A sobreexposição midiática da Venezuela e a sua (ir)realidade recorrente funciona por picos informativos - hoje provavelmente estamos num deles. Esta sobredose informativa não costuma traduzir-se numa maior compreensão geral do que lá ocorre, antes pelo contrário.
O eixo midiático composto pelos principais meios de comunicação dos Estados Unidos, espanhóis, e os da direita latino-americana, trabalha arduamente para marcar a agenda informativa sobre a Venezuela com o objetivo de sedimentar a ideia de que estamos perante um “Estado falido” que atravessa uma crescente deriva repressiva. No meio de tanto barulho não é fácil compreender a situação venezuelana fora das lentes dos que estão dispostos a tudo para acabar com o processo aberto por Hugo Chávez em 1998.
A atual recessão da economia venezuelana (em 2014 o PIB caiu aproximadamente 3%) e a série de desequilíbrios que apresenta (nos últimos dois anos a inflação superou os 50% anuais, há escassez em vários itens da cesta básica, e além disso atualmente coexistem três mercados cambiais legais, com uma diferença entre o maior e o menor de mais de 27 vezes), sugere que estamos diante do esgotamento do atual modelo de gestão econômica. Nesta situação, os sectores antichavistas sustentam que o que está esgotado é o “socialismo do século XXI”, ou o “modelo chavista” e nada mais.
Pela nossa parte, a tarefa é mais afinar o diagnóstico do que está a acontecer, do que comprar o pacote pré-fabricado do veredito interessado, mais ainda tendo em conta que o que agora ocorre na Venezuela pode ser o espelho do nosso futuro, caso se alterem uma série de condições das economias latino-americanas.
A economia venezuelana
Com um PIB que equivale aproximadamente a 70% do argentino, e 30 milhões de habitantes, a Venezuela é um dos quatro países com maior PIB per capita da região (aproximadamente 12 mil dólares anuais) e o segundo menos desigual da América Latina, a seguir ao Uruguai.
A particularidade mais relevante está na sua aguda condição monoexportadora, já que as vendas petrolíferas, na sua maioria sob controle estatal, representam aproximadamente 96% do total das exportações. Isto por sua vez relaciona-se com outro elemento diferenciador: a Venezuela é dos poucos países com um estrutural superávit comercial e de conta-corrente, e um sistêmico déficit de conta capital e financeira.
Isto é, uma parte considerável do rendimento que a Venezuela capta do mercado mundial pelas exportações petrolíferas acaba por ser devolvida ao resto do mundo na forma de depósitos em moeda estrangeira. O segundo item de exportação do país das Caraíbas são os dólares. Nos últimos dois anos, segundo o Banco Central venezuelano, acumulou-se, por baixo, uma fuga de divisas de uns 150 mil milhões de dólares, quase dois anos completos de exportações. Uma cifra por demais relevante num palco atual de graves problemas de restrição externa (disponibilidade de divisas).
Se alguém acha que na Venezuela se vive no socialismo, tem de saber que 70% do PIB está nas mãos do setor privado, e tanto grande parte da banca quanto do comércio exterior são geridos por empresários, tal como acontece nos outros países.
Há, porém, uma série de controles que a diferenciam, fundamentalmente o controle de preços em vários produtos que fazem parte da cesta básica, e o controle cambial (limitação da concessão de divisas). Vários produtos são subsidiados, o mais extremo dos quais a gasolina: encher o depósito sai mais barato do que a gorjeta que se dará ao empregado da bomba de gasolina, literalmente.
Os emergentes e os problemas aparentes
Os primeiros sintomas de esgotamento econômico aparecem entre meados e finais de 2012, quando começa a aumentar o valor do dólar paralelo ou dólar do mercado negro. Até esse momento, através do controle do câmbio, o dólar paralelo mantinha-se um pouco acima do oficial. A procura de dólares por parte de quem tinha excedentes em moeda local e queria resguardá-los da inflação ou aceder ao mercado mundial para alguma transação ou depósito era satisfeita tanto pelas divisas geradas pelas exportações como pelo endividamento com o capital financeiro internacional.
