Concedendo credibilidade apenas às vozes da oposição conservadora, os veículos hegemônicos de comunicação, em nossos país, vêm apresentando contornos noticiosos aterrorizantes, em que chamam a atenção preocupações com a lisura da eleição. Com isso, salientam um pretenso “autoritarismo” do governo de Nicolás Maduro.
A respeito, pretendo problematizar a tentativa de monopólio do significado de democracia, pela mídia tupiniquim, e o perfil das matérias políticas de dois jornais venezuelanos de oposição ao governo bolivariano, El Nacional e La Verdad, às vésperas da eleição.
Isso porque a crítica à “ditadura bolivariana”, habitualmente, é acompanhada de denúncias em torno do cerceamento das liberdades de opinião e de imprensa, liberdades intrinsecamente associadas a ideais, sociedades e governos comprometidos com a democracia.
A democracia como um conceito controverso
Somente a poucas décadas a democracia alcançou um status de símbolo generalizado e internacionalmente positivo. Contudo, forçoso frisar, contornos atribuídos à democracia, há muito, são objetos de disputa política e intelectual.
Grosso modo, uma concepção restrita e mais experimentada de democracia guarda relação direta com a ideia de representação, isto é, o exercício da vontade popular por meio de intermediários eleitos.
A capacidade decisória tende a se limitar aos representantes a quem os eleitores conferem o poder sobre a coisa pública. Uma perspectiva democrática bastante conhecida e usual.
De tão disseminados o experimento e a ideia, um importante pressuposto passa despercebido. O filósofo John Stuart Mill, em sua candente defesa da representação, tinha como receio maior a emergência potencial do que chamava de “tirania da maioria”.
Pensadores dotados de laivos antidemocráticos, mas não necessariamente antirepresentativos, demonstram temor em comum. O francês Gustave Le Bon classificava a maioria, ou seja, os trabalhadores pobres, enquanto “multidões irracionais”. Destituídas, pois, da legitimidade de participação nos negócios públicos.
O economista Hayek, por sua vez, defendia uma gerontocracia, um regime com direitos políticos de exercício de mando apenas reservado aos velhos. O governador Geraldo Alckmin (PSDB/SP) anda levando ao extremo as sugestões do papa do neoliberalismo, em seu arbítrio contra a espetacular garotada estudantil politizada.
Por outro lado, as origens do ideal de democracia atento a uma ampla participação popular são muito remotas. Cabe apenas destacar que, na era moderna, teve em Spinoza um defensor do controle social dilatado sobre as ações do governo, assim como em Rousseau, que preconizava a participação política ampliada sobre o processo decisório, notadamente na formulação das leis.
Na contemporaneidade, Lenin, seguindo a trilha rousseauniana, enfatizou a revogabilidade dos mandatos eletivos, enquanto eventual instrumento de controle público sobre a ação dos representantes. Rosa Luxemburgo advogava a experiência dos conselhos populares, contra o burocratismo do Estado e o desapossamento de poder da maioria, bem como Carole Pateman salienta o caráter educativo e libertário da participação.
Isso posto, sem negar a dimensão representativa da democracia, incontornável por motivos práticos, a experiência política do bolivarianismo na Venezuela tem procurado compatibilizar o instituto da representação com práticas participativas.
Uma democracia que valoriza o uso do referendo popular, prevê a revogabilidade dos mandatos eletivos e o envolvimento direto de organismos populares na gestão e fiscalização de programas, particularmente sociais, promovidos pelo Estado. Uma “pedagogia dos oprimidos”, conforme Altamiro Borges (“Venezuela: originalidade e ousadia”, editora Anita Garibaldi, 2005), fazendo referência ao mestre Paulo Freire.
Portanto, é essa experiência democrática, que institucionalmente procura motivar a participação das classes populares, o que leva à grande mídia brasileira, e de outras paragens, a desqualificar o governo venezuelano.
Uma experiência que se choca frontalmente com os sentidos que aquela atribui à democracia. Na ótica conservadora midiática, os “deserdados da terra”, com voz e vez na política, nada mais formam do que uma irracional “tirania da maioria”.
