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180911_minustahHaiti - PSTU - [Michaëlle Desrosiers e Franck Seguy] Port-Salut, pequena cidade costeira ao sul da República do Haiti, se destaca por suas praias atraentes e sua paisagem radiante como um cartão postal. Há uma semana, porém ganhou um novo elemento em sua reputação: ao menos quatro militares uruguaios da mal intitulada Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) violaram coletivamente Johnny Jean, um jovem garoto de 18 anos.


Se o ato ocorreu no dia 28 de julho de 2011, foi somente no final de agosto que começou a ocupar os noticiários. Em parte, devido ao fato de o vídeo do crime ter sido difundido na Internet. Na verdade, os próprios militares filmaram a cena. E a utilizaram como filme para deleitarem-se com sua proeza. E o que é pior, na presença de jovens adolescentes da região, todos amigos da vítima. Foi precisamente um deles que utilizou seu telefone celular para gravar algumas seqüências do vídeo que foi difundido pela agência Haiti Press Network (HPN). O vídeo só ficou disponível algumas horas na rede. Não se sabe se tratou de uma ação diplomática do governo uruguaio ou da própria ONU: Youtube justificou a retirada do vídeo dizendo que sua política não é a promoção do ódio, dado que muitos comentários (mais de 4 mil) condenavam a barbárie da ONU.

Foi necessário o emprego de soldados da Minustah para devolver Port-Salut a seu remanso de paz. Em 1995, por exemplo, a cidade contava com apenas 40 policiais. Enquanto o pessoal da polícia nacional não deixou de aumentar, a cidade não tinha mais que 7 policiais em 2004. Já que era quase impossível registrar um incidente grave fora o roubo de um cabrito ou de alguns sacos de batatas. Contudo, paradoxalmente, desde 2004, há um contingente da Minustah para “estabilizar” Port-Salut. Dado que a natureza tem horror do vazio e que, como é bem sabido, o ócio é a mãe de todos os defeitos, os militares deveriam encontrar algo para justificar sua presença. Pouco a pouco introduziram: a prostituição de menores e o “intercâmbio” de comida por produtos alucinógenos e/ou ilícitos como o tabaco, o álcool, a ‘marijuana’. Tudo isso é resultado do informe tornado público pela Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos (RNDDH), de 4 de setembro de 2011.

A violação do jovem Johnny se inscreve nesse marco. Na verdade, para conseguir sua sobrevivência diária, muitos adolescentes e jovens, filhos e filhas de camponeses empobrecidos como Johnny, estabelecem relações de proximidade com os soldados da ONU empregados em distintas regiões do país. O jovem Johnny havia se vinculado amistosamente com um dos soldados do contingente uruguaio, chamado “Pocho”. Este último ao que parece não participou do repudiável ato. E até se viu impedido de lhe ajudar, já que os bandidos haviam fechado a porta do quarto no qual realizaram este ato criminoso para impedir que os gritos do jovem garoto chegassem aos ouvidos de seu “amigo” Pocho.

A opulência na qual vivem os soldados ‘onusianos’ instalados no Haiti é, ao menos, chocante. Nas cidades, se instalam nos melhores hotéis, passeiam nas praias nos finais de semana, sobretudo em Port-Salut que são especialmente bonitas. Como contrapartida, compram os mais jovens, os prostituem e os violam. Esses militares não só se beneficiam de uma impunidade absoluta, já que seu estatuto de soldados da ONU os coloca acima das leis haitianas, mas também o poder de seu salário representa mais que um insulto para os pobres policiais e outros funcionários do Estado haitiano. Uma comparação: o soldado uruguaio recebe em seu país um salário equivalente a 400 dólares, enquanto que na Minustah recebe 1.500 dólares ao mês, o que o permite ter uma vida folgada no Haiti e até guardar para uma comprar uma casa modesta ao voltar a seu país. A Minustah paga ao governo uruguaio quatro vezes mais do que recebe cada soldado como salário, ou seja, a ocupação militar de outro país é um negócio rentável para o Estado uruguaio e seu Ministério de Defesa.

O governo uruguaio da Frente Amplo (presidido pelo tupamaro José Mujica), argumenta que esta violação coletiva perpetrada contra Johnny Jean não é mais que um incidente isolado e que os únicos culpados seriam os quatro soldados. Esquecem assim do papel das forças de ocupação. Por isso, é necessário refrescar a memória.

