No transcorrer das últimas semanas vem se desenvolvendo na Argentina uma dinâmica de ofensivas politicas de setores opositores a Cristina Fernánder de Kirchner que confrontam de forma direta com o governo e suas práticas. Ainda mais, setores políticos concentrados na esquerda partidária também se posicionam criticando ambos setores complexando mais e mais um quadro de disputa que antecede à luta eleitoral pela Presidência, a se desenvolver em outubro desse ano. O fator que dirime águas nessa oportunidade é a duvidosa morte do fiscal federal Alberto Nisman, quem no momento da sua morte encontrava-se próximo a apresentar oficialmente perante o Congresso Nacional uma denúncia à Presidenta da República. A justificativa da acusação sustenta-se no suposto delito de encobrimento de suspeitosos iranianos de ter realizado o atentado terrorista à Asociación Mutual Israelita Argentina (AMIA) em 1994, que resultou em 85 mortos.
Na verdade, a partir da morte do fiscal, os diversos setores político-partidários, disputam abertamente o espaço da mobilização social nas ruas. As manifestações, como dinâmica contestadora de reclamação e visibilidade, tem se transformado nos últimos meses mais numa vitrine para os meios, que transmitem a modo de competência a quantidade numérica de mobilizados, do que no espaço de “intersubjetividade crucial” tradicional, revelador de exigências de mudança social. Assim foi demonstrado pela marcha opositora do dia 18 de fevereiro, e recentemente, em 24 de março, em duas marchas que acompanharam o dia da memória, a verdade e a justiça, lembrando a data do inicio do último golpe militar.
Certamente, o caso remete a outros recentes na região, como o das mobilizações de junho de 2013 no Brasil ou as da Venezuela em março de 2014; ou as mais recentes em São Paulo. O surpreendente é que se remeter “à rua” hoje, não significa fazer referência exclusiva a setores populares progressistas senão a setores politicamente conservadores que encontram no espaço público um cenário de pressão legal.
Historicamente, a marcha a pé sob as ruas e caminhos tem sido considerada o repertório de mobilização social e político mais utilizada para a manifestação de descontentes e exigências populares. Vale salientar que no marco do sistema capitalista, as reclamações e reivindicações são orientadas ao Estado, ator privilegiado “mediador” da disputa estrutural entre o capital e o trabalho. Se entendermos o protesto social como uma ação política contenciosa, deliberada, poderíamos afirmar que esta se expressa em “repertórios”. O conceito de repertório, criado pelo sociólogo estadunidense Charles Tilly, remete as práticas, modos de visibilidade e rotinas de expressão pública de descontente. O escracho, a ocupação de terras, os plantões e as marchas são alguns dos mais comuns. Os repertórios transformam-se com o tempo e são impactados por processos vinculados à mudança de relação entre o Estado e a Sociedade. A desproletarização e a reconfiguração do funcionamento do Estado na década dos anos 70, por exemplo, dão conta deste tipo de reconfiguração. O certo é que o conceito de repertório está associado à especificidade da cultura, e sobre tudo à cultura política como plano de fundo das práticas e aspirações de mudança possível.
Na América Latina toda, a rua tem sido protagonista de repertórios e atores diferentes mais com “semelhanças de família”. Os movimentos de matriz sindical foram os protagonistas das grandes mobilizações que exigiram e acompanharam a transição à democracia na década dos anos 80. Enquanto o eixo estava na disputa salarial própria de um tipo de modernidade, o espaço público serviu para paralisar as grandes cidades na demanda de direitos civis e sociais. A década dos anos 90, a mudanças esteve marcada por mobilizações menos definidas pela pertinência a um emprego e mais pela carência dele. Os “sem” ocuparam o espaço intensificaram as exigências a fim de ampliar os direitos sociais em democracia. Ocuparam as ruas e os caminhos até os primeiros anos dos 2000 os sem terra, os sem trabalho, os sem teto, os sem ingresso digno, os sem recursos naturais. É assim como, partindo da perca de centralidade do movimento operário "clássico", que se evidência o surgimento desses setores sociais politicamente excluídos que com veemência questionaram as medidas neoliberais implementadas.
Contudo, como se relacionam com esses processos de mobilização aqueles que assistimos no presente? Como é que a rua foi se convertendo em espaço de luta política de setores conservadores?
Ao calor dos governos caraterizados como progressistas, a conflitividade social foi mudando de forma e conteúdo. Longe de se cristalizar em um campo minado por movimentos sociais autônomos em luta por radicalizar as promessas iniciais realizadas por Dilma, Cristina ou Chavez, alguns movimentos assumiram as bandeiras dos novos líderes como próprias, ressignificando a sua luta. Este processo se adicionou à perda de motivações que antes eram o núcleo de demandas dos movimentos: atribuições sociais, geração de emprego, melhores condições de saúde e educação, garantia de direitos básicos. Contudo, ao lento compasso musical do abandono da rua como espaço de confronto, foi ocorrendo uma mudança das figuras que ocuparam o referido espaço. Setores críticos que desconheciam o espaço da mobilização encontram hoje na marcha uma prática destituinte. Amparados na memória de processos de crítica e destituição em 2001 na Argentina, 2003 na Bolívia e 2000/2005 no Equador, a atual oposição se apropria do repertório dos movimentos sociais.
A atual era das novas mobilizações abre um sem fim de confusões deliberadas que, dependendo da lente com que se olha, leva a análises de conjunturas variadas e, inclusive, deliberadamente equivocadas. Por um lado, a mobilização de setores conservadores se apropria da rua manifestando no discurso a vontade de ampliação democrática – em reminiscências memoriais ao processo de transição democrática–, por outro lado, é invocado um espírito democrático para deslegitimar opções francamente democráticas. Em paralelo, projeta-se um tipo de mobilização que desconhece bandeiras político-ideológicas, que sempre tem sido parte constitutiva de uma marcha, e consagra–se a valores universais como a paz, a liberdade e a justiça.
Reconhecer estas diferenças e olhar com objetivo grande angular é fundamental para compreender posições políticas e interesses. A disputa pela rua na América Latina é, sem dúvida alguma, muito mais do que só um símbolo.
Victoria Darling é doutora em Ciências Políticas e Sociais pela Universidad Nacional Autónoma de México e professora da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila).
Referência:
Auyero, J. (2002): La protesta. Retratos de la beligerancia popular en la Argentina Democrática. Buenos Aires. Libros del Rojas-UBA.