Isso posto, cabe indagar: a “imprensa independente” da Venezuela está censurada pela suposta “ditadura” bolivariana? Ou está opinando sobre a eleição parlamentar? Vejamos.
Um olhar sobre El Nacional e La Verdad na eleição legislativa
Em função do renitente noticiário veiculado em nosso país, tive a curiosidade de observar capas e textos jornalísticos, de jornais venezuelanos, postos em circulação nos últimos dias. Bateu uma grande curiosidade sobre o perfil da cobertura da eleição pela imprensa opositora.
Selecionei dois jornais. Um deles, El Nacional, de Caracas, possui tiragem de cerca de 100 mil exemplares diários. O outro, La Verdad, periódico de Maracaibo, 40 mil exemplares. Comecemos com a produção jornalística de El Nacional.
Na sexta-feira (04/12), El Nacional publicou matéria afirmando que Nicolás Maduro havia “entregado 900.000 moradias populares no estado de Bolívar”. Com isso, o presidente estaria “violando as leis eleitorais” (1).
No mesmo dia noticiou discurso de Alan García, ex-presidente peruano, em que ressaltava pedidos “aos soldados da Venezuela", para que “não continuem sendo usados por esta ditadura, que é a mais funesta e dura que já existiu, com a pior taxa de desemprego que existe”.
Hoje, o mesmo jornal veicula matéria em que questiona o desemprego e a eficiência das empresas estatais. Estas “não produzem ou operam a quarta parte de capacidade devido à má administração, à burocracia, ao nepotismo e ao clientelismo”.
No tocante às colunas de opinião, o periódico publicou, também hoje, artigo do historiador mexicano Enrique Krause, tecendo inúmeras críticas ao governo bolivariano, como a “corrupção” que “nestes anos na Venezuela tem alcançado um nível sem precedente na história da América Latina”. Ademais, afirma que o “regime chavista plantou o ódio na alma dos venezuelanos”, criando uma “divisão artificial entre o ‘povo’ e o ‘não povo’” (2).
La Verdad, por sua vez, na edição de sexta-feira (04/12), reverberou acusações do Sindicato Nacional de Trabalhadores da Imprensa, a respeito de “ações de censura” do governo em face de alguns veículos de comunicação. Noticiava igualmente o “descontentamento” de uma senhora chavista com o governo de Maduro.
Asseverava a matéria de La Verdad que pela “primeira vez em 17 anos a oposição figura como favorita para tomar o controle do parlamento, ou Assembleia Nacional, de onde promoveria profundas mudanças” (3).
Na seção de opinião, o advogado Israel Fernández Amaya fazia ponderações desabonadoras sobre o governo e a situação do país, alegando a prevalência da “anarquia”. Assinalava ainda que o país se depara “com decadente compromisso social na administração pública e uma moralidade política que decepciona. É a confrontação clássica do bem contra o mal, o que se medirá neste 6 de dezembro” (4).
Convenhamos, no tocante à estridente acusação de “censura” às liberdades de imprensa e opinião, considerando as matérias e os artigos jornalísticos mobilizados, sobretudo em um período acalorado como é uma eleição, não resta muita dúvida de que a grande mídia brasileira anda fazendo terrorismo. A circulação de críticas ao governo Maduro, as mais variadas, longe está de ser inibida na imprensa venezuelana.
Roberto Bitencourt da Silva – Doutor em História (UFF), professor da Faeterj-Rio/Faetec e da SME-Rio.
(1) http://www.el-nacional.com/tu_decides_2015/Maduro-Ley-Procesos-Electorales-Bolivar_0_750525096.html ; http://www.el-nacional.com/tu_decides_2015/Ex-presidente-Peru-espera-Maduro_0_750525110.html
(2) http://www.el-nacional.com/economia/empleos-pierden-caida-aparato-productivo_0_750525177.html ; http://www.el-nacional.com/enrique_krauze/Venezuela-principio_0_750525100.html
(3) http://www.laverdad.com/politica/88034-denuncian-censura-a-la-prensa-extranjera-en-comicios.html ; http://www.laverdad.com/politica/88072-el-miedo-protagoniza-elecciones-este-domingo.html
(4) http://www.laverdad.com/opinion/88011-votar-por-la-diginidad.html