantes do crime, utilizam preceitos da época do apartheid para criminalizar aqueles que lutam pelos seus direitos!(aqui).Até agora o NUM não se manifestou sobre isso, nem o PC (este último somente pediu a prisão dos dirigentes do AMCU pelas mortes antes do massacre policial). A COSATU fez uma tímida declaração, em que reclama de supostos maus-tratos aos operários presos, mas em nenhum momento pede a sua libertação (http://www.cosatu.org.za/show.php?ID=6446 ), e chama a confiar nas investigações na comissão criada por Zuma. Várias organizações sindicais e democráticas criaram um organismo em Johanesburgo para coordenar a solidariedade com os mineiros: é a Marikana Solidairty Campaign.
Nesse contexto, o NUM está frente a uma encruzilhada: irá se consolidar como um sindicato amigo das mineradoras e cada vez mais representante dos trabalhadores de colarinho branco e dos que não estão no subsolo e ser superado por outros sindicatos ou retomará suas gloriosas tradições? Da mesma forma a COSATU, que terá seu congresso em setembro, terá que examinar a sua aliança com o governo do CNA e seu crescente peso nos setores mais bem pagos dos trabalhadores do país e o crescente distanciamento dos setores mais combativos e explorados dos trabalhadores.
O governo entrou em transe, desconcertado, tenta evitar a óbvia associação entre o massacre e a longa história do apartheid e de ser associado ao que já está se denominando o Sharpeville do CNA (referência ao massacre de 69 negros que se manifestavam pacificamente em 1960 contra a Lei do Passe, que impedia a livre circulação dos negros durante o apartheid, confinando-os nos bantustões e favelas imensas, como Soweto). Os representantes do NUM não podem pisar nas comunidades mineiras vizinhas, os 2 milhões de rands oferecidos por Cyril Ramaphosa para o enterro das vítimas foram rejeitados (graficamente os mineiros sabem inclusive que essa triste figura comprou recentemente um búfalo por 18 milhões de rands).
A rebelião dos pobres
O massacre de Marikana também se insere em um contexto de lutas importantes nas comunidades mais pobres que aumentaram significativamente a partir da assunção de Jacob Zuma como presidente. Essas mobilizações se contam aos milhares, segundo as estatísticas da própria polícia sul-africana, e são às vezes chamadas de protestos pela prestação de serviços pelas comunidades pobres ou mais genericamente de rebelião dos pobres. Vários ativistas morreram nas mãos da polícia, como Andries Tatane, professor, ativista, que participava de uma mobilização de 4 mil pessoas da cidade de Ficksburg no ano passado.
Começa a se cristalizar uma busca por explicações e alternativas a uma liderança nacionalista que, como tantas outras no continente africano, após a libertação da opressão nacional e/ou racial, começou a desenvolver uma política de manter as estruturas do capital e de criar uma burguesia negra a partir das estruturas do estado. É um processo doloroso, mas que irá se desenvolver no próximo período no país e do qual depende o futuro de milhões de trabalhadores sul-africanos.
Foto: Belle News.