Em finais de 2012, já com uma dívida externa crescente, o governo decidiu travar o mecanismo de emissão de títulos para continuar a injetar dólares, e portanto esta procura de dólares insatisfeita e em alta, devido à alta inflação, já não encontra satisfação no mercado legal e começa a empurrar para cima o valor do dólar no mercado paralelo. Este crescente diferencial cambial incentivará por sua vez o contrabando de extração, isto é, a venda ilegal de produtos venezuelanos ou importados pela Venezuela em países próximos para obter moeda estrangeira, que será trocada com altos níveis de rentabilidade no mercado paralelo.
O mesmo fenômeno que está por trás da disparada do dólar paralelo, isto é, a insuficiência do rendimento do petróleo para satisfazer a procura crescente de dólares, também começa a restringir o volume das importações: entre 2012 e 2014 (dois anos), as importações desceram mais de 25%.
A restrição externa, derivada de uma redução relativa do rendimento do petróleo, acaba por se transferir para a inflação interna e para a escassez por duas vias que reduzem a oferta real de bens: a) a queda das importações provoca uma menor disponibilidade tanto de bens finais como de bens intermediários para a produção interna; e b) o contrabando de extração, derivado fundamentalmente do crescente dólar paralelo.
O açambarcamento em massa de produtos por parte dos setores empresariais, tanto para especular com o processo inflacionário como para provocar o descalabro econômico e dessa forma alterar a correlação de forças no palco político (“guerra económica”), é também outro fator coadjuvante da inflação e da escassez. A estes fatores é preciso acrescentar que a medida de proteção do poder aquisitivo adotada pelo governo (o controlo de preços), uma vez rebaixada pelo processo inflacionário e no marco de uma economia em grande parte sob controle privado, acaba por ter um impacto contraditório, na medida que desestimula a produção e a distribuição dos bens sob o regime de preços regulados, contribuindo por essa via também para uma maior escassez.
Desequilíbrios
Como o governo é expressão dos setores populares e médios, não foi aplicado o clássico ajuste ("pacotaço") que consistiria na contração da demanda agregada e na libertação dos preços. Se isso tivesse sido feito, uma megadesvalorização e uma inflação generalizada teria se reequilibrado, mas com o custo de um empobrecimento generalizado de vastos setores sociais.
Como o "pacote" não foi aplicado, os desequilíbrios persistem. O controle de preços que, devido à redução da oferta real de bens, se traduz na escassez e na ocorrência de filas, acaba por "democratizar" o ajuste, na medida em que todas as pessoas acedem a uma porção menor de bens, mas os de menor poder aquisitivo não são condenados a ficar fora do mercado de consumo básico.
Se concordamos que a origem aparente do problema está na restrição externa, então temos de voltar ao fenômeno da fuga de divisas. Cabe perguntar: como é possível que sendo o Estado que controla a oferta de divisas no país, ainda assim ocorra uma saída de capitais de enorme magnitude que, no longo prazo, traz restrições às importações e, no marco do controle do câmbio, dá origem a um mercado paralelo que distorce a economia em geral?
A resposta deve ser procurada na existência de setores empresariais com capacidade de concentrar enormes excedentes em moeda local, cuja manipulação requer a sua transformação em divisas, seja para resguardar o seu valor mediante depósitos ou investimentos no estrangeiro, seja para importações suntuosas e para viagens para o exterior. Na concentração do rendimento mas, antes, no controle privado de grande parte do produto social e de áreas chave da economia, está a origem do problema econômico venezuelano.
A crise em curso na Venezuela nada nos dirá sobre como funciona e fracassa uma experiência socialista. Pelo contrário, a sua correta interpretação pode nos ensinar sobre a limitação histórica do capitalismo latino-americano em combinar desenvolvimento e inclusão, bem como dos limites das medidas destinadas a reformá-lo e a controlá-lo.
Rodrigo Alonso é um economista uruguaio, contribui com os períodicos Brecha e La Espada, da Universidade de Integração Latino-Americana.
Tradução de Luis Leiria/Esquerda.net.