Contexto de machismo e opressão

Há que se destacar que a violação de Johnny não é um fato acidental. Na verdade, a menos de um ano do desembarque da Minustah no Haiti – mais concretamente em 18 de fevereiro de 2005 – três “capacetes azuis” paquistaneses violaram uma jovem garota de nome Nadége Nicolas. No entanto, apesar de se tratar de um ato criminoso que causou a ira popular, sobretudo das organizações feministas, o caso segue impune e foi arquivado posteriormente. No caso atual, a Minustah tem esgrimido o chicote da moral cristã, machista, fortemente dominante no Haiti. Tanto os cristãos como os homens da lei e outros formadores de opinião, não demoraram em mostrar sua abominação por aquele ataque à dignidade e à identidade (masculina) do jovem garoto. Em outras palavras, ele teria deixado de ser homem pelo fato de haver sido violado por quatro homens armados. O que na cultura machista significa que deixou de existir.

É necessário destacar que este jovem é um produto da classe camponesa haitiana. Seu nível de estudos confirma essa realidade. Aos 18 anos, Johnny freqüenta o quinto ano escolar primário. Não pôde retornar à escola para o ano acadêmico 2010-2011 por falta de dinheiro. É o quarto filho de sua mãe. Seus irmãos não são do mesmo pai que ele. A diferença das assinaturas certificadas pelo informe da RNDDH permite destacar esse fato significativo.

Ter vários filhos de pais diferentes é o resultado de dois fenômenos intrinsecamente vinculados que se encontram nas camadas populares haitianas: o abandono paterno e seu corolário, a monogamia em série. A mulher/mãe de um filho abandonado por seu progenitor se vincula a outro homem para poder sobreviver com seu filho. Desta conexão nasce um novo menino, abandonado também por seu novo progenitor. Reinicia-se com um terceiro homem com a mesma preocupação: encontrar uma maneira para que suas “crianças sem pai” possam sobreviver. Nessa linha, terá várias crianças de pais diferentes, de diferentes nomes, obviamente, sempre e quando aquelas crianças tiverem a “oportunidade” de serem reconhecidas legalmente por seus pais biológicos.

Guerra aos mais pobres

Em todas as suas ações, a ocupação dirigida pela ONU aponta sistematicamente contra o povo empobrecido. Suas violações e seus assassinatos ocorrem nos bairros miseráveis como Cite-Soleil; contra as jovens mulheres e os indefesos jovens. A esse respeito, o RNDDH informa do caso muito conhecido do enforcamento de um menor de 16 anos, Gérald Gilles, em uma base militar dos “capacetes azuis” nepaleses em Carénage, Cap-Haitien (segunda cidade do Haiti, localizada no norte do país). A Minustah tentou fazer esse crime passar como um suicídio. Assim como Johnny Jean, Gérald Gilles fazia “intercâmbio” com os soldados da ONU, ou seja, prestava-lhes serviços em troca de comida. Assim, como uma verdadeira força de ocupação, a Minustah utiliza a violação como arma de guerra. Humilha, explora, submete os mais pacíficos, que apenas entram em contato com ela para garantir sua sobrevivência, ou simplesmente porque são pobres; aqueles e aquelas cuja pele é mais escura porque se queimou sob o sol escaldante do Haiti; aqueles e aquelas que tiveram a infelicidade de viver em Cite-soleil e demais “zonas sem direitos”.

Em sua guerra contra os mais pobres, a Minustah – como tropa de ocupação – introduz uma diferença de importância em relação a outras invasões militares sobre o solo haitiano. Na verdade, sob a ocupação norte-americana no Haiti (1915-1934), o arsenal racista dos Estados Unidos havia se desencadeado tanto contra os mulatos como contra os negros e negras, ricos e pobres. Isso obrigou, inclusive aqueles que inicialmente apoiavam a invasão, a integrar-se na luta contra a ocupação. Ainda que sob sua forma “mais pacífica”: a propaganda escrita. Isso contribuiu para reforçar a luta que impulsionou o movimento dos Cacos, antes tratados de vagabundos tanto pelos invasores como pela classe dominante majoritariamente mulata. A Minustah, mais vigilante se poderia dizer, reprime quase que exclusivamente os mais pobres, para assegurar sua legitimidade ante a burguesia “grand-narcho” haitiana e à pequena burguesia, entre os quais recruta a parte fundamental de seu pessoal civil local. Assim, podem violar, poluir, contaminar e mentir tranquilamente dado que seus interesses se sintonizam com os dos “cidadãos respeitáveis”.

Amordaçar, humilhar, violar, prostituir

A violação coletiva deste jovem garoto não é o último ato da Minustah denunciado pela população de Port-Salut. Na verdade, durante esse mesmo mês de agosto, uma organização local havia denunciado em uma nota de imprensa as “más atitudes” do contingente uruguaio. Em resposta, a Minustah havia realizado sua própria investigação. Essa investigação, obviamente, se pronunciou pela negação total e categórica dos fatos, concluindo que as denúncias não tinham nenhum fundamento. Entre as acusações aos soldados uruguaios estavam: ‘A prostituição de menores, contaminação do meio ambiente, consumo de maconha na presença de menores, comportamento humilhante, insultante, desrespeitoso, até aos cidadãos de Port-Salut’. O interessante nisso tudo é que alguns dias antes da publicação do vídeo da violação coletiva do jovem garoto de 18 anos na Internet, a força da ONU alardeava de sua pretensa investigação, e acusava à organização Credop de difamação. Pois agora, a violação e sua publicação na Internet indicam que não só os militares violaram e humilharam o jovem garoto, como que se divertiram com isso.

Se a Minustah atualmente ocupa de novo o Haiti, não se deve às preocupações pela formação do novo governo, ou a reabertura das classes, ou porque um novo estudo acaba de demonstrar sua implicação na transmissão criminosa da epidemia de cólera; epidemia que até agora matou mais de 5 mil haitianos e haitianas. Tampouco se deve a uma nova acusação sobre o despejo de fezes nos rios do país, como foi a prática desde outubro de 2010.

Pelo contrário, a Minustah vê sacudida sua imagem de missão ‘humanitária’, deixando claro sua natureza ‘maléfica’. Seus crimes ultrajantes e sua impunidade, encobertas pela chamada ‘comunidade internacional’ ficam em evidência. A Minustah é machista e racista. Está abertamente em guerra contra as camadas populares. Sua participação ativa na repressão contra as manifestações em todo o país, sobretudo as que tem lugar no marco da luta pelo reajuste salarial, constituí uma testemunha contundente.

A esse respeito, o mesmo informe da RNDDH indica: ‘Em 12 de maio de 2011, Géna Winderson, estudante de sétimo ano no Colégio Centro de Formação Clássica de Verrettes, departamento de Artibonite, de quatorze anos, foi atingido por dois projéteis disparados por soldados da Minustah. Esse incidente ocorreu no momento em que alguns do Colégio Jacques Stephen Alexis organizavam uma manifestação contra a demissão de um professor’. Na realidade, toda resistência popular e de classe é sistematicamente reprimida pela missão da ONU. Amordaçar, humilhar, violar, prostituir: é esse o credo da Minustah.

A seguir, um extrato do informe da RDDDH sobre alguns casos de violações, torturas, assassinatos e detenções ilegais e arbitrárias perpetradas pela Minustah:

1. Em 18 de fevereiro de 2005, três soldados paquistaneses do contingente da Minustah instalados em Ganïves violaram Nadeige Nicolas;

2. Em 20 de março de 2005, Robenson Laraque, jornalista da Rádio Tele Contacto, foi mortalmente ferido por projéteis disparados por soldados da Minustah que expulsaram os antigos militares da polícia de Petit-Goave;

3. Em 26 de novembro de 2005, em Carrefour Trois Mains, sobre a estrada do Aeroporto, Marie Rose Précéus foi sodomizada e violada por um soldado jordaniano;

4. Em 20 de dezembro de 2006, Stephane Durogéne, estudante do terceiro ano do Centro de Formação Clássico e Econômico (CFCE) recebeu dois disparos no olho esquerdo por dois soldados da Minustah enquanto passava perto da Delegacia de Delmas 62;

5. Em 3 de novembro de 2007, cento e onze ‘capacetes azuis’ do Sri Lanka se envolveram em um caso de abuso e exploração cujas vítimas são menores;

6. Em 29 de maio de 2008, o policial Lucknis Jacques, da Delegacia de Cite-soleil, foi perseguido por soldados da Minustah;

7. Em 6 de agosto de 2008, soldados da Minustah maltrataram dois policiais, Donson Bien-Aimé e Ronald Denis, da Delegacia de Cite-Soleil. Esses fatos foram perpetrados contra as vítimas apesar do fato de terem se identificado claramente;

8. Em 18 de agosto de 2010, um menor órfão de 16 anos que respondia pelo nome de Gérald Jean Gilles foi encontrado pendurado em uma amendoeira na base dos soldados nepaleses da Minustah, situada em Carénage, Cap-Haitien. Esse menor frequentava a base e prestava serviços aos soldados;

9. Na metade de outubro de 2010, capacetes azuis nepaleses da Minustah baseados em Mirebalais, são acusados de provocar e propagar o cólera no Haiti pelo derramamento de resíduos humanos nos rios Boukan Kanni e Jenba, o que causou consideráveis perdas humanas.

Esses fatos não são exaustivos. No entanto, em todos os casos previamente mencionados, a RNDDH responsabiliza a Minustah e por consequência a ONU; já que é inconcebível que soldados contratados em uma força da ONU, funcionem por fora de toda norma legal, se dediquem a atividades repudiáveis, e se beneficiem da imunidade penal conferida pela ONU.

* Sociólogos e militantes da esquerda haitiana

Publicado originalmente em www.alencontre.org/


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